Sonhos Funestos

A tranquilidade imperava naquela grande casa. A mulher sentada no sofá duma grande sala de estar, com os olhos fechados, deliciava-se com a música de piano vinda dum cômodo contíguo. E assim permaneceria até receber o marido, costumeiramente mal-humorado e queixoso de seu exaustivo dia de trabalho.

O homem era pelo menos dez anos mais velho que sua esposa, que já estava acostumada a ouvir suas reclamações referentes ao delicado trabalho que o marido exercia. Ele sempre falava em tom meio desesperador, como se a cada dia fosse lhe apresentado algo que colocava sua carreira em sério risco, mas sua esposa não as levava tão a sério, pois tinham se tornado triviais.

E naquele dia, como em outro qualquer, ele falava com convicção e vivacidade sobre seu dia de trabalho, até que algo lhe distraiu a atenção.

- Que música é essa? - questiona o homem.

- É o James que está tocando. - responde ela, sorridente.

- Mas isso é. . . - pela primeira vez, as palavras pareciam fugir - inadmissível. - Completou ele.

Com passo firme, andou rapidamente em direção à sala do piano. A esposa, preocupada, seguia-o. Ele abriu a porta com violência gritando:

- James! - o garoto de dez anos, sentado ao piano, interrompeu imediatamente sua música e ficou olhando para o pai com rosto inexpressivo.

Ainda com passo firme, o homem foi em direção ao piano e forçosamente tirou o garoto dali, puxando-o com violência pelo braço.

- Você acha que está em posição de ficar brincando com o piano?

- Brincando? - retruca o filho, ainda sem expressão. - O que eu estou fazendo é música. É arte!

- Arte? - diz o homem numa risada desdenhosa. - Você acha que pode viver de arte? A arte não traz nada de relevante a este mundo! - ele virou a face, com um sorriso tanto escarnecedor.

- Poderia responder que sem a arte não existiria nada de relevante no mundo, mas você não iria entender.

- Uma coisa eu entendo! - exclama o outro. Inesperadamente, saiu da pequena sala em que ficava nada além do piano, deixando os dois ali, intrigados, um olhando para o outro.

- Eu. . . - foi a única palavra que a mulher pronunciou. Talvez por intimidação, talvez por confusão, não conseguiu formular nenhuma frase concisa.

- Não precisa dizer nada, mamãe. - respondeu o garoto, fechando a tampa do piano.

- Veja isso! - o vozeirão do homem vindo da sala alertou sua chegada. Ele segurava uma folha de papel.

- Essas são as suas notas do último bimestre. Que me diz? - a esposa, vendo as notas, poderia argumentar que eram satisfatórias. De fato, muito acima da média em todas as disciplinas, mas poucas chegavam à nota máxima.

- O que posso dizer? Você já disse tudo.

- Além de tudo é sarcástico. - responde o homem. - Pra mim essa é a evidência clara que seus estudos são um fiasco. E isso é porque você fica perdendo tempo com esse seu piano. Arte? A arte é linda, maravilhosa, mas de que adianta se ela vai lhe roubar o futuro? Se você quer depender da música para viver, boa sorte. Agora chega de piano por hoje e vá estudar! - ele deu uma breve risada.

- Qual é a graça?

- Você sempre diz a mesma coisa.

- É porque você não mostra nenhuma melhora. Por isso me obriga a ser tão rígido.

- E se eu melhorar?

- Não é mais que sua obrigação.

- E se eu conseguir exatamente o que você quer de mim? - a pergunta deixou o pai um tanto sem graça, mas de alguma forma lhe divertia.

- Se você conseguir atender todas as minhas expectativas eu ficaria muito feliz e contente.

- Eu entendi. É isso que você quer que eu, seu filho, seja. Uma máquina de estudar.

- Você também sempre usa os mesmos argumentos, James. Você não percebe que eu apenas estou preocupado com seu futuro? Se eu não fosse tão severo, você se tornaria um vagabundo de tempo integral, então agradeça a Deus por ter um pai consciente.

- Um pai consciente deveria desejar, acima de tudo, a felicidade de seus filhos.

- Concordo! - disse a mulher, que se via exclusa da conversa até então por um motivo evidente: era sumariamente ignorada.

- Estou pensando na felicidade que você terá no futuro. . .

- Você pode me fazer feliz! - gritou James. Pela primeira vez, sua expressão mudou. Era um semblante irado. - Se eu atendo ás suas expectativas como filho, você como pai pode me fazer feliz.

- Você não precisa de nenhum incentivo pra estudar. Mas acho que você está certo. O que você quer de mim?

- Uma coisa que nunca tive: um professor de piano. - o requerimento não poderia tê-lo deixado mais aturdido.

- Isso é perfeito! - falou a mulher. - Isaac, nosso James pode ser um prodígio na música! Se ele conseguir melhorar nos estudos como você quer, seria justo você deixar ele desenvolver essa arte que ele ama tanto!

- Está enganada. - disse ele. - Não quero nenhum filho músico. Só quero alguém que possa herdar a minha empresa e os meus negócios. O que o James está pedindo não é nenhuma oportunidade de crescimento relevante na vida. - deu ênfase à palavra “relevante” - é apenas um capricho. Mas vocês me convenceram. É para sua diversão, que você precisa, e talvez seja um incentivo pra você estudar mais, já que só falar não adianta nada. James, se você conseguir a nota máxima em todas as disciplinas do próximo bimestre, eu vou contratar um professor de piano pra você. Agora vá estudar! - dizendo isso, retirou-se.

O garoto parecia atônito, olhando para o nada. A mulher resolveu intervir com uma fala calma:

- Eu gosto muito da sua música, James.

- Eu não toco pra agradar você, mamãe.

- Eu sei - disse ela. - Você toca porque gosta. E eu queria muito que você progredisse. - ele a fitou com a mesma expressão de antes.

- Você não contribui em nada para o meu progresso.

