São Justiniano De Lepanto

I

A gruta de Lepanto, situada a escassas centenas de metros da costa algarvia, constitui um dos locais de peregrinação dos marinheiros que quando o mar faz perigar as suas embarcações, imploram com fervor o nome de São Justiniano.

Conta a tradição que Justiniano foi um terrível pirata que assaltava as aldeias ribeirinhas e viu-se um dia metido no meio de uma tremenda tempestade que lançou a sua embarcação contra os rochedos, despedaçando-a em mil fragmentos. Aos gritos, todos os companheiros de Justiniano morreram um a um tragados pelas ondas revoltas e quando este já se preparava para entregar a alma ao Criador viu aparecer uma cruz em chamas dentro de uma caverna.

Justiniano reuniu as últimas forças nadando em direcção à praia, e em boa hora o decidiu, pois assomou são e salvo. Depois de recuperar as forças procurou a gruta vindo a tornar-se um eremita, vivendo exclusivamente das esmolas e ofertas dos peregrinos das aldeias circundantes levando uma vida santificada e curando pela fé, muitos enfermos.

O tempo passou e como um rio, as gentes vizinhas da gruta todos os anos passaram a dirigir-se para o local sagrado, implorando a protecção ao santo protecção transformando aquele santuário numa enorme manifestação de fé.

Camponeses, pescadores e negociantes deitaram abaixo as barreiras sociais que os separavam e caminhan juntos pelas mesmas estradas ansiando idênticas graças e benesses, partilhando em comum os haveres.

Quando do aprisionamento de Rodolfo pelos corsários argelinos, ele prometera a São Justiniano fazer a peregrinação caso regressasse salvo ao reino de Portugal e, finalmente na companhia de Thiago, ali estava ele para cumprir a promessa.

- Thiago, quanta gente humilde aqui vem pedindo venturas?

O companheiro olhou em redor e observou os campesinos de barretes garridos agarrados a bordões, repartindo as sopas de legumes e os pães enegrecidos com pescadores descalços, mãos calejadas e de camisas esfarrapadas.

- Muitas centenas.

Um velho de barba rala aproximou-se deles. Sentou-se numa pedra e sem cerimónias entabulou conversa com os dois amigos.

- Infelizmente já não podemos pedir as bênções do santo como antigamente.

Rodolfo admirado deixou o homem continuar.

- Em tempos não muito distantes, todos podiam sentar-se numa rocha no fundo da gruta, era nesse penhasco que São Justiniano se sentava para meditar. Agora apenas alguns o podem fazer.

Thiago interpelou o indivíduo curioso pela revelação.

- Porque não são todos?

- O dono destas terras, querendo enriquecer à custa da fé alheia, colocou guardas na gruta, apenas aqueles que pagam podem sentar-se na rocha do venerável São Justiniano. A maioria são pessoas humildes que não podem pagar ou despender muito dinheiro, por isso ficam impossibilitados de lá entrarem.

O murmúrio da multidão aumentou quando uma carruagem escoltada por quadro guardas chegou à entrada da gruta, abrindo-se a porta para dar passagem a uma senhora idosa acompanhada de uma jovem. Altivas entraram na caverna, os romeiros receosos afastaram-se para dar passagem às damas.

Rodolfo chamou a atenção do velho, este com desdém respondeu à curiosidade do jovem.

- São a esposa e a filha do dono destas terras. A moça sofre de uma doença incurável procurando todos os anos um milagre que a cure da enfermidade que a consome.

- Porque não consulta um curandeiro?

O velho abriu os olhos de espanto ao ouvir a pergunta.

- Existem curandeiros conhecedores de plantas mágicas, mas até ao momento nenhum debelou a doença dela.

Thiago aproximou-se da moça quando ela regressou e subiu para a carruagem, porém um guarda ameaçador afastou-o com a lança. O velho agarrando o braço do jovem puxou-o para trás.

- Cuidado, os guardas têm ordens para matar quem se aproxime demasiado de Lucena.

O coche começou a descer lentamente o caminho da encosta e a populaça pouco a pouco voltou a dispersar-se.

Um rapaz aproveitando a distracção dos guardas que olhavam para a composição tentou forçar a entrada na gruta, mas foi barbaramente espancado. Rodolfo ainda o tentou auxiliar, porém a certa altura os peregrinos agarrando em paus e pedras principiaram a ameaçar as custódias, que apesar de melhor armados recearam a multidão fugindo num ápice.

Satisfeitos os fieis entoavam louvores a Rodolfo por os ajudar a se libertarem dos homens do odiado proprietário das terras.

Durante o resto do dia e toda a noite a alegria transbordou no acampamento. Com o alvorecer, notaram aterrados que uma enorme fileira de homens armados os havia cercado, o conde Manrique, dono do domínio vinha disposto a vingar-se da humilhação sofrida pelos seus acólitos.

