Diva.

A mulher, velha e carinhosa, ousava no seu cotidiano demorar-se assentada à porta de seu casebre por horas, a entrelaçar linhas multicoloridas, tecendo peças bonitas de desenhos arcaicos; tantas calosidades nas mesmas mãos a que, antes fidalgas, não caberia o repuxo do exercício forçado da sobrevivência, mas apenas beijos e afagos. A mulher estava a viver agora um outro tempo bem diferente do de outrora.

Pai rico, filho nobre, neto pobre. Não me lembro de quem disse essa frase antes, mas sei que a disseram e já faz tempo; eu, quando menino, cansei de ouvi-la sair por entre os lábios de papai, como se fora uma simples lição para se guardar firmemente na alma.

Diva preparou-se para casar. Seu baú continha as preciosidades raríssimas que só as prendadas moças da vila podiam ter. Ajuntavam-se ao seu redor espólios de palavras e pequenas fortunas; Diva mais que uma diva, dama o era de infeliz espera, acoitada nos abraços de perversa solidão.

Os velhos cansaram de esperar pelo futuro dela; casaram-se os seis outros filhos varões; Diva permaneceu aquietada e triste a cumprir as ordens castradoras cultivadas pela sociedade da época. Vestido longo, meias de seda, terço às mãos, missa aos domingos; sorrir só junto dos seus, nas raras festas de fim de ano, quando se acreditava que o respeito nascia e morria entre os familiares; lá fora, nas estradas do mundo, rondavam os perigos do desvirginamento e da sedução demoníaca, o que se devia evitar a ferro e brasa.

-Por que não posso ir a Recife cursar Odontologia, papai?

-Filha minha não se presta a isso, Diva. É lugar longe, cheio de perigos para uma donzela.

Restou-lhe o seminário no Colégio Sacramento. Neste, consumiu sua infância, mocidade e parte de sua vida adulta. Saiu dali com um minguado curso pedagógico e fora direto para a fazenda dos pais, no longínquo interior de União dos Palmares, ensinar no grupo escolar mantido em meias partes por seu pai e o prefeito da cidade.

Quando os anos de desesperança romperam a linha de certo horizonte e os velhos, adoentados, mudaram-se para a cidade, a fazenda foi tomada pelos irmãos em feroz gesto mesquinho. Restou-lhe cuidar dos cacos de pais, assentados agora numa pequenina casa à Rua do Cangote, esquecidos do fulgor do passado, perdidas as grandes amizades – morando em um mundo diferente do que lhes era merecido.

-Va chamar o padre Clóvis, minha filha.Seu pai quer vela. Sua alma já está soluçando de agonia, morre já. Cuida, cuida e vai!

-E meus irmãos, mãe?

-Se os encontrar por aí, faça o favor de avisá-los; talvez queiram partilhar do valor do féretro. Nós teremos que nos endividar para cumprir com esse último gasto. Há um certo destino que escreve tudo.

-Ai, mãe, que família diferente da do passado...

-A vida nunca deixou de pôr atalhos entre as boas estradas; o desejo dos homens é labirinto perigoso que os leva a perderem até suas próprias almas. É assim..., nosso velho tem nós duas ainda.

A unção dos mortos foi dada, e o coronel Batista pôde ser levado de favores por vizinhos e dois dos seis filhos varões. O féretro balançou leve entre os quadris dos generosos que, de chapéus à mão, contavam pedaços das histórias da vida vivida pelo corpo esquelético morto que agora, como jamais desejara, era apenas servido. O remorso dos filhos os emudeceu e, a passos secos e iguaizinhos aos dos demais, cumpriam a última e piedosa missão que os vivos devem fazer para com seus mortos.

-Esse velho foi um homem sério, ajudou a muita gente, elegeu muitos políticos que só vinham à sua procura em época de eleição. É isso mesmo! A gente morre e torna-se o defunto mais miserável do mundo.

Não havia mais do que vinte acompanhantes no enterro. Diva e sua mãe, as únicas chorosas, profundamente tristes. Do cemitério, os dois solicitaram a bênção da mãe e se foram. Apenas elas permaneceram no mesmo cantinho dos últimos dias onde o velho coronel Batista viveu, pobre e desprestigiado, apenas mastigando ardosa solidão que o matava a cada dia, pingo-a-pingo.

Dois anos depois morreu a velha. Para ela, as vizinhas da rua se reuniram para rezar um terço comprido que varou a noite, até que a alma saisse do corpo da matriarca. Diva alisava-a conformada com a idade cheia de amor de sua mãe, mas sentida pela qualidade de seu fim – últimos dias cheios de pobreza, quase miséria: o que antes não se pensava, o destino ser-lhe-ia capaz de doar.

-Quando eu passo à frente da casa cento e dezesseis da ruazinha estreita daquela cidade, lembro a história do velho coronel Batista, homem influente, valente, generoso, cheio de vida. A história lhe reservou apenas esse conto singelo.

Diva lhe sucede: sentada na velha cadeira de balanço feita de palhinha; no colo, dois ou três rolos de lã; entre os dedos, um tricotear ágil para ter de findar o dia com mais uma peça feita e poder sustentar-se de tudo. As mãos, magras e lisas, não escondem, antes mostram as dobras virgens de uma pele que nunca pôde levar aos braços os frutos da maternidade que poderiam ter-lhe saído do ventre.

Soube por uma sobrinha velha de Diva que, antes de ela morrer, teria dito: “Resta-me, quando chegar ao

céu, cuidar do menino Jesus.” E virou-se para o outro lado do leito de morte, como se envergonhada do mundo onde viveu as dores das diferentes injustiças a que podem estar submetidos homens e mulheres. Diva faleceu aos oitenta e seis anos, lúcida, calada e triste, sem nunca haver perdido a esperança de algum dia encontrar o matrimônio.