- Não leve isso a mal. - falou a mulher, pondo as mãos em seus ombros e fitando-o nos olhos. - Eu sou impotente contra a vontade de seu pai. Seus estudos são importantes, sim, mas você deve se dedicar àquilo que você gosta. - James abriu um sorriso.

Talvez aquela fosse a oportunidade.

Isaac Hope era um homem espantosamente alto e forte, com um largo bigode que quase não permitia que se visse os lábios, cabeça redonda por causa do raso cabelo crespo, nariz grande e costeletas dignas de Asimov. Seus olhos sob o óculos pareciam constantemente interrogativos. Ele havia fundado, em sua adolescência, a empresa que havia crescido a ponto de se tornar uma multinacional. Começou como um pequeno negócio com seu amigo e sócio Jefferson. Chamaram a empresa de Jefferson Hope. Suas ideias eram brilhantes e ousadas, que fez a empresa crescer rapidamente. Porém, ao atingir o nível de multinacional, por motivos ideológicos e econômicos, a empresa se dividiu em duas em decorrência das incorrigíveis discordâncias de seus dois idealizadores. Isaac ficou então com uma empresa chamada de Hope enterprises. Como levava seu sobrenome, seria lógico que fosse passada para as gerações posteriores da família. E Isaac, tinha apenas um possível herdeiro, o garoto James.

James era um garoto alto, assim como seu pai, de cabelos ruivos que gostava de deixar bem bagunçados e uma face perfeitamente oval, que ficava bem marcada pelo seu emblemático sorriso malicioso.

O amor de James pela música foi despertado bem cedo. Intrigava-lhe aquele objeto tão grande que tinha uma sala reservada só para ele, que seus pais chamavam de piano. Ninguém nunca mexia nele. Para que ele servia? Talvez por nada mais que curiosidade, foi aos quatro anos que James se arriscou a tocá-lo. Tocava notas repetidas ou sem concisão, mas a diversidade de sons lhe deixou realmente impressionado. Logo estava tocando o piano com dedicação. Queria melhorar, queria progredir. Queria ser capaz de produzir a verdadeira arte da música. Estudou muito, mas nunca teve um professor. A mãe até havia levantando essa possibilidade muitas vezes antes, mas Isaac não levou a sério, porque achava que James também não levava o piano a sério. Era apenas um passatempo, apenas uma brincadeira.

Mas quando James entrou na escola e suas notas não eram como Isaac esperava, foi então que ele percebeu que a música poderia ser até mesmo prejudicial.

Seu raciocino tinha lógica: obviamente, uma pessoa não pode dar o seu máximo em duas coisas. Se o desempenho de James na escola não era espetacular, era porque a música lhe roubou parte de sua dedicação. Discussões como a daquela noite haviam começado anos antes e eram frequentes. James sempre ficava chateado com isso, não apenas por ficar privado do piano, mas também por não poder agradar seu pai. Mas amava demais a música para abandoná-la.

E naquelas noites em que ficava inexoravelmente preso aos seus estudos, várias meditações lhe vinham à mente, e James concluía sempre que nada havia feito de errado. Mas seu pai não pensava assim. E foi numa noite dessas que ele acabou chegando à conclusão que apresentou ao seu pai naquele dia. Para sua surpresa, ele havia aceitado a proposta sem muita oposição.

James dedicou-se aos estudos com tanto afinco quando ao piano. Não era, como se imaginava, que estivesse incentivado pela ideia de ter um professor. Ele apenas queria agradar o seu pai. Queria muito ser o filho que ele esperava que fosse. Atender as suas expectativas. Só que ele queria dedicar a sua vida a uma atividade diferente. O que poderia haver de errado nisso?

Com esforço e paciência, resultados são alcançados. E foi o que aconteceu no caso de James. Depois de ter estudado muito, atingiu a nota máxima em todas as disciplinas, exatamente como esperado por ambos, pai e filho. Orgulhoso e contente, Isaac teve que cumprir a sua promessa. Logo na semana seguinte à formatura do primário, lá estava o professor particular de piano, com altas recomendações, assistindo seu pupilo tocar o piano que tanto amava.

- Você toca muito bem, James, e tem excepcional facilidade de ler partituras. Jura que nunca teve aulas antes? - questiona o professor.

- Tecnicamente, não, mas eu me treino muito desde os quatro anos.

- E durante todos esses anos você estudou sozinho?

- Sim. Nunca tive ninguém pra me ensinar.

- Mesmo assim já é uma boa base. Tenho certeza que com meu auxílio você vai melhorar muito. Agora basta. Chega de tocar. - ele interrompeu a música que estava em execução imediatamente.

- Você toca bem, James - continuou ele. - mas sinto certa tristeza na sua música.

- Ah! - fez James. - é ótimo que eu consiga expressar meus sentimentos através das notas. - O professor riu.

- Se faz isso mesmo sem perceber, então devem ser sentimentos muito fortes.

Em resposta, o garoto tocou o acorde de ré com violência na oitava inferior, gerando um som alto e grave. Contou sua situação ao professor com todos os detalhes.

- Você vive o dilema de Schumann. - concluiu ele.

- Os pais de Schumann não lhe proibiam de tocar. - falou ele, em resposta.

- Os seus também não, caso contrário não teriam me contratado. - ele ficou olhando-o, intrigado.

- James, fica aqui minha primeira lição: jamais permita que ninguém lhe impeça de alcançar seus objetivos. Você é capaz de conseguir, mas se sua força de vontade for pouca, você terá muitas dificuldades.

Essa lição mostrou-se fundamental na vida de James nos anos seguintes. Ele sabia muito bem que, se não fosse excepcionalmente bem nos estudos, suas aulas de piano seriam canceladas. Ele se esforçava nos estudos, mas seus esforços eram moderados, mesmo que isso seja contraditório. Queria melhorar no piano também, mas era difícil conseguir as duas coisas. Com esforço, porém, parecia que James conseguia. Durante os anos seguintes, ele mostrou ser o melhor da turma em todas as disciplinas. Ao mesmo tempo, manifestava seu progresso no piano.

