A estória de Ninguém

O menino Sidartha estava feliz por causa do feriado da sexta-feira Santa, pois o dia estava ensolarado e ao invés de ir para o colégio iria almoçar com a família. Saindo do condomínio seu pai parou o carro atrás da SUV (Sport Utility Vehicle) de um vizinho, pois a grande camionete de luxo prateada obstruía o acesso ao portão por estar com o pneu furado.

-Caro Vizinho, queres que eu ligue para um funcionário meu? Em 10 minutos ele vem e troca seu pneu!

-Obrigado! Já liguei para a seguradora! Vou colocar meu carro mais para frente para você sair.

-Satisfação em vê-lo!! – Disse o pai de Sidartha para o vizinho, depois com os vidros fechados continuou: “Bem feito para esse babaca do 3º andar que se acha o tal!”.

O porteiro do prédio que escutava a conversa se ofereceu para trocar o pneu e o dono da SUV aceitou, afinal seu ego mais elevado do que a própria altura da camionete o impedia de realizar uma tarefa para homens comuns.

Com este movimento em frente ao portão aberto do condomínio, um menino de rua aproveitou para entrar, sentou-se à sombra de uma árvore num banco de uma pequena praça. Sidartha – de dentro do carro – observou a cena e perguntou para a sua mãe:

-Quem é aquele menino??

Ninguém!! – Respondeu a mãe. Ela ainda comentou com seu marido que o zelador não deveria permitir a entrada de marginais em área particular.

-Mãããe!! Na volta do nosso almoço eu posso brincar com o Ninguém??

-Claro que não, Sid!!! Você não pode se misturar a bandidos, maltrapilhos e fedorentos.

Mediante a negativa da mãe, Sid se concentrou em um joguinho de seu “smartphone” e seguiu tranqüilo o itinerário do passeio em família. Enquanto isso no condomínio, o porteiro estava feliz por ter ganhado R$ 50,00 pela simples troca de um pneu. Depois, avisado pelo zelador, ele foi até o menino de rua e lhe disse amistosamente:

-RAPA FORA DAQUI, MOLEQUE DUS INFERNO!!! – O esquálido menino observou o porteiro, mas ele não tinha forças para esboçar uma reação. O técnico predial de controle de entrada e saída de pessoal então o pegou pelo braço e começou a arrastá-lo, neste momento uma vizinha gritou:

-Você não pode fazer isso!!! Este menino está protegido pelo estatuto da criança e do adolescente! – O porteiro não sabia o que era estatuto, todavia sabia que significava uma pessoa rica dizer “você não pode fazer isso”, então ele largou o pálido menino deitado ao lado do banco da praça. Satisfeita pela sua atitude, a vizinha foi ao salão fazer as unhas. Passados 40 minutos o zelador foi falar com o porteiro:

-Tu não féis o que eu te falei, pô?

-Ía fazê, mais a dona do 605 disse qui eu não pudia.

-Quem ela pensa que é?

-Parece que ela é a protetora das criança e dos dolescenti.

Vichhh! Essa genti trabalha em cada coisa esquisita. Vô te que falá pro guri sair por conta pópria. – O zelador pediu três vezes para o menino sair, mas ele não tinha forças para levantar: ele tinha FOME! O funcionário do prédio pediu então para sua mulher que lhe alcançasse algo para o menino comer, no entanto ela radarguiu:

-Essis bandu di vagabundo fais um monte de filhu e nóis que tem que alimentá?? Dá essa garrafa d’água prá ele e só!! Até purque já dei um monte de dinhero pro pastor da igreja ajudá os pobri.

-Tá bom mulher! Dá logo essa água aqui. – Ao estender a garrafa ao esfarrapado menino, percebendo que -subnutrido- ele não conseguia segurar a garrafa, o zelador a levou até sua boca e o fez tomar alguns goles. No seu pensamento pairava esta singela frase: “Toma logo essa merda seu filho da puta e vaza logo daqui, guri fedido!!” Ao longe, algumas mães que viam a cena, emocionadas tiravam fotos com seus celulares e compartilhavam no Facebook, começando assim uma bela campanha sobre a compaixão humana.

