Cerca de dez horas Vovó Maroca convocou toda a família e a empregada com urgência porque precisava fornecer uma informação muito séria.
Estando eles reunidos, ela avisou que o carteiro acabara de entregar um telegrama enviado pela Senhora Morte.
Quase todos tomaram um grande susto.
O único que não ligou foi Pedrinho. Ele não entendeu bem o que significava aquela notícia. O garoto era novo demais para pensar nesse tipo de assunto.
 
Quiseram saber o que dizia o telegrama, a simpática Vovó Maroca leu a seguinte mensagem:
 
Hoje venho jantar e dormir.
De manhã viajarei acompanhada.
 
O recado tão objetivo deixou a maioria temerosa e preocupada.
Se a Senhora Morte viajaria acompanhada de manhã, parecia lógico que ela levaria um membro da família.
 

Dona Maroca, a adorável matrona do lar, era certamente a principal candidata considerando o critério da idade, mas o último suspiro poderia abraçar qualquer um dos membros da casa.
Mil vezes a Senhora Morte já surpreendeu nesse quesito.
 
Pedrinho já foi citado por mim.
O garoto só viajaria caso ocorresse uma escolha bastante caprichosa e incomum da lúgubre visitante.
 
Morava também, na maravilhosa mansão, Dona Diana, a filha única de Maroca, mãe de Pedrinho, uma ótima costureira.
O marido de Diana, pai do garoto, Seu José, começou a cismar com o fato dele ser careca.
Tal detalhe fazia lembrar o conto do cabeludo que ficou careca intencionalmente acreditando assim conseguir ludibriar a Senhora Morte a qual avisara, usando também um telegrama, que estava vindo buscá-lo.
A atitude sabida, no entanto, não impediu o careca de viajar.
Não suscitava um sinal positivo recordar a conhecida narrativa.
 
Faltou citar Dulcinha, prima distante de Vovó Maroca, uma solteirona com mania de doença.
Foi ela quem justificou eu dizer que “a maioria ficou temerosa e preocupada”
Dulcinha logo pensou Oba! Será que alguma doença rápida e inesperada surgiu?
A doida, que sempre reclamou variadas complicações orgânicas que nunca foram confirmadas, ficou empolgada.
Quem sabe finalmente um mal fatal aparecia e ela concretizava sua esquisita aspiração!
 
O outro integrante era o compadre de Maroca, Tio Macedo.
Depois de ficar viúvo, ele resolveu morar com a comadre.
Muito estimado, sabia contar excelentes histórias e causos, entretanto jamais narrou algo sobre a respeitável senhora.
Esse detalhe poderia ter chateado a Senhora Morte?
Ela estaria se vingando do carismático contador?
 
A empregada da casa, Dona Josefa, tinha um quartinho no fundo e era considerada uma querida amiga da família.
Adorava assistir as novelas globais quando, nessa hora de entretenimento, não realizava qualquer tarefa da mansão.

 
O "time completo" acreditou que um deles faria a viagem sem volta durante a manhã do dia seguinte.
Resolveram receber a Senhora Morte da melhor forma possível, pois, sem saber o nome da pessoa escolhida, talvez o carinho excessivo mais um tratamento classe A pudessem alterar os planos da visitante.
Dona Josefa prometeu fazer um jantar saboroso e decidiu deixar a TV desligada. Ela cancelou as novelas nessa noite inusitada.
Tio Macedo ficou ensaiando uma bela história, pois, caso surgisse a oportunidade, ele distrairia a Senhora Morte com uma narrativa interessante.
Dulcinha ficou querendo adivinhar que doença estava invadindo o seu organismo apesar de se sentir disposta demais.
Seu José resolveu usar um chapéu para disfarçar a careca e propôs à esposa, Dona Diana, costurar um vestido deslumbrante para a Senhora Morte já que as roupas tradicionais da ilustre hóspede eram horríveis.
Vovó Maroca supervisionou incansável o preparativo do jantar e a limpeza da mansão.
 
Tudo precisava ficar impecável para receber a Senhora Morte de um modo bastante satisfatório.
Decidiram que ela passaria a noite no quarto de Pedrinho.
O garoto ficou o dia inteiro no computador numa sala de papo virtual, contudo evitou comentar a novidade com os amigos internautas.
Esperto deduziu que ninguém acreditaria e diriam que ele pirou.
Já bastava a Dulcinha – pensou Pedrinho.
 
Pontualmente, no horário em que o jantar ocorria na mansão, a Senhora Morte tocou a campainha.
Lá dentro um botão vermelho permitia acionar a abertura ou fechamento do imenso portão.
Após a Senhora Morte cumprimentar todos e se sentar, foi servida uma sopa de legumes.
A empregada supôs que uma comida leve seria perfeita, pois ouviu dizer que não é recomendável viajar com o estômago cheio ou experimentando uma disenteria.
A patrocinadora dos cemitérios aprovou a escolha do prato, elogiou a comida de Josefa e pediu para repetir.
Depois do jantar, a Senhora Morte conversou pouca coisa e resolveu se deitar imediatamente, pois pretendia acordar bem cedo.
 
