Em terras do Levante

I

As estrelas cintilantes salpicavam graciosamente o firmamento imenso como se um antigo gigante, num acesso de furor, houvesse partido uma bola de fogo espalhando-a pelo céu em inúmeras partículas. A Lua desenhava um riacho de luz no mar e algumas nuvens negras surgiam fantasmagóricas tapando por vezes o luar naquela zona do Mediterrâneo.

Um pequeno veleiro com a bandeira portuguesa acelerou o andamento em direcção a um grandioso djonk, ferozmente armado de canhões e hasteando o terrível pavilhão de Argel.

Os marinheiros muçulmanos com perícia saltaram para o veleiro cristão prestando homenagem aos dois europeus, que de sorriso nos lábios, rapidamente subiram por uma escada de corda para o barco mouro.

- Que a paz de Alá vos siga!

Um árabe com a pele queimada pelo Sol quente de África saudou os homens convidando-os a penetrarem numa sala ricamente ornamentada de tapetes de Damasco e jóias da Pérsia.

- Thiago e Rodolfo, o meu coração transborda de alegria ao estar de novo na vossa presença.

- Sentimos o mesmo, a felicidade de reencontrar um irmão.

Abdul Hauqal bateu palmas e um criado entrou com um cesto cheio de frutas deliciosas depositando as tâmaras e laranjas no tapete, saindo de seguida deixando os antigos companheiros sozinhos.

- Meus amigos, o apelo que vos dirigi reveste-se do maior segredo, poucas pessoas sabem da sua razão e significado.

- Dey, tens chefiado sabiamente os teus súbitos, só temos recebido da tua parte manifestações de estima, conta-nos o teu problema para podermos ajudar-te.

- Vou ser breve. Durante os últimos três anos os inimigos dos nossos povos moldaram uma conspiração diabólica e desejam uma guerra entre as nossas nações.

- Como podemos contrariar os seus planos.

O chefe supremo de Argel não respondeu de imediato a Rodolfo, pensativo deixou que o fumo do cachimbo de cobre se filtrasse na água antes de continuar a falar.

- Há muitos anos, horas antes da conquista de Meca pelo profeta Maomé, uma estrela surgiu no firmamento e encaminhou-se para a cidade sagrada.

- Um meteorito?

- O profeta interpretou o fenómeno como um sinal de Alá, e ao findar a batalha um crente achou no meio da areia uma pedra incandescente que foi levada para a mesquita, sendo durante muitos anos visitada por gerações de muçulmanos. Uma noite roubaram-na sendo acusado do furto um dos muitos judeus que viviam na cidade, contudo jamais a voltaram a encontrar.

- Qual a relação entre a pedra e o solicitares a nossa presença?

- Segundo maometanos escorraçados de Tequilla, uma povoação perto de Sevilha, um nobre castelhano comprou a pedra a um proprietário de terras. Necessito que me acompanhem para a tentar reaver.

- Desejas a nossa ida ao reino de Castela para recuperar a pedra?

- Sim. O nobre, dono da mesma, isolou-se do mundo e será muito difícil receber alguém.

- E se depois de a nossa ida o meteorito permanecer em Tequilla?

- Rebentará a guerra. A comunidade árabe organizará um exército invadindo o reino de Castela.

- Quanto tempo nós temos para reaver esse talismã sagrado?

Abdul Hauqel contou com a ajuda dos dedos e respondeu sério.

- Duas semanas.

- Devemos então partir o mais cedo possível, o tempo é escasso para esse empreendimento.

- Irei convosco. Os meus cidadãos ainda falam das partidas de Thiago.

Gracejando Abdul Hauqal recusou os pedidos dos cristãos para ele continuar na sua cidade quando iniciassem a perigosa estadia em solo do Levante. A curiosidade de Abdul Hauqel vencia a prudência e a temeridade derrotava a precaução.

II

Desde cedo que um movimento desusado em Tequilla anunciava o dia do mercado. Vendedores de lã, artesãos e peixeiras gritavam as virtudes dos seus produtos a clientes ciosos das suas moedas.

Perto do cais recheado de botes, o chão arenoso da praça do mercado cobria-se de pó das serrações de madeira, de naturais da localidade, de foliões de longínquas paragens e algumas crianças sujas perseguiam cães esqueléticos cobertos de insectos.

Sobre a muralha do porto os três amigos observavam o movimento da feira e a azáfama dos pescadores estendendo as redes para o dia seguinte as lançarem ao mar.

Gritos de angústia despertaram-nos do lazer ao observarem uma pequena multidão em agitação no centro do mercado. Rápidos, dirigiram-se para o aglomerado e com horror viram uma mulher andrajosa presa a um poste sob o Sol tórrido.

Thiago agarrou no ombro de um navegante que observava a cena com indiferença questionando-o.

- Porque amarraram esta mulher?

- Roubou ovos.

- Qual vai ser o castigo?

O velho marinheiro olhou primeiro espantado por o forasteiro não saber as penalizações da terra e depois satisfeito com o aspecto do rapaz respondeu com ares de sabedoria.

- Cem chicotadas!

- A pobre mulher morrerá com um número tão elevado. Uma penalização desumana para uma pequena infracção.

