Não temos livros de "defeitos especiais"

- Nosso povo precisa de atenção! Nosso povo precisa de cuidados! Nosso povo precisa voltar a ter orgulho. Faremos isto da maneira pragmática e sistemática! Vamos focar nos problemas, nas realidades e todo o resto será supérfluo. Vamos voltar a crescer!

O recém-empossado militar olha para multidão à sua frente que vibra com cada palavra dita. O atual chefe de Estado sorri de modo a convencer até os oposicionistas mais ferrenhos.

- Vamos mostrar ao mundo a inteligência de nossa gente! - Ajeita o microfone para que suas palavras sejam melhores ouvidas e bate no púlpito que se encontra –

- Anos melhores virão para todos de Oblivion!

A multidão, a maioria composta por pessoas simples, urra na esperança de aquela promessa não seja apenas mais palavras ditas ao vento. Fernando observa todo o discurso na televisão e um pouco preocupado com estas palavras firmes e secas coça o queixo.

- Não sei não... Acho que não virão anos melhores, e sim, anos piores... Não sinto confiança neste homem.

Dá as costas para a TV, pois havia mais familiares assistindo a posse do novo representante e vai para o quarto fechando a porta bem vagarosamente.

- O que temos para hoje? – Olha sua estante repleta de livros, grande parte de Ficção e seus subgêneros, e retira um de Carl Sagan, Pálido Ponto Azul, deita sobre a cama reiniciando o livro de onde tinha parado –

Os dias passam e a mão de ferro começa a agir sobre Oblivion.

O novo comandante com seu uniforme repleto de condecorações avalia os cortes a serem feitos. De todas as áreas ele corta pontos. Mas a área que mais teme era de Letras. É um crítico dos maiorais sobre obras de Ficção. Dizia sempre que tais livros precisariam ser queimados. O povo não precisaria dispender tempo com fantasias, tempos futuros, com utopias fracassadas ou que nunca aconteceriam.

- Povo de minha nação. – Pronunciava de modo austero diante das câmeras de TV o general das mil e uma honras dias depois da avaliação -

- Nosso corpo administrativo avaliou os pontos fracos e decidimos cortar várias coisas, estas que com certeza só trouxeram atraso ao nosso progresso. Vivemos um novo tempo. Vivemos a realidade. Vamos começar a listar estes pontos.

O chefe de Oblivion foi citando os pontos até que chegar a área que ele mais odiava: Letras.

- Esta é a área que merece todo um cuidado. A partir deste momento está terminantemente proibida à venda, troca, a circulação, assim como todas as atividades que compreendam a difusão destes livros ou qualquer outra natureza informativa deste gênero. Livros de Ficção e seus “filhos” estão banidos de Oblivion! Não precisamos de livros de “defeitos especiais”!

Fernando que ouvira todo o discurso de seu quarto olhou estarrecido para o monitor que estava em cima de seu criado. Interrompera a leitura de Admirável Mundo Novo olhando para cima e fechando os olhos.

- Anos piores... – Engoliu seco e se levantou guardando o livro já com a marcação da parada na leitura. Foi para a janela observando sobre os prédios o pálido horizonte –

Anos passaram e em várias tentativas fracassadas da população, o chefe da mudança de Oblivion matinha-se no poder. Escolas, rádios, TVs, jornais e outros veículos de comunicação eram obrigados a informar e ensinar a realidade do pequeno país. Uma realidade crua e seca, mas como o general afirmou, necessária.

Editoras só podiam publicar livros que contivesse a realidade, a verdade. Nada de Ficção e outras histórias de sonhos. O cinema a mesma coisa. Grande parte destas decretaram falência anos depois.

Pessoa e grupos que contrariam estas ordens eram marginalizados ou presos e nunca mais eram vistos.

Fernando conseguira esconder seu acervo das mãos da fiscalização pró-Oblivion. E de forma restrita e escondida lia-os. Agora, o livro “1984” de George Orwell.