Apesar da forte pressão, pode-se dizer que James aproveitou muito bem a sua juventude. Ele se dava muito bem com seus colegas de escola, e várias garotas se adiantavam em se aproximar dele por causa de sua boa aparência. Mas suas amizades sempre se viam restritas por causa das responsabilidades que ele tinha que assumir, de ser o melhor na escola e no piano.

Por mais que se esforçasse, sempre parecia que algo estava faltando. No fundo ele tinha a sensação que, cedo ou tarde, uma das duas coisas teria que ceder o seu lugar a outra. E, na verdade, ele não teria escolha. Teria que largar a música e assumir a empresa. Evidentemente, Isaac tinha o mesmo pensamento.

E realmente, preocupante seria se não progredisse, considerando seu afinco e sua dedicação, durante as aulas e à parte delas também. Sua mãe sempre esteve lá para ouvi-lo. Ela sempre gostou de sua música, e notou o extraordinário progresso do rapaz. Quando James tocava, ela amiúde ficava ali, sentada no sofá da sala, apreciando a bela música produzida pelos dedos de sua prole.

Num desses dias, porém, tão fascinada que ficou com a música que ouvia, decidiu adentrar à sala do piano e falar com ele. Quando ela entrou, James parou de tocar. Não que a presença dela ali lhe atrapalhasse. Mas ela sabia melhor do que ninguém o quanto a música era importante para ele, portanto, se o interrompeu, com certeza tinha algo importante para dizer. Assim, ele parou de tocar e ficou olhando para interrogativo para ela.

- Você toca muito bem! - exclamou.

- Você não veio até aqui só para me elogiar.

- Não - ela andou até seu lado. - Vim para dizer que tenho muito orgulho de você, que amo o som do seu piano e acho que qualquer esforço que você faz é válido. Se você gosta da música, tem que se dedicar a ela. - sua voz era serena e confortadora. - Seria um desperdício se isso não acontecesse. E acho ainda mais impressionante pensar que nunca tivemos um músico na família.

James suspirou, fez um glissando e respondeu:

- E eu não serei o primeiro.

- Mas por quê?

- Ora, por quê? Papai não vai deixar em seguir carreira na música. Eu tenho mesmo é que herdar a empresa.

- E é isso que você quer?

- Não. Não me atrai nada. A verdade é que nunca tive a curiosidade de saber como é ser dono duma empresa. Não sei se isso é bom ou ruim.

- Não é bom nem ruim. Ninguém pode se interessar por tudo. Você já encontrou a sua vocação. Se você não tem curiosidade de saber como uma coisa é, não precisa experimentá-la. - ele lançou sobre ela um olhar de ironia.

- Eu não acredito que você disse isso. Você sabe muito bem que é meu destino. - A mulher ficou um tanto aturdida de ver o rapaz se expressar.

- Você foi muito influenciado pelas ideias do seu pai. Ninguém é de ninguém. Ele te deu a vida, mas não significa que tem o direito de decidir o seu futuro. Se você mesmo não escolher o que. . .

- Já chega, mamãe. - James interrompe. Imediatamente ele volta a tocar a música que estava tocando quando ela entrou.

Ela ficou algum tempo ali, parada, esperando mais alguma palavra. Mas não havia palavras. Havia apenas a música. Ela se retirou, mas quando já estava fechando a porta da saleta, James parou de tocar e, de frente para o piano, sem olhar para ela, disse:

- Você mesma disse que é impotente contra a vontade dele. - ela forçou um sorriso e respondeu:

- E ele será impotente contra a sua vontade. - dito isso saiu.

James continuou tocando até tarde da noite. Finalmente terminou, exausto mas ao mesmo tempo satisfeito por ter dominado aquela música particularmente difícil e desafiadora. Ao sair da saleta do piano, impressionou-se com a presença inesperada do pai ali na sala de estar, sentado no sofá e lendo um livro.

- Você toca muito bem. - falou, sem tirar os olhos das páginas do livro.

- Estranho. - falou James. - Você nunca elogiou a minha música antes.

- E meu elogio não foi para você ficar orgulhoso. É que estou preocupado. - James logo previu o sermão que estava por vir. Sentou-se numa poltrona. Seria mais realista dizer que deixou seu corpo desabar na poltrona em virtude do cansaço.

- Você tem se dedicado muito à música, e tem progredido sobremaneira. Sua habilidade é de dar inveja a muitos garotos da sua idade que sonham em ser músicos. É irônico que você não tenha o mesmo sonho que eles.

- Está bem. Já sei o que você vai dizer. Mas você está errado.

- Você não pode me contrariar, James.

- É claro que posso. - James tinha firmeza na voz, mas a exaustão não lhe permitia assumir postura imponente como a de seu pai. - Você pode escolher o meu futuro, mas não os meus sonhos.

- E seu sonho é ser músico?

- É sim, e não vou deixar que a sua vontade me impeça de persegui-lo. Não importa o que eu tenha que fazer. - ele falava com os olhos fechados e a cabeça apoiada numa das mãos.

- Ouça, James, você é jovem e inexperiente, e está iludido. A música é importante, mas a economia é muito mais importante. Você é o único que pode herdar a Hope enterprises, e perceberá que esse empenho é muito melhor, em todos os sentidos, que ser músico. Se não existissem pessoas como eu, não poderiam existir músicos, artistas em geral, que dependem duma. . . James, você está me ouvindo? - não houve resposta.

- Ele está dormindo? - Indagou Isaac, indignado. - Isso é absurdo! Ele não tem nenhum respeito por mim.

- Ao contrário, ele te respeita com todas as forças. - falou a esposa, chegando à sala naquele momento. - Caso contrário não se dedicaria tanto aos estudos para te agradar. - Isaac soltou um áspero grunhido.