O embarcadiço encolheu os ombros continuando a admirar a velhota que tentava soltar as cordas que a mantinham presa. Escapando aos guardas, o dey procurou ajudar a mulher, contudo um chicote estalou e ele voltou-se para ver uma mulher montada a cavalo, vestida de negro, de faces belas e ameaçadoras.

- Sai da frente.

Abdul Hauqel permaneceu entre a velhota e a amazona, começando os curiosos a afastarem-se receosos.

- Sai da frente para eu bater nessa ladra.

O mouro, impávido não arredou e a opositora furiosa dançou o chicote no ar chicoteando com violência o árabe ferindo-o na cara. Sereno o muçulmano de início manteve-se mudo e depois falou pausadamente pela primeira vez.

- Não matarás esta mulher enquanto eu viver.

Receosos, os espectadores da cena olhavam para os dois intervenientes do diálogo formando partidos. O cavalo da amazona esgatanhou na terra e em seguida ao sentir as esporas da dona no ventre partiu à desfilada saindo do largo.

Pálida, a velhota deixou Abdul Hauqel desatar as cordas que lhe roíam os pulsos e beijou as mãos do benfeitor.

- Senhor, desafiastes uma feiticeira terrível. Brígida não te perdoará teres desobedecido às suas ordens em público.

Sem prestar atenção às palavras da anciã, Abdul Hauqal seguiu com os amigos para fora do mercado. Uma taberna convidativa lembrou-lhes que a hora do almoço tinha chegado. Um ruidoso grupo bebia na taberna ouvindo um cigano de lenço na cabeça, que acompanhado por um bandolim cantava um amor perdido algures numa estrada.

- Quais os vossos planos para descobrirmos a pedra?

Rodolfo inquiriu os companheiros chamando em seguida o criado para os servir.

- Devemos procurar alguém que nos informe. Perguntaremos aos habitantes da terra.

- Não podemos cair em ciladas, se alguma vez nos perdermos o local de reencontro será nesta taberna.

Um indivíduo de fartos bigodes ouviu a conversa e sentou-se sem cerimónia à mesa dos três amigos.

- Procuram algo?

- Sim, uma pedra que para nós tem muito valor, uma pedra negra roubada por judeus e tudo indica encontrar-se nesta vila.

O homem sorriu satisfeito e pediu uma cerveja ao taberneiro.

- Eu sei aonde ela se encontra.

Entusiasmados assaltaram o desconhecido com interrogações sobre o novo dono do amuleto religioso.

- Precisaremos de ter cuidado, o dono da pedra não sabe do seu real valor. Cautelosamente poderemos fechar o negócio.

Combinado novo encontro com o estranho, receberam a morada de um mercador que morava num forte e com discrição abandonaram a casa de pasto dirigindo-se para a rua apreciando a noite cálida.

III

Uma fogueira ardia no descampado a alguns metros da estrada poeirenta apinhada de jumentos e peregrinos que em grupos palmilhavam os quilómetros em silêncio, uma turba humana imensa de mendigos andrajosos, camponeses de vestimentas rudes, feirantes carregando ruidosos utensílios, todos aspirando tantos objectivos como o número das suas almas.

A tarde descia suave no horizonte, uma fita alaranjada prometia novo dia de calor sem vento como se Deus penitenciasse já os crentes preparando-os para o advento dos misticismos.

Thiago colocou a panela sobre as chamas e removeu o conteúdo dos recipientes com uma colher de pau provando em seguida.

- Delicioso. O carvão aviva o paladar.

Os companheiros não responderam entretidos a avistar um monge com um capuz que lhe encobria os olhos e se aproximava do grupo.

- Posso descansar na vossa companhia?

Sem aguardar uma resposta, o clérigo sentou-se numa pedra descalçando as sandálias de couro sujas e suadas. Rodolfo ofereceu ao recém-chegado um prato de sopa convidando-o a chegar-se ao grupo.

- Repousa amigo. Um bom jantar reforçará as energias para a tua missão.

- Podemos seguir juntos em peregrinação. As vicissitudes da vida são inúmeras, os livros sagrados apelam à penitência e à pobreza, porém nunca senti vocação para eremita.

- Procuramos a concórdia sob a forma de uma pedra. Ao alcançá-la evitamos derramamento inútil de sangue inocente.

- Venturosos aqueles que buscam a paz.

Interessado pela missão dos companheiros o monge fazia diversas perguntas tentando ajudar aqueles que de forma generosa o acolhiam no acampamento. Subitamente, o pequeno grupo de pessoas desviou o olhar observando receosa uma dezena de cavaleiros no horizonte.

- Soldados castelhanos.

Thiago de pé, protegendo os olhos, transmitia aos companheiros o grito de alerta. Indiferente, o religioso esclareceu.

- Andam à procura de pessoal para o exército real. Se descobrem um condenado enviam-no como remador, os vagabundos que caiem sob a sua alçada são obrigados a seguirem como expedicionários e são os primeiros da linha da frente das batalhas, se recuam são abatidos pelos que vêm atrás.

- Não os receias bom monge?

- Não me metem medo. Temor é uma palavra inacessível ao vocabulário do meu passeio divino.

Ao constatar a presença dos quatro o comandante dos militares caminhou na direcção deles parando a escassos metros.

- Estão presos. Em nome do rei devem seguir-nos até à aldeia de Circe para um interrogatório.

A majestosa figura do clérigo levantou-se. Perdido entre os companheiros e os tropas, as palavras brotaram gélidas da boca imóvel.