Os tempos melhores não aconteciam. O “condecorado” errara feio. A ciência, educação, tecnologia definhavam. O progresso ficara só nos livros e filmes queimados em praça pública diante de olhos que tinham medo de questionar a autoridade.

Mas ainda existiam aqueles que lutam. Na humanidade sempre existiram barreiras como estas, mas barreiras e obstáculos foram feitos para serem vencidos, não?

Fernando juntamente com um grupo que formara há anos decidiu que era hora de acabar com esta visão cega do administrador de seu país. Estes conseguiam estabelecer uma comunicação e combinaram que a próxima semana seria decisiva.

Caminhando pelas ruas cheias de desempregados, os hospitais lotados de pessoas doentes, muitas morriam nos leitos devido à falta de profissionais e também de remédios nas farmácias, as principais indústrias deste ramo fecharam no último ano. A tecnologia não avançara, a antiga não dava mais conta das novas doenças.

Por mais que quisessem banir livros e filmes de Ficção, este continuava a existir. Oblivon assemelhava-se com a cidade de São Paulo arrasada pela Justiça Divina do livro Estátuas de Sal do escritor André Cardinalli. Só que esta injustiça vinha dos homens, ou melhor, de um único homem.

Chegada a hora! Fernando liderava o grupo na invasão do Palácio Verde Esmeralda, apenas o nome lembrava o palácio futurista do romance a Máquina do Tempo de H. G. Wells, contudo o país estava muito longe de ter seu povo vivendo na plenitude.

Várias pessoas aglomeravam a porta do centro administrativo, seguidamente policiais e guardas tentavam barrar o movimento e com ordens de abrir fogo algumas destas pessoas caíram ao chão.

Fernando e mais algumas pessoas que desde o início não acreditaram no “general de ferro” invadiram a parte dos fundos que estava desguarnecida e chegando aos pés da sacada gritaram.

- Saia! Ouça o que temos que dizer! Várias pessoas estão morrendo e continuaram a morrer se a mudança acontecer.

O general recolheu em silêncio atrás de sua mesa e nada fez.

- Não adianta proibir o direito que temos de sonhar, mesmo que este sonho seja totalmente irracional, mas futuramente ele pode se tonar real. – Gritava uma moça com o livro Viagem ao redor da Lua de Júlio Verne.

- Não quer ouvir? Pelo menos leia... – Fernando tomou distância e com toda força jogou o livro O homem Bicentenário de Isaac Asimov pela janela do palácio -

O livro caiu próximo aos pés do general que pegara e olhara a capa enquanto isto Fernando gritara com todos os seus pulmões.

- Você não é um robô! Você pensa e sonha também. Igual este robô que sonhara um dia se tornar humano. Não tire o direito de sonhar das pessoas deste país.

- Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum. – O homem ao lado de Fernando parafraseava Monteiro Lobato.

O general saiu para a sacada com o livro nas mãos. Termino hoje o meu mandato. Vocês estão certos... Apenas pensei o melhor para Oblivion. Queria mostrar a realidade.

Pensar na realidade é bom, mas se sonharmos com uma realidade melhor, esta será benéfica para todos. Ou pelo menos podemos nos precaver, caso não seja uma realidade boa. – Sorriu Fernando –

Amanheceu e Oblivion já não está nas mãos do “general de ferro”.

Os anos passaram e a normalidade voltou, e voltou acompanhada com o progresso. Oblivion é um país vindouro. Livros e filmes de Ficção continuavam a estimular e saciar mentes que buscam o progresso humano. Você pode encontrar em qualquer banca, livraria ou locadora do país, livros e filmes com este tema. Ah! Menos em uma banca... O dono disse que não tem este livro de “defeitos especiais” em seu acervo.

Chronus
Enviado por Chronus em 13/04/2013
Reeditado em 15/04/2013
Código do texto: T4238972
Classificação de conteúdo: seguro