- Me agradar? Ele me agradaria mais se prestasse atenção no que estou falando.

- Isaac, o que estou dizendo é que ele faz de tudo para que você olhe para ele. Ele quer te deixar orgulhoso, mas a música é muito importante para ele, e ele não vai desistir dela.

- Vai sim! - exclamou o homem, já se mostrando irritado. - Ele sabe que vai. Não pode ser músico e empresário ao mesmo tempo. Uma hora a música vai se interpor em seu caminho para a presidência da Hope enterprises, e ele terá que deixá-la de lado.

- Ou seria o contrário? - Isaac não respondeu. Não valeria a pena. Ele não precisava convencer ninguém de nada. O futuro do garoto já estava escrito. Apenas pegou seu livro e saiu.

- Isaac - a esposa chamou-lhe enquanto ele caminhava para seu quarto. - Eu vou fazer de tudo para que o mundo não seja privado da música de James.

Ainda sentado na poltrona, James ouviu essa última frase, e ela lhe servia de certo consolo. Sua mãe era a favor do amadurecimento musical do rapaz, mas isso não inibia o seu dilema. De jeito nenhum.

- Eu não posso me envolver em questões familiares. - disse o professor. - Mas você realmente tem que se tornar um músico profissional, James. Você é o melhor aluno que já tive. Eu digo que ficaria muito triste se você deixasse a música por qualquer outra coisa. - Recostado ao piano, ele fitava o horizonte.

- Acha que o mundo precisa de mim como músico?

- Acho sim. - disse o professor. - Nenhum talento pode ser desperdiçado. - James levantou-se.

- Professor, você parece que age em oposição ao meu pai. Ele quer de toda a forma que eu seja o seu sucessor, e você parece me impor uma carreira musical. - O professor não se ofendeu. Soltou um riso e respondeu:

- Naturalmente, mas eu sei muito bem que é isso que você quer. - o rapaz o olhou com uma expressão séria. - Se você não amasse a música, não teria começado as aulas comigo. Nada será mais forte que seu amor, disso eu tenho certeza.

Sem responder mais nada, ele saiu. Pela primeira vez a aula tinha acabado mais cedo.

Quando James tinha dezesseis anos, seu professor declarou que seu treinamento estava completo. Ele havia atingido tal nível de habilidade no piano que, dali em diante, seu progresso dependeria apenas dele mesmo, e o professor não teria influência nele.

- Como demonstração e ao mesmo tempo celebração - falou James, durante o jantar da família daquele dia. - Eu vou tocar uma música pra vocês. Hoje eu quero deixar os meus pais orgulhosos. - Olhou intencionalmente para Isaac, que o olhava com certa desconfiança.

Logo que o jantar acabou, todos se reuniram na pequena saleta do piano. Ela nunca tinha ficado tão cheia antes. James estava radiante. Parecia ser a primeira vez que ele trocaria para uma plateia, que incluía os criados da casa e seu professor.

Tocou inteiro o concerto em Sol Maior de Ravel. Sua concentração era incrível, e ele não errou nem uma única nota na performance de cerca de vinte minutos. A mãe estava muito alegre por ouvi-lo, mas o pai parecia não se agradar com o impressionismo. No entanto, quando a música acabou ele foi generosamente apoiado por uma salva de palmas, e logo que se levantou da banqueta, seu pai cumprimentou-o animadamente.

- Meus parabéns, James, isso foi incrível! - o rapaz estava intrigado.

- É mesmo?

- Sim, você tocou maravilhosamente. Foi uma apresentação digna dum pianista profissional. - reconhecimento paterno. James realmente não estava esperando por isso.

- Muito obrigado, papai! - disse, feliz e radiante. - Essa peça foi originalmente composta para piano e orquestra. Já imaginaram se algum dia eu puder tocá-la acompanhado duma orquestra?

- Mas isso não vai acontecer, meu caro. - falou Isaac - porque de agora em diante você não vai mais estudar música. - todos, surpresos, suspiraram em sincronia.

- O quê? - exclamou o rapaz, inconformado.

- Nós tivemos um trato, não foi? Se você fosse atendesse minhas expectativas, eu contrataria um professor de piano. Pois bem, você fez sua parte e eu fiz a minha. O professor mesmo disse que seu curso está concluído, então a partir de agora você tem que estudar para o real objetivo da sua vida, que é a Hope enterprises.

- Isso não é justo! - exclamou James.

- A música deveria ser não mais que uma forma de lazer, de diversão, e eu deixei você usufruir dela, mas você sabe muito bem que ela não deve ficar no seu caminho.

- “Caminho”? A Hope enterprises é que não deve ficar entre mim e a música.

- Eu não estou te dando opção, James.

- Senhor Hope - disse o professor. - Permita-me dizer que James tem um talento anormal para a música. Seria um desperdício se ele não pudesse atingir o máximo de seu potencial.

- Isso não importa. - disse Isaac - Eu reconheço que ele tem um grande talento, mas não poderá progredir mais. Um sacrifício? Sem dúvida, mas é um sacrifício que eu tenho certeza que o James está disposto a fazer pela honra de nossa empresa.

- A decisão deveria ser só dele. - falou a mãe. Todos olharam o rapaz fixamente.

- O que você tem a dizer, James?

- Deixem-me em paz. Com licença. - ele andava apressadamente em direção ao seu quarto.

- James! - chamou o pai. Ele parou de caminhar. - Você sabe que daqui um ano você tem que prestar vestibular para cursar administração na mesma universidade que eu. Eu já te inscrevi num cursinho. A partir de agora, toda noite e ás manhãs de sábado, não tem mais piano!

Em resposta, o rapaz apenas lançou um olhar frio e seguiu seu caminho.

Chegando ao seu quarto, ele apenas ligou seu aparelho de som com um CD de Bach e se deitou em sua cama, meditando questões profundas.