- Nunca seremos detidos, segue em paz e que Deus te acompanhe.

Furioso, o comandante da soldadesca esporeou a barriga do cavalo que soltou um relincho de dor partindo à desfilada. Ao chegar perto do monge desembainhou a espada e num golpe violento atingiu a cabeça do adversário com tal rudeza que perdeu o equilíbrio, caindo por terra. Um murmúrio de receio envolveu o séquito ao contemplarem a vítima. O golpe da arma rasgara parte do capuz que descaíra pondo à vista uma cabeça de pedra.

- Maldito demónio.

Recuperando a espada o castelhano aproximou-se amedrontado para junto da figura de granito aonde antes estivera o religiosos até surgir nova metamorfose, um gigantesco urso negro tomou forma encarando o comandante, que em pânico, saltou para a montada fugindo atrás dos aterrorizados acólitos.

O dey de Argel procurou o urso que desaparecera, deixando no local uma rosa branca sobre o hábito do monge caído sobre a terra.

- Brígida. Certamente foi ela quem vestia o hábito do monge procurando acompanhar-nos, mas a aparição imprevista dos soldados desmanchou-lhe o plano.

- Terrível o poder dos seus feitiços.

Rodolfo enxergava a nuvem negra no horizonte resultante da cavalgada dos fugitivos. Ninguém se atreveria a os perseguir depois da narração do caso, a não ser a Inquisição, a odiosa mão sangrenta do monarca para confiscar bens para os paupérrimos baús reais. Acendeu uma tocha na fogueira para o ajudar na tarefa de dar de beber aos animais. A Lua já se distinguia na abóbada celeste como uma alva boca risonha no azul claro do firmamento. Ao contemplar aquele sorriso astral tão franco, Rodolfo sossegou na certeza de uma noite tranquila.

IV

No dia seguinte, logo pela manhã procuraram a casa indicada chegando a uma pequena fortaleza guardada por temíveis guardas de feições duras e sabres afiados.

Uma pesada porta de ferro abriu-se, entraram num átrio sendo desarmados e transportados para celas nauseabundas cobertas de líquenes, coito de numerosas famílias de ratos.

Surpreendidos pela recepção, não ousaram defender-se e sem resistência deixaram Abdul Hauqal ser arrastado para a ala direita da fortaleza, enquanto Thiago e Rodolfo entravam num calaboiço já habitado por um indivíduo pálido e magro.

- Traíram-nos.

Thiago, amargurado pelo destino olhava de relance para os companheiros de infortúnio.

- Como os apanharam?

Um prisioneiro franzino, andrajoso, de longa barba, depois de longas semanas de solitária reclusão procurava saber pormenores sobre os novos companheiros. Rodolfo inteirou-o dos objectivos da expedição e como haviam sido surpreendidos.

- Seremos vendidos como escravos em África. Caíram nas mãos de traficantes, o vosso amigo árabe será transportado para um país não muçulmano sofrendo igualmente às mãos desses marginais.

- Como poderemos sair?

- Impossível. O forte possui muitos soldados bem armados.

- Não percamos tempo. Pensemos como fugir daqui.

O outro cativo abanou a cabeça esmorecido agarrando com ambas as mãos as grades.

- A pedra que procuram está nas mãos de um mercador que a comprou ao conde de Tequilla, pai de Brígida, a mulher que o dey defrontou no mercado. Só ele tem riqueza para a comprar.

Os dois amigos olharam incrédulos para o homem deixando-o continuar a falar.

- O conde de Tequilla permaneceu muitos anos solteiro, caminhava muito gostando de passear a cavalo pelos campos. Um dia viu uma mulher extremamente bela e casou com ela, só mais tarde sabendo que havia desposado uma terrível feiticeira.

O companheiro de desventura voltou a sentar-se num pequeno banco e olhou pela pequena janela da cela antes de continuar.

- Um ano as colheitas perderam-se, o povo amotinou-se responsabilizando a bruxa pela desgraça. Invadiram o solar e mataram-na, a muito custo o conde salvou Brígida que era a filha deles sendo nessa altura ainda criança. A partir dessa data o conde de Tequilla nunca aparece em público e Brígida persegue ferozmente aqueles que infringem as leis tornando-se numa justiceira sem piedade.

Thiago e Rodolfo ouviram com muita atenção a narrativa, passados alguns minutos um carcereiro trazia para a masmorra um bocado de pão e água.

- Queremos falar com o teu chefe.

O guarda inicialmente não prestou atenção aos homens, mas como os prisioneiros insistiam prometendo-lhe farta recompensa, conduziu os três a uma sala ricamente decorada com duas armaduras vazias, junto às paredes, servindo de ornamento.

Um homem de longas barbas, escoltado por indivíduos armados até aos dentes recebeu-os num cadeirão de madeira trabalhada.

- Desejam falar comigo?

Thiago destacou-se do grupo parando em frente ao barbudo que o observava curioso, coçando a barba rala e mal cuidada.

- Sim, vamos sair e não queremos ferir ninguém.

O castelhano soltou uma gargalhada e os lábios finos tremiam quando falou.

- Loucos, como pensam vencer os meus soldados?

Subitamente as armaduras saltaram, como munidas por seres invisíveis saíram dos lugares e começaram a dirigir-se para os guardas que bateram em retirada horrorizados deixando o atónito chefe sozinho. Thiago agarrou no malvado que tremia e sacudiu-o com força.