- Procuro o culpado dos acontecimentos de ontem.

Receosos os caminhantes mantinham-se mudos como as rochas daquela centenária gruta, testemunha de tantos actos piedosos.

Rodolfo avançou e encarou o conde Manrique sem medo.

- Fui eu que defendi o rapaz dos teus guardas.

- Prendam-no.

Imediatamente Rodolfo viu os seus pulsos amarrados por uma corda à sela de um cavalo depois, lentamente, o nobre seguido dos demais cavaleiros começou a descer a ladeira com o prisioneiro.

II

No salão principal o conde Manrique jantava acompanhado da esposa e de sua filha Lucena, dispensando naquela noite os habituais convidados, quando um criado atravessou o aposento e sussurrou-lhe ao ouvido. De imediato deu ordens na sua voz possante habituado que estava a ser de imediato obedecido.

- Mandem-no entrar.

Um jovem acompanhado pelo serviçal entrou no salão parando em frente ao aristocrata.

- Que desejas? Sei que tens o selo do rei, por conseguinte devo receber-te.

- Chamo-me Thiago, venho pedir-te a libertação do teu prisioneiro.

- Nunca. Ele defrontou os meus homens e devo puni-lo.

- Peço a tua clemência, ele defendeu um rapaz que estava a ser barbaramente espancado e nenhum dos súbitos do nosso amado monarca pode receber tal tratamento.

Os olhos do conde Manrique encheram-se de ódio, levantando-se dirigiu-se para a porta e apontando para a saída, gritou:

- Sai das minhas terras pois quem manda aqui sou eu, não o rei. Se desejas sair com vida do meu castelo apressa-te.

Thiago manteve-se no seu lugar provocando ainda maior indignação ao fidalgo.

- Se não sais a bem vais a mal, tragam os meus mastins.

Passados alguns instantes três enormes cães irrompiam na sala, contudo ao aproximaram-se do forasteiro este começou a elevar-se no ar. Apesar dos esforços dos animais para o alcançarem, cada vez ele subia mais como amparado por uma força oculta. Perante o espanto dos presentes as lebres que serviam de jantar da família saltaram das travessas e aproximaram-se dos mastins que ao cheirarem o delicioso pitéu lançaram-se à desfilada atrás delas saindo do salão, fechando-se de seguida a porta do recinto.

Thiago voltou a descer e encarou um conde Manrique estupefacto e a balbuciar entre os dentes.

- Sois um mago?

O moço sorriu, com à vontade agarrou numa maçã trincando-a.

- Não, sou um homem vulgar.

- Sai do meu castelo.

Devagar um criado aproximou-se sorrateiramente do jovem pelas costas e com uma massa atingiu-lhe a nuca caindo o corpo imóvel no soalho. O conde contemplou o adversário dando ordens.

- Não o matem, não gostaria de que os enviados do monarca viessem aqui fazer investigações quando dessem por falta dele.

Cuidadosamente os criados puxaram a vítima para a rua principal da vila abandonando-a perto de um chafariz.

Passado um tempo Thiago recuperou os sentidos e os seus olhos mal podiam acreditar no que viam à sua frente. Rodolfo sentado diante dele esperava que o amigo recuperasse da pancada traiçoeira.

- Pareceu-me que nunca mais acordavas.

O jovem acariciou a cabeça dorida, lentamente tentou levantar-se, mas deixou o corpo permanecer na mesma posição ao sentir fortes dores nas costas. Depois inquiriu Rodolfo.

- Como saístes da prisão?

- Soltaram-me.

- O conde soltou-te?

- Não. Lucena, a filha do conde Manrique subornou um guarda que me soltou. Trocámos as nossas imagens da gruta.

- Que imagens?

- Todos os peregrinos costumam levar para suas casas uma pequena cruz queimada como recordação da visita ao santuário.

Com muito esforço Thiago conseguiu levantar-se e decidiu.

- Amanhã regressamos a Lisboa. Já cumpristes a tua promessa.

III

No bairro dos “Rais”, o dey de Argel acompanhado de oito janizaros bebia um café entretendo-se a ver a multidão a passar na rua Zenkat S´Bâ Tabaren. Duas mulheres com enormes haid, sob grandes albornozes, conversavam sem prestar atenção a três kalibas que puxando mulas cheias de odres com azeite se preparavam para ir ao mercado. Um ulama, um dos poucos homens que sabem escrever, rascunhava num papel ouvindo um cliente de turbante azul acompanhado de um turco, enquanto um servente esperava a sua vez para ditar uma carta de amor à sua apaixonada, para em troca, pagar ao ulama um peixe. Outro ulama desenhava uma roda mágica num documento e entregava-o a um judeu, que satisfeito por possuir agora uma mágica contra os malefícios mostrava a imagem a um barrani ou escravo cristão que o apreciava atentamente.

