Até o Último Flexionar dos Joelhos.

O velho sem dente passou sorridente, pedalando sua antiga bicicleta enferrujada, sob um sol tão quente que faria Nelson Rodrigues desanimar de viver.

Seu velho sorriso, seu velho chapéu de palha, denotavam felicidade tremenda, como quem é só espírito, a olhar pra frente, compenetrado nas pedaladas fortes, como quem pedala um dia após outro desde há muitos anos, desde criança... até o último flexionar dos joelhos.

No Tribunal a Escrevente consente que processo de seu parente corra urgentemente, prejudicando o nosso pobre velho doente que fora até lá consultá-lo, porém orientado à turras que procurasse seu advogado. E montando em sua bicicleta, herança antiga de seu bizavô, acena ao largo para pessoas sentadas do outro lado da calçada, mesmo enxergando-as de forma embaçada. Seriam almas? E pedala meio que cambaleante no princípio, mas pegando o prumo em retidão.

No caminho que passa por milhares de pontos de vista, cada um criando um livro interpretativo diferente dentro de cada mente, o velho negro sem dente vai pensando no quando a justiça é lenta, tarda e injusta, mais lenta de tão lenta que antes fosse injusta, porém rápida, já que a lentidão é uma angustia tão ou quanto mais pesada que qualquer sentença sumária de morte.

O homem velho que necessita da justiça pátria recebe a sentença mais brutal que a própria morte, que é o fato de estar condenado aos balcões da burocracia fria de cada dia, a anos e mais anos de incessantes incidentes e recursos, aliado à desídia do funcionariado, tendencioso à prevaricação e corrupção, além de outra série de fatores que vão se interligando até formar um emaranhado de papeis inúteis que nada resolvem, alijado ao descaso pela dor alheia, que é muita e inunda o sistema democrático de direito, incapaz de ‘dar um jeito em tudo’.

Os sonhos do velho, que sorri e olha pra frente, e espera sua aposentadoria afundada na burocracia, vai passando por olhares míopes que enxergam cada vez menos as cores do mundo, e ora ou outra um aceno, mesmo que não enxergue para quem está acenando...

E quer chegar em casa e abraçar a mulher de tantos anos, magra e carcomida, seca feito taboca, cor da terra, pito no beiço e um gorro bordado envolvendo a vasta cabeleira branca, já conformada com as dores da lida.

E depois de longo abraço que sempre faz brotar lágrimas, e que perdura amalgamado no sistema do respeito familiar, sistema este da mais profunda harmonia celestial, já que a família é a primeira e a única base política a social o qual o ser humano pode confiar, sentam-se à mesa e olham a fotografia da única filha, morta aos dezesseis por um maníaco-depressivo. E engolem o caldo de cebola e feijão como se fosse a mais requintada das refeições, ouvindo a hora do Brasil no momento em que o galo anuncia o entardecer...

SAvok OnAitsirk 12 3 13.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 12/03/2013
Código do texto: T4184584
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