- Arranja depressa quatro cavalos e solta o árabe que entrou connosco.

Sem deixar de estremecer o malfeitor agarrou num pequeno sino, abanando-o com força. Um criado acorreu receoso a cumprir as ordens.

Passados instantes o carcereiro regressava transtornado com o pavor estampado no rosto.

- Senhor, um mascarado entrou na fortaleza, matou alguns dos nossos homens e soltou o mouro. Um terrível espadachim que apesar de ser ferido num braço conseguiu levar de vencida quem lhe fez frente.

Intrigado, Rodolfo aproximou-se de Thiago e perguntou em voz baixa.

- Quem será o salvador do dey?

O amigo encolheu os ombros não respondendo. O chefe dos traficantes dos escravos, muito abalado, voltara para a cadeira e lamentou.

- Saiam, desde a vossa chegada que a má sorte bateu à minha porta.

Rapidamente atravessaram os corredores da fortaleza e pouco tempo depois o cheiro saboroso da maresia salientava-se ao odor do bafio do forte. Sem perderem tempo tomaram a direcção da taberna.

Uma sensação extremamente desagradável percorreu o corpo do traidor, quando viu a entrada das vítimas da cilada que armara na noite anterior.

- Não me castiguem. Amanhã devo deixar a vila, o chefe obrigou-ma a abandonar esta terra como castigo, por não ter cuidado com quem levo à sua presença.

- Sabes do paradeiro do nosso companheiro?

- Prenderam-no no largo do mercado.

- Qual o motivo?

- Responsabilizaram a feiticeira Brígida pela escassez de peixe. O sarraceno tentou libertá-la e também ficou cativo. Amanhã serão ambos julgados e condenados.

Cansados e felizes por saberem o local aonde Abdul Hauqel se encontrava resolveram ir descansar. No dia seguinte pensariam numa solução para o soltarem.

V

Ao amanhecer a população da vila enchia por completo o largo do mercado para presenciar mais um julgamento que se tornara um acontecimento bastante comum na vila. A terrível Brígida tinha sido responsabilizada pelas pescarias infrutíferas, o mouro por a tentar libertar, tendo o veredicto dos juízes consistido na pena por enforcamento de ambos e para o efeito, duas cordas penduradas pelos algozes balançavam ao vento.

O povo recebeu os condenados aos gritos e o rufar dos tambores assinalou a solenidade do momento. Sem resistência, a feiticeira e o dey deixaram que lhes colocassem os laços em volta do pescoço sendo atadas cordas aos pulsos. Subitamente duas pombas brancas pousaram nas cabeças dos condenados provocando murmúrios na assistência alarmada pelo estranho fenómeno, contudo o juíz ainda assim ordenou o prosseguimento da execução da pena até ser assaltado por inúmeras gaivotas que provocou a debandada do ilustre magistrado.

Receosos, temendo outras atribulações imprevistas, suspeitando que os espectadores imputassem tais factos a milagres, os soldados nervosos soltaram os réus que sem entenderem o que se passava escaparam rapidamente dos curiosos que se aproximavam.

- Thiago, só podias ser tu, a armar esta confusão.

Abdul Hauqal abraçou efusivamente o companheiro que se misturara com a assistência e explicou a razão que o levou à sua prisão no pelourinho.

- Procurei salvar Brígida quando a prenderam, mas apenas resultou também a minha detenção.

- Quem te salvou do cárcere?

Um mascarado vestindo uma camisa azul, que apesar de ferido lutou como um leão matando grande número de bandidos.

- Sabemos aonde guardam a pedra de Meca. Um prisioneiro de cela indicou-nos a morada.

- Corramos, pois o tempo urge. Daqui a uma semana devemos estar em Argel com a relíquia.

Rapidamente cavalgaram em corcéis em direcção ao palacete do mercador, as ravinas desapareciam sob as patas dos cavalos, coelhos saltavam à frente deles na estrada. Quando chegaram ao destino, um corpulento indivíduo segurando um enorme mastim, estava de atalaia ao portão da residência recusando com determinação a entrada aos cavaleiros.

- Deixa-os entrar ou mordo-te!

Surpreendido o guarda olhou para o cachorro que o acompanhava, que parecia falar, e recuou cedendo passagem aos visitantes. Poucos minutos depois chegavam à presença de um homem gordo de feições redondas e olhos pequeninos.

- Vendi a pedra hoje de manhã. Tinha-a comprado ao conde de Tequilla.

- Quem a comprou?

- Um mascarado de camisa azul que apenas o vi de relance e mandou um criado fazer-me uma oferta irrecusável. Admirados e desiludidos os três amigos pretenderam sair da sala, mas a voz possante do anfitrião ressoou naquelas paredes frias de pedra. Candeias de azeite iluminavam imagens religiosas e o mobiliário francês contrastava com os ícones trazidos de países distantes.

- Amanhã realiza-se a procissão de São Jorge, em Algoz, uma aldeia vizinha rica no culto ao santo. Nesse povoado e provenientes de todo o reino de Castela desembocam peregrinos, muitos milhares de famílias reúnem-se para comemorar as acções de graças ao padroeiro. Com um pouco de sorte poderão cruzar-se com o dono da pedra.

