Dulcenéia

Saiu à rua a Luciana! Vamos lá, o que escrevo? Luciana galga… não, não está bom! Quero descrever a vida desta rua, ninguém galga nada ao passar a porta de casa – há que se descer a sarjeta, nível abaixo e não acima! Ora, vamos, o que fazer? É a Luciana, prato cheio para uma crônica citadina, daquelas lambuzadas de última página, forragem dos pisos de banheiros públicos.

Deus, mas que deslize! Luciana é Madalena, quero agora delatar a vida de minha vizinhança? Apenas uma ficção descompromissada… Madalena sai à rua, olhos murchos, pérolas sonolentas que acariciam os fofos travesseiros de olheiras. Mulher forte e bem casada com o Manoel… digo Gabriel do porto – homem íntegro, pescador das redes cheias. Sai à rua e caminha pacífica, quase folgada. O que é que pensa? Por certo que pensa em Gabriel no porto, perfumado pelo cheiro do mar e com as carnes boas que o trabalho deu – e neste momento é que faz uma cara de nojo. Madalena é misteriosa, ainda que caminhe sempre serena. Dizem as más línguas que tinha um amante que morreu na guerra, pobrezinha. Quem poderia consolá-la daquele amor abatido, o secreto, quem? Seu marido de nada poderia saber, nunca. Talvez um “Por que andas tão triste, Madalena? Precisas de um novo vestido?” saísse corriqueiramente do português carrancudo de Gabriel, talvez isso. Mas só Madalena sabia o que sofrera, só ela. Passou tormentas intermináveis enquanto o mar subia. As ressacas eram violentas e as olheiras já haviam se apossado dela quando as lágrimas baixaram e o mar se acalmou.

Mas, como diria o seu Antô… digo, seu Perônio da padaria: “Nada que uma caminhada na praia e um par de olhos sofridos para fazê-la tropeçar em suas próprias tristezas e cair nos braços de um novo homem”. E assim Madalena seguiu até a esquina, quando parou perdida. Olhou para os lados, desconcertada. O que é que procura? Talvez essa pergunta também a assombre agora. Mas ela ainda continua a vasculhar o enorme nada da esquina, que dá de frente para a cidade inteirinha – um nada enorme e cinzento. Seus olhos cansados… pobres olhos de mulher esquecida, pois que se é das mais bem casadas da rua, é também das mais esquecidas. Quantas e quantas vezes não alisava, sob a luz fraca de seu quarto, aquelas longas pernas, lisas e encantadas por óleos e sabedoria popular? Quantas vezes não deitava na cama a poucas roupas, se fazia e encantava a Gabriel que coçava forte a barriga peluda e reclamava. Pobre Madalena, por certo desejava a sorte de ser apedrejada… mas o que procurava agora?

Nunca se saberá, pois cessou de buscar. Os olhos dela agora fixam a caída da rua. Desce a passos de fera, leoa feroz! Quanto fulgor surgiu daquela pequena mulher, que vibra os sapatos nas pedras da rua. E desce feito ela própria, Madalena, doce e vigorosa – casada. O que causara tanta obstinação naquela mulher? Seus passos desconhecem cansaço, já mal se pode vê-la pela janela da rua. Para onde foi Madalena? Desapareceu sob o manto da cidade malvada.

Aquele corpo fabuloso de mulher, de mulher Madalena, estremeceu a rua. Ficou o sentimento de medo pelas paredes, um medo sem causa e também sem resposta, sem pergunta que a interessasse. Pobre Madalena, bem casada e ainda mal amada! Quantos e quantos homens desta rua não quereriam ter a sorte daquele pescador? Quantos não dariam tudo para tê-la em suas redes? Pobre Madalena…

A campainha toca. Quem poderá ser? Não há espera de visita… ou há e, cá entre nós, não sabíamos?

Passos lentos navegam o corpo rumo às terras desconhecidas da porta trancada. Que perigos esperam a mão que gira a maçaneta? Que lufada de mundo perigoso há de receber aquele que desafia as leis da sorte? Num girar vagaroso, vem o mundo até a porta e o acontecimento surreal aparece feito um sonho: é Madalena!

– Olá, minha cara Madalena… digo, Luciana! Como vai o passeio? Em que eu, mero sonhador, posso ajudá-la?

– Ma… Mas o quê?! Olhe aqui, senhor, o meu nome é Dulcenéia e não quero mais saber do senhor me bisbilhotando pela janela!

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 15/04/2013
Reeditado em 15/04/2013
Código do texto: T4241290
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