O Andarilho

Era uma vez eu que saí por aí a passear sem tempo para retornar. Queria ser feliz – haveria de encontrar a felicidade escapulida de minhas mãos há tempos; por isso resolvi sair deste jeito: meio extrovertido, descompromissado, livre, deixando-me ser levado por uma ventania que me havia visitado sem marcar tempo e hora. Posso dizer que uma dita ventania branda me levou mundo afora.

A casa da gente é palco e trampolim para nossos passos. Nela vê-se o inviso, o retratado e a rudeza da realidade que muitas vezes não nos é agradável ver.

Saí por aí em uma tola segunda-feira de abril, época de quaresma, bem próximo da páscoa. Nem me lembrei de levar comigo o terço que vivia esquecido nas pontas da cabeça de minha cama de solteirão. Preferi não me ajuntar às tralhas ou pedaços preciosos de que vivia arrodeando-me. Queria deixar mesmo tudo para trás e apenas levar-me comigo: afinal, corpo, alma e coração tinham que estar juntos nesses desenhados passos que havia resolvido dar, num rebento de coragem ou broto de desmedida loucura. Saí de casa fantasiado de corajoso; não me interessava olhar para trás e ver a mesmice do cotidiano que deixava. Saí mesmo!

A primeira parada deu-se longe de casa, sob o abrigo da sombra fresca duma amendoeira frondosa. Sentei-me entre duas de suas raízes grossas, descobertas, na terra acinzentada e morna. Recostei em seu tronco, olhei para o horizonte à frente, pedi para mim mesmo que esquecesse o passado e descansasse para entender em que porta deveria bater e pedir comida e água. Meus olhos não conseguiam trazer às retinas qualquer imagem de gente ou de lugar habitado. A zoada do vento soprando as largas folhas da árvore, umas contra as outras – a única voz que me barulhava mansamente aos ouvidos.

Retirei as alpercatas, alisei os pés, a essa altura doloridos; estava a uns trinta quilômetros de casa; o sol queria ir-se, porque no horizonte uma faixa alaranjada escapulia por trás de umas montanhas longínquas a chamar a lua. Esta já estava no céu, apagada, numa crescente vontade de aparecer mais viva na escuridão da noite, o que só se daria dali a horas. Dormir com fome não me seria vantajoso. A amendoeira proveu. Quando a noite caiu, morcegos atarantados, vindo de todas as partes, arrancavam os frutos dela e, na confusão da teia dos vôos, um e outro caíam; Limpava-os, como se estivesse os descontaminando e rapava com os incisivos centrais as lâminas encarnadas de sua escassa polpa. Eram doces, de tamanho médio, algumas delas não conseguia limpá-las de toda a areia encontrada em suas entranhas que, de tão moles da maturação, se espragataram com a queda.

Foi assim que enfrentei o frio moderado da noite, até ver no relógio de pulso que já se aproximava o raiar de um novo dia. Levantei-me às quatro e segui a viagem rumo ao desconhecido.

Era uma vez eu que havia saído de casa rumo a Belém, sem menino nenhum avistar; sem rei ou presentes. Mas no céu havia muitas estrelas douradas de esperança; saber qual era delas, eis que me fora o maior dos suplícios. Minha manjedoura era o chão nem sempre protegido por sombras hospitaleiras. Não eram sertão, não eram deserto os chãos por onde cruzei em busca de cada nada que pensava estar pensando, sem certeza de alguma coisa achar comigo mesmo. Ia-me apenas no mundo e sem mundo ter.

-Dê-me uma esmola, dona...

-Arrume um emprego, vagabundo. Um homem tão novo!

-Os novos sonham e sentem fome. Água, a senhora tem coragem de me dar?

-Isso não se nega nem a um cachorro!

-Pronto, está aí: faça de conta que eu sou um deles; é animal de minha estimação. Fiquei satisfeito com a comparação.