Um marabuto aproxima-se do dey de Argel, secundado por dois seguidores, preparando-se Abdul Hauqel para lhe dar esmola quando o seu turbante lhe foge da cabeça e começa a rodopiar no ar. Os janizaros receosos não ousam desafiar o “homem-santo” e olham para o líder que num cumprimento afectuoso saúda os recém-chegados.

- Thiago e Rodolfo, que bela surpresa.

O “marabuto” soltou uma gargalhada ao ver-se descoberto.

- Desembarcámos numa das vossas belas praias e como trazemos pouco dinheiro disfarcei-me de marabuto. Ficarias surpreendido com a “generosidade” do teu povo pois, apesar de havermos esfarrapado o nosso vestuário batendo com os albornozes contra as rochas, os teus vassalos obrigaram os nossos estômagos a passarem por um longo jejum não obstante o Ramadão ter sido há vários meses.

O dey de Argel sorriu e convidou os amigos a sentarem-se à sua mesa, tendo Rodolfo aproveitado a oportunidade para apresentar a companheira.

- Esta é Lucena, a filha do conde de Manrique raptado por um “rais” durante uma incursão ao sul do reino de Portugal. Viemos com a intenção tentar libertar o pai dela.

O chefe supremo da cidade olhou para a rapariga vestida como uma muçulmana e pesaroso encolheu os ombros.

- Todos os escravos que entram pela porta de Argel passam pelo meu palácio de Janina porém há alguns meses que não recebo nenhum. Muitos corsários desembarcam na costa, longe dos meus janizaros, encaminham os cativos para sul aonde algumas tribos como os “Aurés” os recebem e os enviam para as montanhas.

Thiago pousou a mão em cima do ombro de Lucena para lhe dar ânimo fixando um verdadeiro marabuto que passava e que curioso olhava o “colega” com sotaque estrangeiro.

- Não desistiremos, precisamos descobrir as montanhas dos “Aurés”, partiremos os três e haveremos de descobrir o paradeiro do conde Manrique.

Abdul Hauqel concordou prontificando-se a auxiliar a comitiva.

- Hoje dormirão no meu palácio de Janina, pela alvorada três mulas com mantimentos esperarão por vós nas “Portas do Sol”. Cuidado, qualquer contratempo poderá transformá-los em três barranis.

- Não temas meu amigo. Se na rua Badestan, o local aonde vendem os escravos cristãos ou barranis não estiver quem procuramos, iremos a qualquer local mesmo que para isso tenhamos de ir a Constantinopla buscá-lo.

O dey de Argel sorriu divertido e respondeu ao amigo.

- Eu sei, estou mesmo a imaginar a cara do sultão turco quando passear pelos frondosos jardins do palácio e ouvir os peixinhos dos lagos a conversarem.

Uma risota geral acolheu o gracejo de Abdul Hauqel, depois com um ar mais sério aconselhou.

- Visitem o Casbah, frequentem os cafés e os banhos, talvez com um pouco de sorte ouçam informações úteis. Vou também pedir aos meus espiões que estejam atentos.

- Obrigado meu amigo.

- Amanhã dirijam-se para o mercado de Azun e quando a feira acabar acompanhem os mercadores no regresso às montanhas.

A tarde decorreu sem problemas e sem novidades. Percorreram as ruas mais movimentadas da cidade contudo todos desconheciam a chegada recente de escravos pelo que resolveram adiantar os preparativos para a jornada.

IV

Desde muito cedo os feirantes começavam a desmembrar as tendas e a reunir os animais para se integrarem nas caravanas, que em zig-zag por entre palmeiras, levantavam uma poeira esbranquiçada rapidamente transportada pelo vento para longe. As muralhas de Azun, imponentes e fortes pareciam ignorar a sua terrível história, um local de matança de tantos condenados obrigados a saltar vindo a morrer sobre aquelas pedras pisadas naquele momento pelos pés do povo. Turcos, mouros, kabilas, judeus, uma infinidade de raças e credos cruzavam-se conversando sob a autoridade dos janizaros sempre prontos a intervirem ao mínimo despontar de uma confrontação.

Thiago estava sentado sobre uma esteira conversando com Rodolfo e Lucena quando um rosto enegrecido pela luminosidade do deserto parou diante dele apurando uma requintada vénia.

- Marabuto, dais-me a honra de te convidar para nos acompanhares?

O moço olhou para aquelas feições enrugadas pelo calor e reconheceu na cimitarra presa à cintura, pelo albornoz e turbantes negros como carvão, um berbere do deserto. Aprovando o aspecto do interlocutor agradeceu a gentileza.