- Herdar a Hope enterprises é meu destino. - ele sussurrava para si mesmo. - Mas eu posso superar o meu destino!

Era como se James tivesse resignado. Começou a frequentar o cursinho e se dedicava o máximo às tarefas da escola. Mesmo em seu tempo livre, o estudo parecia ter predominância sobre a música. O tempo dedicado a música se tornou muito restrito. Em contrapartida, tornou-se o melhor aluno da escola e tinha destaque em seu cursinho. Seu destaque era tamanho que chamou a atenção de seu professor.

- Seu desempenho é excepcional, James. Posso perguntar qual faculdade você pretende fazer? - sem emoção, ele se limitou a dizer o nome da universidade recomendada pelo pai. - Ah, excelente escolha! - continuou o professor.

Mesmo com elogios e incentivos, o rapaz parecia não estar estimulado. Pegou suas coisas e se dirigiu para fora da sala.

- Você tem boas chances, James Clerk Maxwell. - ouvindo o cômico apelido improvisado, ele parou sob o batente, meditou um momento e respondeu:

- Preferiria ser chamado de James Judd.

Ao sair porém, lembrou-se duma coisa: ele era apenas James Hope. Seu sobrenome, evidentemente, não seria alterado, mas o que as gerações seguintes pensariam quando ouvissem esse nome? Isso dependeria do que ele fizesse para si mesmo. E, na verdade, seu empenho era nesse sentido.

Quando faltava apenas um mês para a tão esperada prova, James largou tudo e se dedicou aos estudos de corpo e alma. Desde a hora que acordava, até a hora de dormir, ele saía do quarto apenas para tomar suas refeições. E, durante todo esse tempo, estava estudando como um fanático. Isso gerou curiosos comentários por parte de seus pais.

- Acho que finalmente ele percebeu o que tem que fazer com seu talento. - disse Isaac para sua esposa. Ela, de sua parte, não respondeu, mas apenas meditou no seu íntimo:

“James, meu filho, será que largou a música?” Sua preocupação foi grande o bastante para que ela lhe procurasse em seu quarto, onde ele estava deitado em sua cama, devorando um livro. Diferentemente de quando estava ao piano, não interrompeu sua atividade quando a mãe entrou.

- James. - disse ela. Não houve resposta. - Você largou a música?

- Provisoriamente - respondeu o rapaz.

- Claro - disse a mãe, num suspiro abafado. - Você nunca abandonaria a música que tanto ama, mas está estudando para herdar a empresa, não é? - ele nada respondeu. - Você tem certeza que conseguirá levar as duas coisas adiante? Você não precisa. . .

- Mamãe - falou, rispidamente - já está tudo planejado.

E esse planejamento seria posto em prática logo adiante.

James não apenas foi aprovado na universidade, como ficou entre os primeiros na administração. Depois que soube que tinha sido aprovado, porém, estranhamente o fanatismo pelo estudo se converteu em fanatismo pela música. Foi por pouco tempo, entre a divulgação da lista de aprovados e a matrícula na universidade. Mas durante esse pouco tempo, James parecia um louco tocando piano, dez, doze horas por dia, ás vezes com um afinco que simplesmente lhe fazia ignorar a fome e o cansaço que facilmente poderiam ser suprimidos, mas parecia que da música que provinha sua energia vital. Até parecia que morreria se parasse de tocar.

A conclusão de Isaac foi que ele estava aproveitando seus últimos momentos com a música, pois ela não poderia mais ser tão presente em sua vida depois que começasse a cursar administração. E, sem dúvida, James seria um excelente líder para a Hope enterprises. Afinal, mostrou-se mais astuto que o presidente da empresa.

Quando chegou o primeiro dia de aula, a conversa entre os calouros era empolgada. James mostrava-se animado em conversar com seus novos colegas, e não poucos deles o elogiaram quando ele se apresentou, pois se lembraram de seu nome devido ao destaque que tinha conquistado na lista de aprovados. Poderia ter formado amizades interessantes ali, mas para quê? Aquelas pessoas não tinham o mesmo objetivo na vida que ele.

Com o tempo, deram-se conta que era melhor que eles fossem para a sala, pois o horário da aula se aproximava. James seguiu outro caminho. Talvez por ser o primeiro dia, a secretaria estava cheia, mas ele esperou pacientemente a sua vez, até que pôde ser atendido.

- James Hope, administração. Vim para a troca de curso.

- Tão rápido assim? - falou a atendente, já julgando ser precipitada a decisão do rapaz por não ter assistindo nenhuma aula antes de manifestar a vontade de troca. - E para quê quer trocar? Economia? Direito? Sociologia?

- Música. - ele disse enfaticamente, com convicção. Mais uma vez deixou a mulher surpresa.

- Isso é um caso raro. Você quer trocar seu curso por outro de outra área, que não tem nada a ver com o que você está fazendo agora. - James apoiou-se espaçosamente nas costas da cadeira.

- Se a troca não for possível, eu faço música o ano que vem, mas nesse caso peço o cancelamento da minha matrícula.

- Eu não disse que você não pode trocar o curso, mas a transferência, no seu caso, é um processo um pouco complicado. Ser admitido em administração não significa que você está apto para cursar música, esse é o grande problema. Espere um momento, por favor.

Ela realizou uma ligação e depois se dirigiu a outro departamento, apresentando a proposta do rapaz. Foram horas de consultas e discussões, até que James finalmente teve uma resposta: faria um breve teste de suas aptidões musicais. Se passasse, poderia trocar o curso.