Agradecendo a amabilidade do mercador saíram da habitação a tempo de verem dois camponeses a observarem atentamente o cão do guarda e a ouvirem as explicações da sentinela.

- O bicho está embruxado.

- Senhor guarda, os cachorros não falam.

- Pela Virgem Santíssima, o animal ameaçou morder-me.

- Impossível.

- Garanto. Os meus olhos não mentem.

Rodolfo, Thiago e o dey montaram nos cavalos e ao passarem pelo grupo algumas palavras brotaram do focinho do bicho.

- Adeus amigos!

Pálidos os camponeses de joelhos em terra fitaram o cãozinho enquanto a sentinela com um ar de triunfo interrogava.

- Então? Eu não dizia que o cão falava?

VI

A procissão de São Jorge realiza-se todos os anos constituindo um dos mais importantes acontecimentos do Levante. Durante alguns dias, velhos soldados franciscanos e lavradores cruzam-se com vendedores, mendigos e toda a escumalha que desagua na vila.

Coches transportando mulheres com véus tapando um olho movimentam-se lentamente por entre fidalgos garbosos de espada à cinta, porte fino e maneiras delicadas. Dois ou três “grandes” de Castela dão a honra de comparecer e a acompanhá-los inúmeros criados que dão um colorido especial à festa.

Nos bodegones o vício escorre, os jogadores apenas interrompem os jogos durante a hora do almoço para irem pedinchar ao mosteiro mais próximo um prato de sopa, depois irão assistir a uma peça de teatro ao ar livre ou às corridas de touros habituais durante os dias de festa. Mudéjares, descendentes dos ancestrais muçulmanos misturam-se com os cristãos e judeus comungando divertimentos, alegrias e tristezas.

Desembocando na Calle Mayor, Thiago indicou um «mentidero», local de reunião de populares aonde os últimos mexericos e novidades são relatados pelos profissionais intrometidos na vida alheia.

- Procuremos informações no «mentidero».

Thiago secundado por Rodolfo e pelo dey de Argel penetrou numa sala imunda, não obstante a pretensa riqueza de tapeçarias nas paredes parecia que todos os malfeitores dos arredores se reuniam naquela altura. Carteiristas, assassinos e ladrões de gado conversavam trivialmente sem receio de “cuadrilleros” que policiavam fora da estalagem.

Rodolfo procurou o conselho de uma criatura magra, um rufião de longa capa, chapéu de abas largas com plumas, cota de malha, espada à cinta e a camisa traindo por baixo uma pistola.

- O homem indicado para lhes dar informações será o “São Pedro”.

Com gestos altivos e espaventosos indicou um velhote melancólico, de terço na mão, cabelos brancos encaracolados, olhos chupados, que murmurava palavras ocas. Sem demoras Rodolfo sentou-se ao lado do ancião saltando à vista um molhe de chaves de todos os feitios.

O velho malandrim levantou os olhos não demonstrando espanto ao ver os estranhos que se sentavam ao pé dele.

- Sou Pedro, no entanto o povo baptizou-me de “São Pedro” por trazer sempre um terço e estas chaves que me servem para entrar em casas alheias.

- Procuramos uma pedra e estamos dispostos a pagar por ela duzentos cruzados.

O velhote observou com interesse o desenho que lhe apresentavam encolhendo os ombros, desolado.

- Nunca a vi. Conheço todas as casas das redondezas, assalto todas as noites para roubar apenas o indispensável para comer.

- Procuramos em Algoz um nobre vestindo uma camisa azul.

- Esses dados são muito vagos. Uma infinidade de soldados, nobres, gentis-homens e fidalgos vestem camisas azuis.

Um rumor e o som de ferros de espadas chegou aos ouvidos dos três amigos sendo Rodolfo o primeiro a compreender a situação.

- Uma rusga.

Fugindo pela porta das traseiras chegaram a uma rua poeirenta de arcadas cobertas de toldos, as casas térreas intercalavam com pequenas lojas de tijolo e barro. Pequenas imagens, decoradas com flores e velas gastas, pareciam ter vida tal o talento dos artistas ao pintarem os azulejos.

- Qual o rumo a seguir?

Thiago de espada em punho interrogou os amigos ainda a recomporem-se da corrida. Repentinamente viram-se cercados de uma dúzia de feições rudes e um dos frequentadores dos “mentideros” destacou-se do grupo.

- Qual dos três leva os duzentos cruzados?

Sem pestanejar Thiago dirigiu-se para o salteador de gibão de couro, armado com um bastão de ferro.

- Eu levo uma bolsa.

- Passa para cá as moedas.

- Não podemos porque nos faz falta o dinheiro.

Espantado, o assassino olhou para os companheiros ao ouvir as palavras do interlocutor, as faces começaram a ficar roxas e cheio de fúria, avançou com o bastão para o adversário, mas subitamente soltou um grito de dor deixando cair o ferro no chão agarrando a mão dorida.

Pálidos, os bandidos observaram no pavimento o bastão ficar incandescente, acto continuo começaram a recuar lentamente fugindo por fim, a correr deixando o comparsa nas mãos do antagonista.

O som de guizos e um coro rompeu o silêncio, as temíveis bandeiras da Inquisição dobravam a esquina e avançavam para eles. Em frente um sacerdote com uma flecha ao alto seguido de duas filas de encapuçados de longas túnicas com cores diferentes representando as respectivas confrarias, os capuzes sinistros ocultavam os rostos contrastando com os desgraçados que os seguiam escoltados por guardas de longas lanças.