De repente os moradores foram se aproximando para verem de perto o que estava acontecendo; alguns ligaram para o Conselho Tutelar, mas como era feriado não estavam atendendo; outros ligaram para o SAMU, mas parece que uma ambulância estava quebrada e em outra só havia dedos de silicone para bater o ponto; outros só gritavam: Isto é uma vergonha, isto tem que acabar, para quê pagamos impostos? Uma vizinha que estava chegando estacionou sua Cherokee prata e desceu bastante consternada, apesar do botox esconder qualquer manifestação de emoção em sua fisionomia:

-Toma essa Coca-Cola e essa batatinha frita, garoto! Eu estou de dieta mesmo. – Disse a vizinha que imediatamente foi advertida pelo filho do zelador, estudante de História:

-Não faça isso, moça!! Quer subjugá-lo aos interesses espúrios das multinacionais?? – A moça que não sabia nem o que era subjugar, nem espúrio e nem multinacional, disse:

-Tá bom! Não sabia que batatinha e refri do Mc causavam doenças!! – Nesta hora, para acalmar os ânimos, um dos moradores que era padre propôs uma oração coletiva para ajudar o menino, algumas senhoras entusiasmadas o acompanharam cantando Ave Maria. Eis que violentamente abre uma janela do apartamento térreo próximo à praça do condomínio:

-Dá para berrarem mais baixo ???? Estou estudando para concurso público!!! – Disse um morador pálido, cabeludo e barbudo que a mais cinco anos não saia de casa.

-Há um ser humano filho de Deus com fome e precisamos ajudá-lo! – Disse o padre.

-Eu nem sei mais o que é um ser humano! Só sei que tenho uma prova importante para fazer!!! – Disse o concurseiro sutilmente fechando sua janela que acabava de trincar. A família de Sid estava voltando do almoço e entrando no condomínio ele disse:

-Pai, mãe olhaaa!! Estão dando uma festa para o Ninguém! Vamos lá? – Curiosa, a família desceu do seu sedan prata e se juntou ao grupo. Sid se apresentou ao menino e emprestou seu celular para ele brincar:

-Você não gosta de jogar, Ninguém? Quer que meu pai compre um pão para você? – Nesta hora o pai de Sid, que era candidato a reeleição de síndico, falou:

-Darei não só um pão para este desfavorecido ser humano, mas um rancho inteiro para sua família, isto se eleito for na terça-feira que vem. – A maioria do grupo que ali estava ovacionou a fala do candidato, porém uma pessoa da chapa de oposição o questionou:

- A necessidade de saciar a fome do menino é iminente!! O que o senhor vai fazer? – Alguns minutos depois o pai de Sid que estava falando ao celular, respondeu:

-Acabei de falar com o prefeito, meu amigo de longa data, e ele me garantiu que em trinta dias estará abrindo uma licitação para a compra diária de um pão para este infante que é o futuro do Brasil!! – Mais uma vez o candidato foi aplaudido. Seu opositor ainda insistiu:

-Mas como resolver a fome dele agora, já??

-Você mesmo que me questiona pode ir ali ao mercadinho e pedir um pão e uma banana. – Novamente todos bateram palmas, menos o dono do mercado que respondeu:

-Quem pratica assistencialismo social é o governo! Eu sou apenas um microempresário sujeito às leis de mercado ditadas pela oferta e demanda, além disso, já sou devidamente tributado pelo poder público!! – Enquanto todos discutiam veementemente, o pequeno Sid perguntou ao padre:

-Seu padre, será que o menino Ninguém pode ficar na casa do senhor?

-Impossível meu jovenzinho, em minha casa não há acomodações confortáveis para um hóspede.

-Eu não digo na casa do senhor, falo na casa do SENHOR entendeu? – Percebendo que Sidartha estava incomodando o padre, seu pai o puxou para o lado a fim de distrair sua atenção. Sid subiu até o seu apartamento, foi até a cozinha, pegou uma fatia de presunto e desceu. Ao oferecê-lo ao faminto garoto o padre o repreendeu:

- Menino, hoje é sexta-feira Santa! Não podes dar carne vermelha para este pobre cristão!! Ao menos que queiras torná-lo um pecador? – Nesta hora uma das senhoras que estava rezando pegou o presunto e deu para o “yorkshire” de uma vizinha, salvando assim o faminto garoto de uma heresia. Outro morador, indignado, gritou:

-Vão todos aí ficar assistindo o menino passando fome?? – Uma professora de português que estava fazendo “cooper” o corrigiu:

- Assistindo “AO” menino passando fome!! Se as pessoas assistissem amiúde com a transitividade direta do verbo, estes problemas sociais seriam bem menos freqüentes!! - Com o queixo erguido a professora continuou sua corrida e sem entender direito a intervenção gramatical o morador pegou uma Constituição da República Federativa do Brasil e falou:

-A alimentação é um direito social, constitucional garantido a todos os desamparados, conforme o artigo 6º!! – Do alto da sacada do 5º andar rebateu um professor doutor:

-Vossos discursos são superficiais e reacionários, outrossim, desprovidos de qualquer conhecimento hermenêutico. Com meia dúzia de palavras eu os convenço de que estão todos errados!!

-Sem entender nada o menino Sid de apenas 8 anos, olhando para a sacada do professor doutor, gritou:

Tiiiiiiiiiiiiiooo!!!! O senhor tem um pããão???? – A discussão continuou por mais um tempo; empresários recriminavam o governo; militares, os comunistas; socialistas, os neoliberais; substancialistas, os concretistas; católicos, os maçons; religiosos, os ateus; gremistas, os colorados; morenas, as loiras... No meio de tão acalorado debate, Sid pegou a constituição e deu para Ninguém:

- Hei amigo! Aquele tio ali disse que aqui tem um alimento, coma!! – O menino Ninguém arrancou a página que continha o artigo 6º, mastigou e engoliu. Sentindo uma grande náusea por ingerir papel o pobre menino regurgitou tudo sobre o artigo 1º. Revoltado, o dono do livro disse:

-Pela memória de Ulysses, minha Constituição está toda vomitada!! Quem vai me pagar uma nova?? – Mediante a palavra “pagar” o grupo foi se dispersando, também já estava chegando a tardinha e os estômagos guiavam cada um as suas respectivas geladeiras. O debate fora tão agitado que quase ninguém se lembrou do menino esfomeado, exceto Sid, que buscou algumas revistas e jornais para tapar o garoto. Não satisfeito com o travesseiro de revistas “Caras” e com o cobertor de jornal “Valor Econômico”, Sidartha pegou, escondido de seus pais, três telas que ornamentavam a sala do apartamento e com elas fez uma pequena cabana para Ninguém não ficar no sereno. Depois, como já era tarde, subiu para jantar com seus pais.

Algumas horas haviam passado e nenhum morador estava na praça do condomínio quando a curadora de um museu estacionou seu hatchback de luxo prata ao lado das telas que abrigavam o menino. Perplexa, ela falou para si mesma:

- Quem é o vizinho insensível e energúmeno que desrespeita a obra de Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Michelangelo??? Onde já se viu deixar ao relento estas réplicas de “O retirante”, “Antropofagia” e “Hand of God”? Só uma alma deveras estúpida seria capaz de uma atrocidade dessas!! – Indignada, a curadora guardou as obras em seu carro e depois reclamou para o zelador dizendo que a praça estava cheia de entulhos.

Na manhã seguinte Sid acordou mais cedo do que de costume, sem tomar café da manhã desceu ansioso até a praça para ver o seu amigo. Tudo, porém, estava normal, a praça estava limpa e sem nenhum sinal do menino. Sid perguntou ao porteiro:

-Onde está Ninguém?

-Em lugar nenhum. – Disse o porteiro intrigado com a pergunta inusitada do menino.

-Ahh!! Meu amigo foi embora!! – Falou com lamento o pequeno Sid. O porteiro sem entender o contexto da conversa pensou: “esse gurizinho deve ter fugido do hospício.”.

Em frente ao condomínio um papeleiro revirava tranquilamente o lixo de um container, ele pegava revistas, jornais, um livro melecado, pães velhos, bananas podres que estavam embaixo de um franzino corpo que a inanição e o frio consumiram na noite passada.

Sem família, sem nome, sem voz, sem registro o pequeno corpo do menino não será nem um índice das estatísticas que alimenta as planilhas e os gráficos dos governos, das ONGs e das demais organizações.

Assim ninguém se lembrará de Ninguém, exceto um menino bobo e ingênuo que guarda a bondade em seu olhar.