Novos brotos quebrados

Windegard Nortinez, reitor de tradicional universidade, ainda se lembrava do dia em que admitira o professor Milelli D’Oura, homem já maduro, português de origem, pesquisador minucioso de erudição e cultura elevados, possuidor de títulos acadêmicos diversos em sua área - Direito Romano - profundo conhecedor de latim e grego, um pouco rabugento pela idade, mas lúcido em suas exposições. Lembrava ainda do estranho pedido que este lhe fizera, para cultivar num pequeno espaço algumas mudas de jasmim.

Ao lado de uma mangueira ainda nova, num dos jardins do campus, o Reitor determinou ao Jardineiro que cercasse uns sessenta centímetros quadrados de terra a ser reservado ao professor.

Era o mesmo Jardineiro que agora relatava ao Reitor que diversos brotos plantados se encontravam com suas pontas quebradas, danificadas quase que certamente por gestos de vandalismo.

De sua janela, o Reitor podia enxergar o jardim. Não via sinais de pisoteio de pessoas pelo local e somente o espaço destinado ao professor continha o indesejável sinal de incivilidade.

Fora determinado, mesmo assim, a um dos vigias que mantivesse redobrada atenção àquela área para novas ocorrências serem evitadas.

Infrutífera providência. Retornara o jardineiro à sala do Reitor para mais uma vez relatar o mesmo ocorrido.

Intrigado com o problema, quase da mesma forma com que o faziam suas especulações filosóficas e inquietações intelectuais, decidiu o Reitor consultar seu antigo amigo e também docente na mesma Universidade, na cátedra de Direito Penal, o professor Pietro Marcelli, Procurador de Justiça aposentado, que por muitos anos aturara como Delegado de Polícia, racionalista extremado, dotado de afiado pensamento lógico-dogmático.

Ciente da questão, Marcelli, através do vidro da sala do Reitor, examina demoradamente o canteiro cultivado pelo romanista. Seus pensamentos, se forma tivessem, apresentar-se-iam como os movimentos de um intrincado e linear jogo de xadrez.

- Simples, velho amigo - diz o penalista a Nortinez. Venha observar mais próximo da janela. Vê a disposição do canteiro?

- Sim.

- Vê como estão plantadas as mudinhas?

- Sim - responde mecanicamente o Reitor.

- Lembram algo?

Nortines olhou seu amigo sem entender.

- Observe melhor - retomou o procurador-delegado, já sentindo circular em suas veias sangue oxigenado por alvéolos policiais. - Atente para a disposição das plantinhas. Elas formam quatro linhas de dez covas cada uma. Venha até aqui.

O Reitor, começando a duvidar da seriedade de raciocínio de seu colega, deixa-se arrastar pelo braço até um canto da sala onde, numa mesinha, uma pequena Olivetti portátil permanecia como enfeite e recordação.

Retirando a capa que a protegia, o ex-delegado, com um movimento de mão em gesto de apresentação, diz:

- As plantinhas foram cuidadosamente colocadas na mesma disposição de um teclado de máquina de escrever.

Subitamente ilumina-se a fisionomia do Reitor. Era verdade, como uma máquina de escrever. Preocupações filosóficas e algumas administrativas o tinham desviado de coisas simples. “Como, pensa ele, ciência e filosofia, feitas para colaborar com o homem, o afastam das questões mais singelas”. O pragmatismo de seu colega o aprumara. “Uma máquina de escrever”.

- O professor D’Oura - diz o catedrático em Penal, como se concluísse relatório de gravíssimo crime de altíssima repercussão - criou um meio de enviar mensagens a alguém, provavelmente jovem donzela, aluna de sua classe, evitando qualquer contato direto e indício de desconfiança por parte de seus colegas e alunos.

Proferida a sentença, ocaso estaria encerrado se, por certa coincidência que faz abalar o mais materialista dos pensadores, não entrasse na sala, naquele exato momento, o professor D’Oura, a fim de comentar a avaliação de alguns alunos, seguido imediatamente, no microssegundo anterior ao fechamento da porta, pelo atônito, afobado e ofegante Jardineiro quase a gritar:

- Descobri o mistério - diz o último, munido de posição tão segura a ponto de emudecer e deixar estupefatos os sábios lentes no recinto. – Mas somente posso demonstrá-lo às 5:30 horas de amanhã. Se os senhores puderem e quiserem, encontrem-me aqui!

No horário aprazado os experientes e doutos professores, cada qual movido por seu sentimento íntimo pessoal, sem revelá-lo aos demais colegas, cumpriram a determinação.

O Jardineiro já os aguardava e, com sua singela humildade e simples inocência, comandava aquele pequeno grupo de sábios.

Seguindo instruções do Jardineiro, todos desceram ao jardim. Próximo do misterioso canteiro, ainda sob comando do inocente maestro, a reduzida orquestra de lentes escondeu-se por trás de pequena mureta, deitados todos sobre a macia e úmida relva, de onde podiam observar as mudinhas.

Ali, acalentados na suavidade da grama, com o corte da madrugada pelo primeiro raio de luz do sol, foram seus olhos atraídos para o horizonte na direção do vôo de três ou quatro pintassilgos, bailando no ar e aproximando-se do canteiro de jasmins, enquanto o sereno derramava suas últimas gotas, despedindo-se da madrugada, dissolvendo mais ainda o elo dos professores com a civilização, já muito amortecido pela agradável ternura do abraço do jardim.

De repente, o mais irrequieto dos passarinhos, abandona sua dança estacionária e mergulha rasante sobre as plantinhas, tocando o bico numa delas, com precisão e força suficientes apenas para retirar-lhe a extremidade. Dele seguem-se os outros, como bailarinos a reproduzir o movimento do instrutor. Pairam no ar novamente em evoluções, aparentemente a despedirem-se e agradecerem a silenciosa e improvisada platéia.

Atendendo como que a invisível diretor de tal natural espetáculo, tornam-se os voadores dançarinos para o horizonte e desaparecem no espaço.

O filósofo, o penalista, o historiador e o jardineiro se entreolharam. Todos, com seus diferentes graus de experiência e conhecimento, sentiam-se no mesmo nível. Não ao que a estranha posição assumida os havia colocado. Nem tampouco à pretendida e propalada igualdade cidadã. A nenhuma delas, nem de ordem física nem de ordem social.

Sentiam-se iguais e no mesmo nível porque atendiam ao chamado com qual a natureza havia elevado seus corações.

João Ibaixe Jr
Enviado por João Ibaixe Jr em 18/03/2007
Reeditado em 25/03/2007
Código do texto: T416774