- O Santo Ofício.

O bandido estremeceu e o terror transpareceu no rosto ao reconhecer um dos condenados que fazia parte do grupo.

- Apanharam o “São Pedro”.

Com dificuldade os três companheiros avistaram o velhote com quem tinham conversado horas antes. A procissão parara perto de um nicho e enquanto o clérigo que vinha à frente orava, o “São Pedro” baixara-se, com a mão friccionava os tornozelos e limpava o suor do rosto que em bátegas lhe escorria pela testa.

Rodolfo aproximou-se de Thiago e inquiriu angustiado cheio de pena do ancião.

- Não podemos deixar que estes malandros o enviem para o patíbulo.

- Somos apenas três e eles são muitos.

O bandido de gibão chegou-se ao pé deles dirigindo-se com uma cortesia a Rodolfo.

- A minha espada está pronta a acompanhá-los.

Thiago agradeceu a inesperada generosidade do salteador e a sua mente trabalhava com afinco a descobrir uma saída para a situação. De repente sorriu e todos se aproximaram curiosos.

- E se mandássemos o “São Pedro” mais cedo para o céu?

Rodolfo e o dey soltaram uma gargalhada calculando a nova partida do amigo, mas o salteador recuou aterrado.

- Não matem o meu pai!

- Teu pai? Então foi ele que te avisou que transportávamos as moedas?

Cabisbaixo o fanfarrão calou-se, olhando entristecido para a lúgubre procissão.

Algo inesperado aconteceu, enquanto os mais piedosos da comitiva se ajoelhavam, outros blasfemavam e gritavam, correndo de um lado para o outro nervosos. O ladrão aproximou-se da comitiva não acreditando no que os seus olhos viam, “São Pedro” sem compreender o que lhe sucedia subia para o céu distanciando-se já alguns metros acima do solo.

A confusão generalizou-se, os outros condenados depois de se recomporem do estranho fenómeno aproveitavam a oportunidade para fugirem pelo labirinto de ruas, não obstante os guardas vociferando uns com os outros os perseguirem.

Lentamente o velhote pousou em cima do telhado de um mosteiro e após se agarrar desesperado às telhas começou a berrar para o retirarem de tão incómoda posição.

Rodolfo e Abdul Hauqel riam da cena, o salteador após instantes de hesitação desapareceu deixando o ferro no chão de areia.

- Nunca passei momentos tão divertidos.

O dey sentara-se num degrau ajeitando o cinto da espada em forma de meia-lua de que nunca se separava.

- Apesar de os nossos esforços serem debalde até ao momento, valeu a pena a vossa companhia nesta viagem até terras do Levante.

- O tempo urge. Como poderemos encontrar o mascarado da camisa azul?

- Se soubéssemos de quem se trata seria mais fácil a nossa tarefa.

Um moço de bigode farfalhudo, cabeça redonda repousando sobre uma lechuguila ou gola espanhola sob uma armação de arame, aproximou-se e interpelou os amigos.

- Posso ser útil?

De capa negra, chapéu de feltro com abas largas contendo plumas e gibão justo enchumaçado com um produto mole, o desconhecido demonstrava alta estirpe e convivência social elevada. Rodolfo encarou o castelhano com curiosidade pela forma intrépida como se lhes dirigiu.

- Ouviu a conversa?

- Sim. Ia a passar e não o pude evitar.

- Procuramos um mascarado com uma camisa azul, é dono da pedra que queremos obter.

- Se quiserem conduzo-os a ele.

- Como sabe ser o mesmo?

O homem não respondeu logo, mas o sorriso cativante exprimiu confiança ao grupo.

- As notícias espalham-se depressa.

O cavalheiro com gestos de fino recorte balanceava as mangas da túnica e pela prontidão de movimentos demonstrava que há anos usava os calções e pantorrillas que trazia. Sem dar explicações dobrou a coluna numa vénia cerimoniosa, pedindo para o acompanharem. De passo largo percorreram longas ruas sujas até chegarem a uma casa de pedra aonde sobressaia um escudo sobre a porta de entrada. As sentinelas afastaram-se dando passagem para uma sala solarenga e arejada, predominavam quadros de pintores castelhanos e flamengos famosos sobre as paredes caiadas, em baixo esteiras de esparto rodeavam o compartimento, à medida que caminhavam o ladrilho rugia sob os pés, os santos e beatos observavam-nos do alto com os olhos de pedra nos nichos.

Os sofás de veludo convidativos emergiam de tapetes persas e pequenos baús de marfim dispersavam-se sobre móveis caros dando uma atmosfera confortável, não sendo alheio um braseiro de cobre. Um vulto de camisa azul, de costas, à distância alguns metros, olhava para as traseiras da mansão através de uma janela, possivelmente para um repuxo colocado no centro de um jardim verdejante.

O dey de Argel sentiu um nó na garganta ao reconhecer aquela figura majestosa que dias antes o libertara das masmorras dos traficantes de escravos. Um frade na sombra observava atentamente os recém-chegados, apenas o fogo dos candelabros iluminavam timidamente a face meio oculta pelo capuz. Tossiu duas vezes para chamar a atenção do auditório.