James foi encaminhado a uma pequena sala com espessas paredes com vários instrumentos musicais. Não havia nada na sala que não estivesse de alguma forma relacionado à música. O que mais se destacou para ele foi o grande piano de cauda Leipzig que parecia há muito abandonado. Era um piano antigo, mas ainda assim um instrumento caro e de qualidade. Dado o prolongamento da espera e ele sozinho ali na sala, movido pela curiosidade, levantou a tampa do piano e se surpreendeu com a preservação das teclas. Tomou a liberdade de sentar na banqueta enquanto dedilhava suavemente as teclas. Antes que pudesse começar a se divertir, porém, um homem já idoso, grisalho e de grande simpatia entrou na sala.

- Senhor James?

- Sim?

- Eu sou o professor de música desta universidade, muito prazer. - falou o homem. - Me contaram do seu pedido de transferência e eu fiquei muito curioso. - o rapaz olhava-o fixamente.

Estava nervoso e ao mesmo tempo contente. Nunca antes em sua vida estivera diante de alguém com tanta experiência musical como aquele homem. Seria um prazer tê-lo como mestre.

- Você gosta de música, não é? Por que não me mostra o que você sabe? - indagou, puxando para si uma cadeira e sentando-se ao lado do rapaz, que já estava convenientemente posicionado ao piano.

- Certo - disse ele, com um sorriso discreto. - Acho que vou tocar Beethoven.

- Oh! - fez o professor, em alusão a uma mínima. - Beethoven é sempre muito bom. Que vai tocar dele?

- Sonata ao Luar - responde James, pensativo.

- Música muito bonita - falou o professor.

“Mas também muito fácil” completou em pensamento. “Se for tudo que ele souber tocar, já é muito bom, mas não acho que seja o bastante para ele poder estudar nessa faculdade.”

Ao colocar suavemente os dedos sobre o teclado, James surpreendeu o professor com sua técnica e firmeza do Presto agitato, do terceiro movimento, pois ele estava esperando pelo Adagio sostenutto do primeiro movimento. A agilidade de seus dedos e olhos era impressionante e refletia muito bem a sua concentração. Estava se esforçando, evidentemente, mas não errou nem uma única nota. O professor ficou com vontade de elogiá-lo quando a música estava ainda em execução, mas seria um pecado interromper tão bela e agradável interpretação de Beethoven.

Terminados os quase sete minutos da música, o professor se levantou aplaudindo.

- Magnífico! Magnífico! - dizia ele, empolgado.

James olhava-o, parecendo um tanto aturdido. Sua insegura expressão era contrastante com aquela séria e convicta de quando executava a peça. Tinha dado seu melhor, claro, mas não esperava surpreender o professor daquela forma.

- Não preciso ver mais nada, jovem James. - disse ele. - Ninguém que não tivesse verdadeiro amor pela música tocaria como você tocou hoje. Se depender de mim, seu curso está transferido.

O caminho para a vitória foi longo e tortuoso, mas parecia finalmente ter chegado a um compensador prêmio. James estava muito feliz, mas sabia que ainda havia algo tortuoso pela frente. Não esconderia de seus pais a verdade.

As coisas não poderiam ter ocorrido de outra forma; naquele mesmo dia, durante o jantar da família, Isaac lançou a pergunta:

- E então, James, como foi o primeiro dia de aula? - o jovem soltou o garfo, fitou o pai profundamente e então respondeu com sinceridade:

- Não assisti nenhuma aula hoje.

- Sério? - retrucou ele - e o que fez na universidade o dia inteiro?

- Arranjei a minha transferência de curso. - as palavras pareciam ter um efeito nocivo ao homem. Ficou um longo momento olhando profundamente abismado para o rapaz.

- Transferência de curso? Mas por quê? Você sabe muito bem que administração é o que melhor se encaixa no seu caso.

- Não é não. - disse, firmemente, mas sem perder a compostura.

- Então pra que curso trocou? - perguntou a mãe, já tendo em mente a resposta.

- Música! - exclamou triunfante.

Isaac jogou com violência o seu garfo sobre a toalha de mesa importada e se levantou abruptamente.

- Você deve estar brincando comigo! - James olhava-o sem mudar o semblante. Afinal, sua reação foi bem próxima do que ele esperava.

- Não estou brincando com ninguém. Estou apenas seguindo o caminho que eu escolhi.

- E quem vai herdar a Hope enterprises? Você já pensou nisso? Imagine que. . .

- Não é da minha conta. - falou o rapaz, também levantando-se. - Você criou dois investimentos diferentes, papai. Eu e a sua empresa. Não significa que as duas coisas tenham que chegar a um fim comum. Eu não tenho interesse nenhum em herdar a Hope enterprises. Arranje outra pessoa.

- Não pode falar assim! - Isaac gritava furioso, mas James era sereno e convicto, porém solene. - É o investimento da sua vida.

- Da sua, não da minha. Eu não tenho nada de que me envergonhar. Provei para você que posso realizar todos os seus caprichos, mas não vou deixar ninguém, nem mesmo você, papai, controlar o rumo da minha vida. Eu faço o que quero.

O calor da fúria de Isaac pareceu resfriar imediatamente. Ele se acalmou, deu um longo suspiro e falou então:

- Você está certo. Não posso te forçar a nada. Vá perseguir seus sonhos funestos.

- James, querido! - gritou a mãe, empolgada. - Você conseguiu! Ele finalmente concordou! Agora você é livre para seguir seu caminho no ramo musical. Eu fico muito feliz. - em resposta, o rapaz apenas lhe mostrou um sorriso.

- Mas - disse Isaac - você não mora mais aqui.

- O quê? Isso é absurdo! - disse, indignado.

- Você faz o que quiser James, mas se não vai servir para os meus planos, então faz sentido você não esperar a minha ajuda, certo? - ele respondeu com uma risada de certo escarnecedora.

- Eu não vou desistir da música, por mais obstáculos que você ponha no meu caminho. É melhor você desistir dos seus sonhos funestos, senhor Isaac.

