Tempos modernos (março de 2013)

Esta história é a história de um homem humilde – lavador de carros – que tendo encontrado na rua uma joia, devolveu-a e recebeu como recompensa uma nota de cinquenta reais. Depois desse dia, ficou viciado em caçar coisas de valor na rua. Resolveu viver de uma boa ação todo dia, mas sua procura por preciosidades perdidas ou esquecidas nas ruas era sempre em vão.

O acontecido, a devolução da joia (um anel de brilhantes), que aqui venho contar, ocorreu em um final de tarde, de um outono chuvoso, no ano de 2005. Fazia anos que Ânio trabalhava como lavador de carros na rua, próximo â Praça da Central, no centro da cidade. Dava seu último retoque com uma flanela quando notou certo brilho no chão, perto do bueiro.

Ágil, curvou-se em direção ao bueiro sentando-se sobre os calcanhares. Havia uma fresta entre o paralelepípedo e o bueiro de onde vinha o brilho da joia. De primeira, não imaginou que se tratasse de uma joia com diamantes – isso não lhe passava pela cabeça. O que o moveu para inspecionar a pequena fresta foi a mais pura curiosidade.

Difícil de atingir a joia, Ânio tomou às mãos um pequeno palito de picolé de madeira que se encontrava logo ao lado, perto da roda do automóvel que lavara. Literalmente riscando o chão com o palito de picolé, o rapaz conseguiu – com certo esforço – retirar da fresta o anel de brilhantes. Muito surpreso com o achado, primeiro duvidou que fosse verdadeiro.

Olhava de um lado ao outro para ver se alguém o havia visto. Ninguém. Pensou em levar para alguém que o pudesse avaliá-lo, mas reconheceu que ninguém acreditaria que (uma vez que fosse verdadeiro o anel), ninguém acreditaria que Ânio o teria tão simplesmente encontrado na rua. Acreditariam que ele o houvesse roubado e isso o entristeceu.

Imaginou seu colega Manuel zombando de seu achado: “Achado não é roubado, quem perdeu é relaxado.” E cairia na gargalhada. Ainda lhe diria, talvez, que pusesse suas mãos para o céu e agradecesse o presente divino. Provavelmente, Manuel o persuadiria a trocar o anel por duas quentinhas no restaurante da esquina. Afinal, o anel até que era bonitinho. Maneiro.

Não disse nada para Manuel. Pôs o anel no bolso do casaquinho – que vestia para protegê-lo do tempo frio – e levou o objeto para casa. Pensou sobre seu destino por aproximadamente uma semana, até que resolveu com seus botões que tinha que devolver o anel para o seu dono (ou dona). Decidido, faltava apenas saber o que fazer para poder devolver a joia.

O anel pertencia à esposa do dono da padaria: bastou que Ânio espalhasse o rumor de que ele havia encontrado um anel de brilhantes próximo a um bueiro na proximidade da Praça da Central de Ônibus – para que, passados um pouco mais que três dias – o Sr. Joaquim Afonso o procurasse com uma nota generosa de cinquenta reais na mão. E um abraço afável.

Seu Joaquim da padaria ficou tão agradecido coma honestidade de Ânio que pagou o pequeno jornal do comércio (uma publicação local), para contar todo o ocorrido. O jornal, em letras maiúsculas na manchete (de primeira página), dizia: “A HONESTIDADE NOS DIAS DE HOJE”. Ali estava com muito estilo toda a história da devolução de Ânio da joia para o dono da padaria.

Depois do dia em que ficou sabendo da reportagem sobre seu ato heroico e inesperado de honestidade – Ânio ficou sabendo da boca de Manuel, seu colega irônico, uma vez que não sabia ler – depois desse dia, então, o lavador de carros ganhou um novo prumo. Depois que soube de seu ato de honestidade no jornal, seus olhos passaram a brilhar diferente.

Algumas pessoas, que o conheciam da rua, passaram a acenar para ele curvando a cabeça. Outras pessoas, menos tímidas, cumprimentavam-no com um sorriso e, dentre todas, havia ainda aquelas que passaram a desejar-lhe um bom-dia ou boa-tarde. Ânio pode experimentar pela primeira vez na vida o prazer de ver-se digno de um “olá”, ou de um “bom-dia”.

Ânio – cujo nome herdou de um bisavô italiano – passava então do anonimato para a vida honrosa (não que isso fosse durar mais que uma semana, não se sabia), mas o rapaz provava pela primeira vez na vida o gostinho de ser alguém, o sabor (lá no fundinho), de uma vida de delicadezas, uma vida de honra e glória. Dizia para si mesmo e em voz alta: “Ânio, o honesto”.

Mas o dia chegou em que as pessoas não falavam mais de Ânio, terrível decepção a sua, não mais lembravam-se do jornal do comércio local, e não queriam mais saber do anel de brilhantes da esposa do Seu Joaquim Afonso da padaria. Ânio voltou então a ser aquele pobre mortal que lavava carros no centro da cidade, próximo da Praça da Central de Ônibus.

Passados alguns meses (assim segue a história que conto), Ânio demonstrava menor e menor interesse pelos carros que lavava. Parecia, aos olhos de quem o conhecia, que estava perdido em outro universo, e que talvez ainda sonhasse com a nota de cinquenta reais do começo de nossa história – talvez – em formato de borboleta com asas para bater e para voar.

Louco. Trazia amarrado na cintura uma sacola plástica de supermercado repleta de tampinhas de garrafa. Dizem “Nem tudo o que reluz é ouro”, e isso parece se encaixar na história de Ânio: As tampinhas pareciam brilhar para ele, assim como um dia brilhou o anel de brilhantes. Ele não aparentava se importar com a dessemelhança entre o ouro do anel e a lata das tampinhas.

Louco foi o que o colega Manuel pensou de toda a história e intencionou adverti-lo assim: “Tá doido? Por acaso champinha de refrigerante é ouro, meu rei?” Manuel deu o vaticínio e desferiu dois cascudos na cabeça de Ânio. Era para que despertasse do encanto da honra, da nota de cinquentinha voando alto... Para que despertasse da tolice do anel de diamante.

Diante dos cascudos de Manuel, Ânio pareceu despertar do sonho. Olhou o colega Manuel nos olhos e respirou fundo. Depois redarguiu, “Quem nasceu prá rua não chega nunca a ser mestre, né coroa?” Olhou para o saco onde estava a grande coleção de tampinhas que juntara por semanas a fio, e deu uma chacoalhada. Gargalharam os dois, Manuel e Ânio.

Ele, que caçara por dias sem fim em todas as frestas de bueiros e paralelepípedos sem nada encontrar... “Que loucura, Ânio!” – Manuel deu fim à situação! Ânio, que caçara borboletas em forma de notas de dinheiro, e imaginou até diamantes em tampinhas de lata, voltava agora â realidade. E isto queria dizer muito carro para lavar e muita flanelinha para enxugar.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 26/03/2013
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4209318
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.