Íris

Amiga de minhas filhas na adolescência – nisso se escoam mais de dez anos – reapareceu após crescer em outros Estados, por transferência periódica do pai, militar de carreira.

A mãe, por algum atavismo hippie, se deliciava com as mudanças, ao que ela, filha única, mas opinião sempre vencida, relutava, regateava... “Tenho alma de velha”, e guardava como tesouros fotografias amarelecidas e quinquilharias, lembranças, alegrias, tristezas. Foi revendo álbuns antigos que resolveu voltar, e talvez procurar as garotinhas com quem se identificara àqueles tempos, pela necessidade de estabilidade e permanência. “Era a família dos meus sonhos!...”, suspirou.

Encontrou o casal divorciado, as meninas em relacionamentos estranhos, truncados, e um homem embasbacado com tanta beleza, emocionado com tão rara carência e meio culpado por, inadvertidamente, ser parte importante em ato para tamanha decepção.

Sujeito quase tímido, esqueci rapidamente o rabo de cavalo escuro e esvoaçante sempre presente nas tardes das primaveras brincantes: efeito do corte chanel clássico emoldurando o rosto claro, de boca carnuda e olhos nada pueris (de tão verdes!) ou se aquele corpo nem de longe parecia o antigo? Ora, não sei! Apenas fiquei olhando-a como quem ganha um presente que não esperava, ou, sequer, sabia que desejava. Ou precisava.

Casar e ter filhos quando se é jovem pode acarretar desvantagens, mas as meninas gostavam mesmo de se referir a mim como bonitão e ‘classudo’ (o primeiro adjetivo é bondade delas, são meio mãescorujinhas, mas entendo o segundo: significa calado, quieto – e, certamente, não o elegante que elas prefeririam). Por mais incrível que possa parecer, após o divórcio tentavam me arranjar namoradas – ‘desde que nada sério, certo, paizinho?’. Geralmente as candidatas eram professoras da universidade, tias ou primas mais velhas de ‘ficantes’ delas que, por pura sorte, duravam mais que um mês e conseguiam me conhecer à porta de um cinema, por pura coincidência na escolha do filme. Houve a bibliotecária mais classuda ainda que eu, houve uma atriz performática itinerante (mas essa foi mérito meu!), e até uma representante de vendas que nunca mais visitou a região – essa elas conheceram num inferninho de quinta, na última sexta feira gorda. A moça vendia de tudo, menos tranqüilidade.

Apesar da (quase) timidez, sou um cara de cabeça boa, talvez pouco intolerante com pessoas de um assunto só, com certeza, sem tempo para mediocridades; professor universitário, convivo com gente de toda espécie e já tive experiências bem boas, outras nem tanto, mas a menina que voltara, ah!... essa sabia o que fazer e o que ser.

Um dia após o reencontro cheguei ao departamento de Ciências Atuariais (que coordeno sem atinar direito como ou porque) com um sorriso bobo de muitos dentes e os olhos encovados. A secretária olhou-me e já foi perguntando se eu tinha visto passarinho verde (ela, também, não entende o que faço ali!). De vez em quando meu tipo europeu nórdico faz avermelhar bochechas e pescoço, e bastou eu lembrar da recente madrugada para se manifestarem as cores criminosas.

O fluxo de memórias que eu mantivera acalmado por meia hora refluiu, um filme tipo super oito passou pela minha mente e garanto: o mundo poderia ter explodido junto com meu corpo enquanto o corpo dela resplandecia, e eu nem teria dado conta.

Ora, se eu me sentia como se um véu colorido vivesse em mim! Mais: havia o pote de ouro, o gnomo, as gotas de água pura, os raios de novíssimo e poderoso sol... Parecia até que a própria deusa mensageira viera em pessoa!

E revi o quarto, a cama, os lençóis esparramados; revisitei a varanda do apartamento, o box minúsculo do banheiro mínimo; voltei a ela, ao cabelo escuro e rico bailando sobre meu peito, pernas e abdômen, revolvi à enorme sensação de paz e desespero... voltei à paz... e à ânsia.

Voltei a mim.

‘Alma de velha...’, relembrei.

“...meu sonho...”, sussurrava ela, dormindo.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 10/04/2013
Reeditado em 10/04/2013
Código do texto: T4233244
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.