O sol havia se escondido por trás de algumas nuvens no meio do céu. Ventava pouco. Levei a mão à testa, retirei o excesso de suor deslizando o indicador curvado e rente à pele; caíram-me poucas gotas dele. A água que a velha me havia dado não era lá de boa qualidade: senti-a meio salobra. Fora-me dada e isso me proibia reclamar de seu gosto. Os roncos do intestino revolto também haviam sido me dados mas por uma fome miserável, natural para quem já estava há mais de doze horas sem se alimentar.

Saí por aí sem medir o peso de um passeio espontâneo e despreparado, como o que eu havia escolhido. Livre, a andar sem rumo certo, senti que estava preso às minhas faltas. Ao pedir água ou outra coisa qualquer, compreendia que essa dependência me fazia escravo de mim e dos outros: outros eram tentados a dar-me o que não me era meu.

Pensei: era uma vez um homem infeliz que comia tudo, possuía uma casa e vivia entre familiares exigentes, alguns rudes, outro chatos! A maior estrada que conhecia era a que existia entre meu quarto e a escola secundária: trezentos metros. A bicicleta me levava. O que faz um homem jovem sair de casa à procura de nada?

Eu saí de casa sem ter casa para morar, ouvidos para ouvir. Pedir esmolas foi-me o único ofício aprendido em umas horas de caminhada – perversa fuga –, não pensei que o mundo era tão inóspito e insensato. Da casa onde eu morava, não avistava o mundo que eu não conhecia. Eu era o único mundo em minhas idéias.

-Era uma vez um homem que voltou para casa; um outro homem, bem diferente de mim, aquiescido das loucas ideias: um homem a valorar as pequenas coisas do dia-a-dia.

Não posso relembrar quantos sóis eu vi nascer, quantas luas eu vi estampadas nas noites mal dormidas ao relento. Muitas coisas se passaram à minha frente: esqueci umas, provei outras, trouxe comigo apenas as suportáveis de serem regadas e tomadas como lição de vida. Elas aceitaram acompanhar-me na volta.

Outra vez em casa, no quarto, sobre a velha cama bem forrada, emagrecido e cansado, após banho e roupas limpas a cobrir o corpo, deitei para dormir. Sonhei com as misérias da viagem que havia feito. Acordei-me no outro dia, lá para as tantas da tarde, enfadado de nada ter caminhado pela manhã trocada pelo sono. Ouvi uma voz carrasca furtando o silêncio da casa.

-Malandro, chega da vadiagem e desaprende a acordar-se!

-Desculpe-me.

Eu também estava com raiva de mim mesmo; podia ter mudado condutas enquanto sofri pelos oito meses em que estive perambulando por terras estranhas. Tanta gente boa conheci! Não posso negar que na casa onde estivera, a mesma para onde voltei ontem, nela, nunca havia passado fome. E a alma? Essa vivia em polvorosa, atormentada pelas cobranças infernais. Eu nem sei o porquê de ter decidido voltar. Acho que dessa vez voltei sem mim mesmo. Deixei-me lá fora e resolvi entrar não sei com que resto de mim. Coitado desse andarilho solitário, órfão de casa mas dono do mundo! E o mundo presta? Minha casa, descobri apenas aos vinte e dois anos, faz parte do mundo também! É melhor continuar fugindo fora de mim, dentro de casa e ao lado do mundo. Meus padrastos têm também seus sofrimentos, suas dores, e não me podem carregar nos braços porque pesam talvez bem menos que eu!

Papai morreu em setembro de um mil novecentos e oitenta e dois; mamãe casou-se três anos após. Não sei como a esposa de meu padrasto deixou que eu continuasse a morar com eles, sem ser-lhes um filho, sem lhe ser nada. O que deles tenho recebido são esmolas, apenas esmolas, e nem me toquei que nessa casa sou apenas um andarilho com casa, com mundo, sem sorte e sem nada: órfão até dos meus mais puros desejos. Resta-me agora oferecer a mim mesmo um bom retorno e uma ótima reprogramação de viagem. Agora que conheci o mundo, ganhei um novo quarto de dormir, para sonhar. Esses mundos continuam a viver sob os meus pequeninos passos de criança que jamais quis ser adulto.