- Sabemos da vossa missão e como humildes servos de Cristo devemos ajudar aqueles que procuram a paz.

- Precisamos da pedra para manter a concórdia entre os nossos povos.

O clérigo indicou o misterioso espadachim e esclareceu.

- Escondemos em lugar seguro a vossa relíquia.

Baixando a cabeça o frade aguardou que o estranho personagem que durante o diálogo se mantivera de costas voltadas quebrasse o silêncio.

- Bem-vindos.

Ao ouvir as palavras e reconhecendo a voz, o dey saltou agarrando o braço do espadachim.

- Brígida.

O nome da jovem feiticeira soou uníssono pela sala, um grito de dor acompanhara o gesto de Abdul Hauqal, as feições da moça contraíram-se ao sentir a mão do muçulmano agarrar-lhe no braço ferido.

- Brígida, arriscaste a tua vida para me salvar.

- Deixa-me. Estás a magoar-me.

Confusos os visitantes não sabiam qual a reacção a empreender, por fim Rodolfo encarou o religioso exclamando.

- Não saímos sem a pedra.

O frade atiçou o braseiro, apontando para uma porta de longos trincos cobrindo uma madeira de veios salientes.

- Entendo perfeitamente a vossa intransigência. Podeis tomar as vossas refeições na sala ao lado e disponibilizarei quartos para dormirem esta noite.

As mangas largas do hábito ocultavam as mãos quando o anfitrião agarrou uma tenaz de ferro atiçando as cinzas quentes.

- Sei que lutam contra o tempo.

Brígida, mais calma, dirigiu-se a Abdul Hauqal e murmurou.

- A pedra regressará no vosso barco a África, mas ser-vos-á entregue quando embarcarem.

Resolveram aceitar a hospitalidade da feiticeira e do monge para pernoitarem naquela casa. No dia seguinte, os cavalos partiam à desfilada em direcção a Tequilla. As tórridas planícies pareciam sufocar ao Sol e camponeses de pele tisnada, ainda descendentes de mudéjares, os antigos muçulmanos integrados nos novos reinos cristãos, apascentavam tranquilamente rebanhos de cabras e ovelhas indolentes mastigando ervas queimadas pelo astro-rei.

A noite surpreendeu o grupo no caminho e um oportuno acampamento de ciganos garantiu companhia aos aventureiros. Um desconhecido de raça calé explicou a razão da caravana.

- Seguimos para Tequilla. Os cuadrilleros prenderam um dos nossos reis e milhares de ciganos dirigem-se para a vila.

- Vão tentar a libertação dele?

- Sim. Ramiro, o nosso rei matou um salteador de estradas que possivelmente lhe queria roubar os dentes de ouro. Vão executá-lo mesmo sem julgamento.

- Nessa luta morrerão muitos homens de ambos os lados.

O cigano com um gesto de desprezo respondeu a Rodolfo mostrando a faca afiada.

- Podemos morrer contudo Ramiro será libertado.

Uma bailadeira saltou para dentro de um círculo de ciganos, ensaiou uma sarabanda revolvendo a cabeça soltando os cabelos em desalinho. Ao compasso das castanholas, tamborins e de uma viola, enlevada dirigia olhares provocadores ao dey de Argel que a contemplava curioso.

Thiago encheu um copo de vinho e bebeu um gole antes de mirar o cigano.

- Se ajudarmos a soltar Ramiro posso contar com o vosso apoio quando sairmos de Tequilla?

O interlocutor não retirava os olhos da mulher que dançava e respondeu rudemente ao português.

- Sim, se alguém ajuda um cigano pode contar que toda a tribo o secundará quando estiver em dificuldades.

As estrelas testemunharam o pacto. Música e danças duraram toda a noite, porém os viajantes pareciam jamais serem vencidos pelo cansaço.

VII

Tequilla acordara silenciosa, o ambiente pesado que antecedia os acontecimentos importantes como o daquele dia, em que a justiça levava ao cadafalso Ramiro, o rei dos ciganos.

De manhã cedo um número invulgar de soldados patrulhava as ruas e a comunidade cigana comparecia em peso à condenação do seu chefe.

Ramiro seguia altivo para o cadafalso aonde seria enforcado, acompanhado por uma forte escolta de cuadrilleros. Sentado em cima de um burro o carrasco, envergando uma vestimenta negra, era seguido por um séquito de monges com crucifixos abrindo caminho no meio da multidão. Enfiado numa túnica branca, de barrete azul, o rei dos ciganos levava as mãos atadas atrás das costas e um cabresto ao pescoço. Um pregoeiro gritava o crime, acompanhado pelo juiz que o condenara e pelo aguazil, sem um queixume, emproado, o réu observava a população que numa última homenagem lhe deitava flores.

Chegados ao patíbulo, o condenado subiu para cima de um estrado trepando os poucos degraus de madeira que o separavam da forca. O carrasco experimentou o nó da corda enquanto um frade num murmúrio lhe dirigiu algumas palavras piedosas.

