Os desertos da neve.

O lagarto do deserto possui a cor do vento quente que parece encher todos os lugares. Desliza sobre a areia escaldante para não se assar parado. Nele não se olha para o sol, mas o tem sobre o corpo e a alma. Vivi diante das pirâmides por onze anos. Nunca sonhei com nenhum Faraó sepulto em suas tumbas. Respeitava o quadro arquitetônico delas, olhava-as a imaginar outras fartas lendas. Só assim vivi, admirando o ar místico de um deserto cheio de assombração e encanto.

O homem desafia a natureza, comete crueldades terríveis aos seus semelhantes mas respeita seus limites físicos. Ninguém atravessa o Saara sem água para se beber. Eu bati meu próprio recorde e escalei as mais altas pirâmides. Atravessei esse deserto sem tomar um só gole d’água. Nem suei. Meu casaco de frio que jamais o tirei do pescoço, serviu-me para ajuntar grãos de areias ressecadas do sol e do tempo em suas fimbrias azuladas.

O nome do lagarto cinzento que conheci era Japu. Trajava um lindo terno azul escuro que o deixava distinto da areia branca e presa fácil para o gavião desértico de garras afiadíssimas que suportava pousar sobre os pontiagudos espinhos dos cactos do Saara. Diante de uma violenta briga de Japu com um gavião corpulento, fiquei estarrecido. O lagarto devorou o gavião e deu três arrotos. Olhou para mim e sorriu com um simples piscar de olhos. Que lagarto faceiro, Japu, cheio de tanta coragem! Naquele deserto não havia a lei dos homens.

Continuamos a correr, Japu e eu, nas areias escaldantes do mesmo deserto e não cansávamos nem um pouco. Os beduínos e seus camelos ficavam para trás. As dunas andavam bem menos de que nós. Dos oásis passávamos distantes. Parecia-nos desnecessários.

Lembro-me que acordei às oito da manhã. Estava morrendo de frio. O quarto estava fechado e meu cachorrinho Pêpê, sobre os meus chinelos de couro marroquim, fiel a mim e ao silêncio sepulcral do ambiente. Retirei o lençol que cobria o meu corpo, levei as mãos à face, alisei-a com suavidade, levantei-me, dei passos até chegar à porta e só aí tive ciência de que apenas sonhara com o deserto. Lá fora o frio era intenso e úmido. Era o primeiro sobrevivente do pólo que acordava. Tive saudade de Japu. O outro deserto que tinha à frente era alvo, silente, porém frio e tão mortal quanto o do sonho. Os cães de papai estavam deitados na neve do oitão da casa sem se importarem com o frio que parecia redesenhar a vida. Não sei bem de onde meu inconsciente havia trazido o lagarto e o gavião. O Saara ficou-me conhecido na alma. A sede me judiou ao despertar e foi pior do que o espanto que tive ao acordar e saber que para mim ainda era muito cedo para parar de sonhar.

Quando se dorme na neve, os anjos oníricos parecem ser frios e nevoentos para com a realidade do despertar. Suas asas se confundem com a chuva de neve, e tudo nos parece branco como as areias quentes do deserto, mas com outros sabores e outros cheiros. Nem tudo o que é branco traduz paz e mansuetude. Com nossos sonhos viajamos sem conhecermos fronteiras. O calor do sol e o frio da neve polar queimam do mesmo jeito. O sonho tem o poder de atravessar os dois, redesenhar desejos, fantasiar realidades. Que o diga o Gabriel do “Cem anos de Solidão”.

Meu termômetro do imaginário, quebrei. Não sei quando está frio ou quente meus ares literários. Escrevo..., escrevo desmedidamente, sobrevivendo a desertos de fogo e de gelo. Nenhum me queima. Sou o Japu de minhas idéias devoradoras. Durmo para ter sonho como este, desprovido de ficção e de realidade. Sou a alma dos contos desérticos ou alagadiços: ora sou singela vereda, ora gigantesco horizonte a perder-se no infinito das ideias. Quem me ler, encontrar-se-á em mim: vez por outra sou você, vez por outra sou eu; sempre estaremos perto um do outro. Minha narrativa deixa um rastro almiscarado. E o que é ainda pior, nunca sequer andei nos pólos, quanto mais dormir lá; meu cãozinho Pêpê é verdadeiro e eu o adoro.Não se apartas de mim por nada. Dorme muito sobre os meus pés.