E fazendo jus às suas palavras, James prestou-se a se mudar para o alojamento da universidade, feliz de pensar que era um sacrifício que estava fazendo pela música. Continuou mantendo contato com sua família e uma relação saudável e amistosa com seu pai. Por vezes realizavam atividades agradáveis juntos e tinham profundas conversas sobre vários temas. Isaac mostrava interesse na música de seu filho, mas sempre que falavam sobre isso o pai expressava sua preferência por um filho que pudesse herdar seus negócios.

James nunca pronunciou uma palavra sequer sobre isso. Achava a atitude do pai muito imprópria. Mas pretendia convencê-lo com seus esforços. Convenceu-o a contratar um professor de piano mediante esforços. Fê-lo concordar com sua carreira musical mediante esforços. Mas embora consentisse, ainda não apoiava. Mas estava certo de que se tornaria um grande músico com apoio do pai, e havia apenas uma forma de conseguir isso. Ele apenas precisava que o velho se encantasse, exatamente como ele havia se encantado ao tocar o piano pela primeira vez, com quatro anos.

Certa vez, James chegou ao seu pequeno alojamento à noite, exausto após um longo dia de aula. Desabou seu corpo no sofá e ligou o som com o controle remoto. Fechando os olhos, deixou-se mergulhar na tão agradável música. Mas o toque de seu celular não combinava com a melodia em andamento. Pausou a música e atendeu.

Sua mãe falava ás lágrimas que ele fosse tão rápido quanto possível ao hospital ver Isaac, que tinha sido acometido num ataque de úlcera. Áquela hora da noite o rapaz, sem hesitar, saiu para o hospital. Encontrou o pai deitado numa maca. O aspecto era bom. Era difícil acreditar que tivesse tido úlcera. A mãe chorava mansamente, mas mesmo isso parecia uma preocupação exagerada.

- Mas você também - disse, em tom amistoso - Trabalha demais pra sua idade. Por que não se aposenta.

- Porque não tem ninguém pra tomar o meu lugar. - James suspirou.

- Aqui não é lugar para começar uma briga. Mas digo que não é assim que você vai me convencer. Se você morrer por causa da sua imprudência, a culpa não é minha.

- James - respondeu o homem, com a voz fraca. - É um bom rapaz. - Ele ia responder, mas percebeu que o pai tinha adormecido.

E fiel como sempre a sua palavra, James levou o curso até o fim. Seus pais assistiram felizes à formatura. No mesmo ano em que se formou, James se casou com uma soprano que tinha conhecido na universidade. Tudo parecia estar dando certo em sua vida. Mas ainda havia uma questão pendente. E havia apenas um modo de resolvê-la. De maneira alguma seria passada por alto.

Na manhã dum dia qualquer, o casal Hope tomava seu desjejum. Isaac, o marido, estava preparado para mais um dia de trabalho na Hope enterprises. Sua esposa, taciturna, comia torradas com geléia enquanto olhava as cartas do dia. Passava os envelopes duma mão à outra, sem ver nada que não fosse trivial. Até que algo diferente lhe tirou uma interjeição.

- O que foi?

- Recebemos convites especiais para o camarote. - disse ela, se prontificando-se em mostrar os ingressos ao marido. Ele os leu em voz alta:

- “Maestro James Hope e Orquestra Municipal apresentam Primeira Sinfonia de Sinding no City Hall. Ingresso para camarote”? Ele só pode estar brincando! Por que não nos avisou de nada e apenas enviou os ingressos?

- Isso eu não sei - disse a mulher. - Mas sinto que esse ingresso é mais para você do que para mim. - Isaac deu uma gostosa gargalhada.

- Eu vou - disse ele. - Só para ver se ele se empenha por algo que vale a pena, embora já tenha certeza de que não é esse o caso!

Durante os meses seguintes, foi pouco o contato do rapaz com a seus pais, pois tinha intensos e frequentes ensaios com a orquestra e pesadas responsabilidades da vida familiar, pois já era um homem casado. Quando acontecia de conversar com os pais, porém, evitava falar da apresentação e quando abordado dava respostas evasivas. Esperava que eles o vissem. Os dois, mas principalmente o pai.

E finalmente chegou o dia. A assistência era bem maior que o esperado. Todos observavam atentamente enquanto os músicos tomavam posição. E o casal Hope, não familiarizado com aquela situação, assistia a tudo ali, no camarote, com muita curiosidade.

Finalmente, a imponente figura do maestro chega ao palco, andando vagarosamente. Parecia outra pessoa. Não só por ter passado gel no cabelo, que quase sempre ficava bagunçado e escorrido na testa, mas por causa do seu olhar, que parecia transmitir uma ideia muito forte, porém indecifrável. Ao cumprimentar o público, aproveitou a chance para procurar Isaac no camarote. Achou-o sem dificuldade. Não ficou feliz ou surpreso de vê-lo ali, mas o olhar de soslaio lançado transmitiu ao homem a mensagem com mais clareza do que poderia ser feito com palavras.

“Vou mostrar pelo que foi que eu desisti dos seus sonhos.”

Dado o alerta, a música começa a se disseminar pelo teatro, fazendo cócegas na orelhas de todos os presentes.

“É uma bela música, sem dúvida” pensa Isaac “É uma coisa bonita que torna nossa vida melhor, mas esse rapaz não entende que há coisas muito mais importantes no mundo, sem as quais não poderíamos viver. Mas tenho que admitir que ele é muito bom nisso. Ah! Quem me dera que ele tivesse a mesma habilidade que tem para comandar essa orquestra para comandar a minha empresa. Estou vendo, James. Foi por isso que você tanto se empenhou. Estou testemunhando hoje a concretização do seu sonho, e você fez muito bem. Mas poderia ter feito melhor. Não, não é isso. Não é isso que ele queria me mostrar. Não foi isso que vim ver hoje. Essa música é realmente bonita. É mais do que bonita. É cativante. Tem certa característica que atinge o fundo da alma. Fogem-me as palavras para descrever tal sensação. É como se a música desse sentido à vida.” Lágrimas rolaram pelas faces. A emoção provinha de duas fontes igualmente fortes: uma, a beleza da música. Outra, a mensagem que seu filho tentou passar-lhe a vida toda, mas que pela primeira vez se tornou clara.

