Façanhas II

Jilobaldo era um caso a parte. Um caso de polícia ou de psiquiatria, para ser mais franco. Era impulsivo por excelência. Certa feita estava ele num daqueles dias de repleta inspiração, quando decidiu entrar numa “grande jogada”.

– Vou comprar um “carango” - disse.

Sabendo de suas parcas posses, recebi a notícia com certa reserva. Entretanto, nada opinei sobre seus novos planos. Sou amigo de longas datas, mas em circunstâncias como esta apenas me coloco como expectador de suas prodigalidades - e são muitas -, mas não tomo partido. Sobre o plano de andar motorizado, ele fincou pé e firmou jurisprudência. Compraria um veículo. E comprou. Quando o amigo encasquetava sobre determinada coisa ninguém o demovia. Tentar convencê-lo a mudar de idéia era chover no molhado. Que comprasse então o seu “carango”.

Comprou um Gordini. Ou melhor, um “leite glória” como era conhecido o carro. Diziam que se desmanchava sem bater. Daí o pejorativo. A essa nova aquisição declarou ser um bom negócio.

Inicialmente a posse do “carango” lhe trouxe muitas felicidades. Foi tomado de uma expressão tão radiante, capaz de meter inveja em muita gente. Nos primeiros dias da posse do veículo tudo ia às mil maravilhas. O “Glorinha” – apelido carinhoso dado pelos amigos mais chegados ao calhambeque - depois de algumas revisões já estava atingindo a surpreendente marca dos 40 quilômetros por hora. Devido ao tempo de uso - oito anos - era um feito digno de registro.

Durante os 15 primeiros dias o “Glorinha” prestou inestimável colaboração ao Jiló e aos seus. Mas foi justo no décimo sexto dia, decorridos da compra que o negócio veio lhe trazer um tangolomango. “Glorinha”, como todo carro de respeito, bateu o motor. Bateu o motor num momento inoportuno.

Jiló desfilava todo faceiro com sua namorada, desfrutando do ar salitroso da Otávio Mangabeira, quando essa infelicidade aconteceu. Não precisa nem dizer o estado de nervosismo do amigo. Para ele aquilo correspondia a um desastre de grande monta. O que de nomes impublicáveis esbravejou, não está no mapa. Mais furioso ficou quando alguns gaiatos ao se deparar com a situação vexatória, lhe endereçaram alguns gracejos. Um deles falou:

- “Bota o glorinha nas costas idiota”!

O Jiló tomou aquela provocação como a maior ofensa de sua vida e, bufando às tantas, discorreu uma série de adjetivos não recomendáveis à mãezinha do sujeito. Logo ela, que nada tinha a ver com o acontecido.

O amigo ainda estava de “cuca” quente quando recebeu uma oferta tentadora. Uma barganha envolvendo o “glorinha” por uma lambreta. Pau a pau, como popularmente se diz. Jiló não pensou duas vezes e, imediatamente, fechou o negócio.

Acontece que o biciclo, devido ao tempo de uso, não inspirava muita confiança. Entretanto, Jiló queria mesmo era andar motorizado, mesmo este novo veículo lhe causando pequenas enxaquecas

Certo dia - não havia decorrido muito tempo da posse do novo veículo –, ele se deslocou daqui da soterópoles com destino à sua terra natal, a aprazível Serrinha. Apetrechou-se todo, abasteceu a si e à condução e seguiu sua jornada.

Na largada, como se quisesse demonstrar a potência do biciclo, executou um “cavalo-de-pau”, quase lhe custando uma nova epiderme. Levantou-se, sacudiu a poeira e seguiu em frente, felicíssimo pela proeza e mais radiante ainda ao pensar na acolhida entre os amigos e conterrâneos, quando o vissem motorizado. Pensava também nas garotas e nos familiares. Ia absorto.

Como alegria de pobre dura pouco. Para não fugir à regra, com o amigo não foi diferente. Ele já havia deixado alguns quilômetros para trás, contudo destes não passou. O biciclo, qual um jerico empacador, estancou abruptamente. Os esforços desprendidos pelo amigo, na esperança de fazer o veículo funcionar foram em vão.

Não suportando a carga nevrálgica que lhe subiu às têmporas, tremeu nas bases, perdeu as estribeiras, esbravejou, chutou o veículo e, vencido, parou. Foi se sentar desanimado. Depois, já calmo, pensou nos três quilômetros que teria que caminhar de volta, desta feita empurrando a condução.

Pensou na gozação dos amigos e nas provocações dos gaiatos, quando o vissem pagando aquele vexame. Pensou e seguiu. Não em frente como estava nos planos de viagem, mas de retorno a Salvador. Gracejos não faltaram durante todo o percurso de volta para casa e isto foi como cutucar o cão com vara curta.

Ao chegar a casa guardou o biciclo.

Não! Aquilo não são modos de guardar um veículo! Jogou num canto qualquer do quintal e foi descansar. O descanso necessário para espairecer e esquecer o tormentoso dia. Não conseguiu. E não era de se esperar coisa mais amena, em meio ao turbilhão de fatos negativos vivenciados naquele dia.

Passados algum tempo, já espairecido dos infortúnios, finalmente achou um negócio no biciclo. Uma nova barganha. Por indicação de um seu amigo, apareceu em sua casa um mulato jovem e corpulento propondo uma troca da lambreta por um gravador. E, de quebra, alguns míseros trocados. Sem titubear, Jilobaldo já estava de posse do eletrodoméstico e da pecúnia. O mulato, por sua vez, despediu-se e saiu a empurrar o biciclo, certo de ter realizado um ótimo negócio. Se foi bom, não sei. Todavia, se foi bom para o rapaz, o foi também para Jiló. Afinal, ele se livrou de mais uma encrenca.

Do gravador, não tenho notícias concretas. Ouvi falar que o amigo vendeu. Dizem também que o capital apurado na venda do eletrodoméstico, somado aos míseros trocados recebidos quando da barganha do biciclo, não totalizou um terço do investimento inicial no “glorinha”.

Como todo boato tem um fundo de verdade, as más línguas deram conta de ter o Gordine se acabado em fumaça. A princípio não entendi a insinuação dos mexeriqueiros de plantão. Pensei que o “glorinha” tivesse sido sinistrado por um incêndio. Depois peguei o fio da meada e o destrinchei. Como é sabido, Jiló era dado ao vício do tabaco. E, segundo se comenta, todo capital apurado nas transações acima expostas, foi gasto no consumo de sugestivas marcas de cigarro encontradas por aí nos bares da vida.

Como vêem o Jiló era um caso a parte. Um caso para psiquiatra.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 18/02/2013
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