Somente ela e Pedrinho conseguiram dormir.
Os outros, cada um nos seus respectivos quartos, ficaram imaginando quem a megera levaria de manhã.
Dulcinha estava ansiosa, torcendo para que fosse ela a “felizarda”. Finalmente, se tivesse sorte, confirmaria uma das enfermidades que tanto costumava idealizar.
Excetuando a maluca, as outras pessoas ficaram apavoradas.
Um deles estaria desfrutando a última insônia da existência sem nenhuma possibilidade de compensar a noite perdida.
Uma tempestade forte recheada com trovões estrondosos acompanhou implacável a madrugada.
Corujas voaram perto das janelas sugerindo mau agouro.
Uivos de lobos famintos e até gritos assustadores oriundos de locais distantes aumentaram a triste angústia dos moradores da mansão.
 
De manhã a Senhora Morte despertou muito cedo, animada e cantando.
Escovou os dentes, tomou um banho demorado, saudou os familiares e Dona Josefa, leu a página policial do jornal sem deixar de consultar as fofocas inéditas.
Tomou um café reforçado com direito a um bolo de fubá preparado pela gentil Vovó Maroca, depois agradeceu emocionada a hospedagem e saiu sorridente assobiando, envolta na sua enorme capa escura, segurando firme a sua velha foice.
 
Ninguém entendeu nada, mas perguntar algo não parecia uma idéia inteligente.
Dulcinha ficou frustrada quando constatou que permanecia saudável.
Os outros sentiram um alívio tremendo percebendo que não viajariam nessa ocasião.
Pedrinho era indiferente ao fato.
Dona Maroca foi conferir se a Senhora Morte já tinha se afastado quando pôde observá-la distante atravessando o extenso jardim e saindo pelo portão da mansão.
Imaginaram que talvez a atenção e a dedicação coletiva tenham amolecido o coração da Senhora Morte.
Ficaram pensativos durante algumas horas, no entanto a rotina da família logo voltou ao normal.
Combinaram tentar esquecer o assunto.
 
(Se vocês pensam que farei um suspense imitando o estilo de Hitchcock ou inspirado num dos autores globais que só desfaz os enigmas no último capítulo da novela, devo frustrá-los, pois dessa vez não há mistério algum nem nada justifica criar um clima de suspense.
Na verdade ocorreu um gigantesco mal-entendido.
A Senhora Morte jamais objetivou levar um morador da mansão)
 
No dia seguinte tudo foi esclarecido.
A Senhora Morte não veio passear nem desistiu de levar a pessoa destinada a viajar.
O momento em que ela atravessou o portão da mansão, faltando cinco minutos para sete da matina, possibilitava, com tranqüilidade, encontrar o jardineiro antes dele adentrar a mansão no horário habitual.
O jardineiro, Tonho das Pingas, era um homem solitário que, durante a tarde, ficava nos bares tomando cachaça, à noite adormecia no seu humilde barracão, de manhã despertava e seguia rumo à mansão da qual tocava a campanhia sempre sete horas.
Era um profissional competentíssimo, muito dedicado ao precioso jardim de Vovó Maroca.
Naquele dia, porém, ele não tocou a campainha.
No dia seguinte também não apareceu.
Dona Maroca procurou saber onde o pobre homem estava, descobriu que ele, desde a véspera, não foi visto por ninguém e não compareceu a nenhum bar.
Ficou, então, fácil concluir que a Senhora Morte desejou desfrutar uma noite agradabilíssima, com boa comida e cama confortável, antes de efetuar a viagem acompanhada, conforme havia prometido realizar, levando o jardineiro.
 
Meus queridos leitores, essa é a versão literária da ocorrência.
Ela foi adotada por Tio Macedo como mais um dos seus causos, mas o velhinho camarada garantiu que só narraria a história num momento bem especial.
Essa versão também agradou demais Josefa e todos os familiares, incluindo agora Dulcinha, que conheceu um turista o qual chegou na cidade coincidentemente naquela tarde.
Depois de conhecer o moço, a donzela não pensou outra vez em doenças. Ela queria ter todo o vigor para satisfazer o futuro esposo que, segundo os boatos, era fogoso demais.
 
Sim, dessa forma podemos citar a morte de Tonho das Pingas, entretanto o jornal da cidade registrou a morte de Antônio Silva, jardineiro, destacando data, horário e local.

Diariamente os jornais divulgam, na seção dos falecimentos, uma relação de nomes informando quem morreu.
Somente a brilhante ficção, todavia, possibilita que a existência muito inexpressiva de um modesto jardineiro, um miserável alcoólatra, adquira uma cor mágica exatamente no momento em que ele deve efetuar a viagem derradeira.
 
O jardineiro Tonho das Pingas, que não mereceu importância alguma quando estava vivo, o tempo todo dormindo, cuidando com esmero do jardim de Dona Maroca ou bebendo nos bares da cidade até tombar, seguindo sempre essa rotina, no instante da morte conseguiu inspirar um conto o qual mereceu constar no doce canto, o nosso Recanto.
Quem diria, hein?
Que maravilha!
 
Peço, então, que aplaudamos de pé a genial Literatura tão surpreendente e encantadora!

Um abraço!
Ilmar
Enviado por Ilmar em 19/02/2013
Reeditado em 09/04/2013
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