- É lindo - disse ele, distraindo a atenção da esposa, ao seu lado. Ela ficou intrigada. Já tinham mais de trinta anos de casados, mas vê-lo chorar era cena rara mesmo para ela.

No entanto, o que Isaac queria dizer não estava limitado a “é lindo”. O que aconteceu foi que ele não teve disposição de dizer mais nada. O que ele realmente quis dizer foi:

“Eu entendi, James. Seus sonhos são tão grandiosos quanto os meus. Não, são mais grandiosos ainda, e não são nada funestos. De que adianta vivermos numa sociedade ideal, de que adianta existirem tantas empresas faturando bilhões de dólares por ano, tantos negócios prosperando, tantas ações subindo, se nessa vida não houver tão sublime prazer como o da música? Sem isso, a vida não vale nada.”

A longa sinfonia chegou ao fim, e foi aclamada por vívidos aplausos. Os músicos cumprimentaram a platéia e o maestro Hope tinha um imponente sorriso. Era o sorriso da vitória. Maravilhosa sensação que nunca experimentara antes. Esse sorriso foi para si mesmo e para o público em geral, mas para Isaac ele reservou um diferente, malicioso, que queria dizer:

“Eu sei que você me entendeu”

E devia estar certo, porque quando se encontrou com seus pais na saída do Hall, antes de perguntar qualquer coisa, Isaac se adiantou em dizer:

- Eu entendi, James. Você me convenceu. Me desculpe por ter tentado te impedir todo esse tempo. Ainda bem que você sempre foi muito certo do que queria, e não deixou que eu ficasse no seu caminho.

- Fico feliz que tenha entendido, papai. - disse ele. - Mas vocês gostaram da música?

- Foi a coisa mais maravilhosa que eu já ouvi, filho. Mas agora, quem vai herdar a Hope enterprises? - James abriu um sorriso ingênuo, mas logo foi desfeito ao ver seu pai começar a tossir sangue compulsivamente. A úlcera havia atacado novamente. Mas dessa vez, com força demais para ele resistir.

A assistência do funeral de Isaac Hope foi surpreendemente grande. Afinal, não eram poucos seus sócios empresariais. Depois de assistir o enterro, James acompanhou sua mãe de volta à sua casa. Chegando lá, dirigiu-se logo ao seu cômodo favorito. Mas nenhum som foi emitido. O silêncio era mortal. Isso chamou a atenção da mãe. Ela abriu a porta da saleta e viu o rapaz ali, sentado em frente ao piano, com a cabeça apoiada nas mãos, profundamente pensativo, sem tocar uma única nota.

- Que está pensando, James? - perguntou ela.

- Uma hora isso teria que acontecer. Tenho uma delicada escolha em minhas mãos.

- Querido - disse ela, abraçando-o por trás - Eu já te disse, você tem que fazer apenas o que você quer.

- Essa era a última vontade dele! - vociferou James. - Mas a empresa foi o investimento de sua vida. Ele mantinha profundo carinho por ela. Ele não iria querer vê-la arruinada em minhas mãos, mas também não desejaria que nenhum aventureiro qualquer tomasse posse dela.

- James, não se preocupe com isso. Não tem nada que você possa fazer.

- Tem sim - falou, tocando o já conhecido acorde de ré. - Só não sei se ele aprovaria.

Na semana seguinte, o senhor James Hope era presidente da Hope enterprises, mesmo não tendo o mínimo de habilidade requerido para assumir tal cargo. Afinal, empresas não podem ser dirigidas com uma batuta. O presidente da empresa, nervoso e apreensivo, andava dum lado para o outro da sala, esperando um convidado muito importante.

- Ele está aqui, senhor Hope. - anunciou a secretária.

- Deixe-o entrar. - disse James, com um suspiro.

Logo em seguida, um homem idoso e grisalho, com cabelo ondulado e rosto rechonchudo que fazia-o parecer um sapo, apoiado numa bengala para andar, entrou vagarosamente na sala e se acomodou numa cadeira.

- Bom dia, maestro Hope.

- Bom dia, senhor Jefferson. - falou James, sentando-se em seu trono, não conseguindo disfarçar a sua ansiedade.

- Não assisti à sua apresentação - disse Jefferson. - Mas ouvi falar que foi esplêndida.

- Pelo menos para mim foi - disse ele - consegui realizar meu sonho, e creio que o senhor também realizará um sonho muito antigo hoje, senhor Jefferson.

- Oh, sério? Qual?

- Estou disposto a te vender a empresa que pertenceu ao meu pai. - O home quase caiu da cadeira, duvidando da veracidade do jovem.

- Está falando sério?

- Sim - disse ele, num tom já um tanto melancólico. - Não sei se ele aprovaria essa decisão. Mas essa empresa é o esforço da vida dele. Eu não poderia viver com o fato de tê-la arruinado com minha inaptidão. Então eu a deixo para o senhor. A Jefferson Hope deve voltar a existir. - Jefferson via o jovem dizer essas palavras com espanto e admiração.

- Sua sensatez é muito apreciada, maestro. - disse ele. - Pena que não possa ser aplicada à direção desta empresa. Mas seu caminho na música certamente será grandioso.

- E é isso que eu espero. - falou James, levantando-se e saindo.

E enquanto se afastava, olhou mais uma vez para o prédio da Hope enterprises. Aquele era o caminho que havia abandonado. Um caminho bem melhor, certamente, estava logo adiante.

“Tua magia volta a unir

O que o costume rigorosamente dividiu

Todos os homens se irmanam

Ali onde teu doce voo se detém”

- Friedrich von Schiller, Ode à Alegria.

Blau Tiger
Enviado por Blau Tiger em 26/03/2013
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