Thiago, acompanhado dos seus novos amigos ciganos olhou em volta e verificou se o cavalo se encontrava conforme previamente planeara horas antes. Num rompante a corda da forca começou a arder, soltando imprecauções aos soldados, a multidão agitou-se e os guardas

dificilmente continham os populares. Um larápio aproximou-se de Thiago, roubou-lhe a bolsa com as moedas, golpeou a cabeça do jovem com um pau correndo em seguida. Assistido prontamente pelos circundantes o português não recuperou os sentidos e levaram-no em braços para casa de um médico nas proximidades de “Puerta del Sol”, uma habitação assente sobre pórticos com robustas grades de ferro nas janelas.

Durante quatro horas, apesar dos esforços do clínico o moço permaneceu desmaiado sob o olhar atento do dey e de Rodolfo, para reanimar na precisa altura em que um indivíduo coberto por uma capa entrava no quarto destapando-se.

- Agradeço a vossa preciosa ajuda.

A chegada intempestiva de Ramiro deixou os presentes admirados. Com curiosidade Rodolfo encarou o rei dos ciganos.

- Senhor, não sabemos porque nos agradeces pois praticamente nós nada fizemos para te soltar.

Uma gargalhada saiu da boca do homem que sem cerimónias se sentou aos pés da cama.

- Uma cigana contou-me os vossos feitos. Espantosa a maneira como incendiastes a corda, deitastes fogo ao patíbulo trovejando na altura em que me quiseram executar.

- Ramiro, nós em nada contribuímos para a tua salvação.

- Mentes, quem podia ter poderes para lançar tal pandemónio?

- Brígida. Não sei como ela soube do nosso pacto com os da tua raça.

O cigano levantou-se temeroso, pouco à vontade observou em volta e perguntou.

-Brígida? A terrível feiticeira responsável pela morte de tantos condenados salvou-me a vida?

- Sim, não podia ser outra pessoa.

Como um animal enjaulado o cigano andava de um lado para o outro com as mãos atrás das costas e passo firme.

- Porque me salvou a vida?

- Possivelmente para nos ajudares a fazer sair de Tequilla.

O homem parou cobrindo-se de novo com a capa antes de responder a Rodolfo. O nariz em bico de águia traia uma firme decisão.

- Ramiro reconhece as dívidas de gratidão. Toda a minha tribo vos ajudará a saírem da povoação numa tartana ou chalupa guiada pelos mais hábeis marinheiros da zona.

- Combinado. Amanhã um bergantim tripulado pelos mais destemidos corsários de Argel aguarda-nos ao largo da costa.

VIII

O cais de Tequilla agitava-se como normalmente todos os das vilas costeiras do mar Mediterrâneo. Gaivotas disputavam o peixe miúdo deixado na praia e os pescadores cosiam as redes com linhas antes de se lançarem na faina habitual.

Rodolfo preparou a chalupa, convidando Abdul Hauqal e Thiago a entrarem no pequeno barco que os levaria ao bergantim que se avistava alguns metros ao largo. Uma cigana aproximou-se e reconheceram a jovem que estivera a dançar no acampamento.

- Gostava de vos acompanhar.

Surpreendidos observavam a donzela de saias longas e xaile por onde escorriam os longos cabelos negros.

- Vamos para Argel.

- Sei do vosso destino. Li nas estrelas a vossa odisseia e o nosso futuro cruza-se.

Incrédulos com as palavras da moça ajudaram-na a entrar no barco e os braços robustos de Rodolfo imprimiram velocidade invejável à chalupa. Ainda se balanceava nas ondas da praia quando apareceram soldados a tentar impedir que o barco largasse a barra, contudo várias dezenas de indivíduos contrariam-lhes as intenções. Pesaroso Abdul Hauqal olhou para a praia aonde a peleja continuava sem tréguas.

- Lamento a pedra ter sido roubada e regressarmos sem ela, porém ganhámos amigos em Tequilla.

Thiago concordou com o dey ao reconhecer Ramiro e os ciganos combatendo os soldados.

- O rei dos ciganos cumpriu a promessa, logo que estejamos ao largo fogem e nunca mais os apanham.

Indiferente à luta que se desenrolava no cais que de onde se iam afastando, a cigana de véu a cobrir o nariz e a boca deixando apenas a descoberto os olhos, brincava com a espuma das ondas que rodeavam a embarcação e lhe molhavam a mão morena.

- Dentro de momentos estaremos em segurança.

O bergantim aproximara-se atraído pelos tiros e logo os corsários os auxiliavam a embarcar.

- Dey o teu coração está triste?

Já no convés Thiago observava os olhos melancólicos de Abdul Hauqal normalmente cheios de vida.

- Sim, não levávamos a pedra e o meu coração ficou em terras do Levante nas mãos de uma feiticeira.

Thiago não encontrou resposta a dar, contudo uma voz melodiosa e suave fez-se ouvir sobressaindo ao barulho das ondas.

- Aqui está a pedra sagrada.

Ao Sol, a pedra negra, fruto de tantas aventuras, brilhava nas mãos da cigana que destapou as faces.

- Brígida. Por isso Ramiro não morreu no cadafalso, ouvistes as nossas conversas no acampamento e nunca nos deixastes.

- Sim. Salvei-o para nos ajudarem a fugir e nunca me reconheceram disfarçada de cigana.

O dey de Argel, depois de pegar o talismã, beijou a feiticeira enlaçando-a. Thiago e Rodolfo prudentemente afastaram-se, apenas o céu e o mar ofereciam cenário para o par apaixonado.

FIM

Rui Manuel Resende
Enviado por Rui Manuel Resende em 17/04/2013
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