- Folgo muito em podermos gozar a vossa companhia, dirigimo-nos para sul em busca de um barrani.

Agha, o berbere não dissimulou uma expressão de espanto, contudo rapidamente o sorriso que o obrigava a mostrar os dentes apodrecidos pelo haxixe voltou a aflorar-lhe o rosto.

- Eu e mais dois companheiros da minha tribo viemos buscar algumas crianças que após passarem alguns meses a aprender a ler e a escrever em Argel retornam a casa. No nosso regresso costumam ocorrer inúmeros perigos e a presença de um marabuto impõe respeito ao mais feroz dos assaltantes. Connosco também viajará um tuaregue.

Rodolfo sorriu, coçou a orelha e gracejou.

- Agha, podes crer que o nosso “santo-homem” tem um modo muito peculiar de tratar os salteadores.

O africano concordou e erguendo as mãos para o alto como numa prece concluiu.

- Esses poderes certamente recebem os marabutos de Alá. Quando Maomé montado num camelo subiu à montanha…

- Agha, não canses mais o nosso “santo-homem”, ele não aparenta, mas já possui uma idade avançada.

Thiago lançou uma pequena pedra a Rodolfo, que rindo da fictícia cólera do amigo, desviou-se do projéctil.

Sem compreender o significado da brincadeira o nómada do deserto curvou o tronco numa reverência e anunciou.

- Dentro de algum tempo passarei aqui com a minha gente e iniciaremos a marcha.

Depois da retirada do moço, os três companheiros fizeram planos para a jornada e Lucena foi a primeira a pronunciar-se dirigindo-se a Thiago.

- Quando chegarmos às montanhas talvez algum membro da tribo nos indique o paradeiro do meu pai.

- Sim, estes viajantes percorrem as areias escaldantes como os barcos cruzam os oceanos, vivem em cima das montadas metade da vida.

- E manejam as armas como ninguém.

- No entanto as crianças podem retardar-nos a jornada.

- Em qualquer expedição a nossa travessia seria lenta, com os mercadores também as cargas demorariam a viagem.

Finda a conversa carregaram os animais e quando o berbere regressou principiou a marcha em direcção às montanhas dos “Aurés”. As palmeiras e os oásis tornaram-se mais raros e a vegetação seca deu lugar às ondas de areia, em pouco tempo deixaram de vislumbrar qualquer outro animal a não ser as mulas, cavalos e camelos que lentamente arrastavam as crianças e os parcos haveres da caravana.

V

Dois dias passaram-se, e ao amanhecer do terceiro dia viram uma longa coluna no horizonte, que com o passar do tempo ia intensificando os contornos de cavaleiros fortemente armados deixando-os a todos amedrontados.

Agha, preparou-se para a peleja, mas Rodolfo acalmou o guerreiro.

- Espera eles aproximarem-se, guardemos os nossos trunfos.

Os montadores cercaram o grupo e o que parecia ser o chefe deu ordens para a caravana se desviar do rumo traçado até aquele momento sendo prontamente obedecido, deslocando-se todos com a mesma lentidão até chegarem a um acampamento coberto de tendas. Um pouco mais longe algumas dezenas de camelos tentavam arrancar do chão ervas secas e um grupo de mulheres com baldes iam retirando água de um poço.

Os raptores conduziram os prisioneiros até à presença de um velho barbudo que com uma faca trabalhava numa madeira construindo uma flauta.

Todos cumprimentaram o indivíduo que pareceu só naquele momento reparar nos cativos.

- Quem sois?

Thiago destacou-se e com uma referência explicou.

- Gente pacífica. Estas crianças regressam ao lar acompanhados de familiares da sua tribo e nós procuramos um barrani.

O ancião de barbas brancas franziu um sobrolho surpreendido.

- Um marabuto à procura de um escravo cristão?

- Sim.

Um homem de feições cruelmente mutiladas destacou-se do grupo que cercava o velho, e de pé com o dedo acusador voltado para o jovem, gritou.

- Mentes, são espiões da tribo dos Abid, os spahis árabes.

Agha, tentou lançar o cavalo à desfilada pronto para ferir o adversário, mas Rodolfo conseguiu prender-lhe as rédeas evitando o confronto.

O idoso levantou-se, aproximou-se de Thiago rodeando-o curioso, depois parou e encarou a pequena assembleia com quem conversava antes da chegada dos forasteiros.

- Comparemos a magia do nosso feiticeiro Mustafá com a do “homem-santo”. Se o nosso mago vencer os estranhos, eles serão arrastados pelos cavalos e mortos, porém se o marabuto triunfar, o nosso mago será chicoteado e os forasteiros poderão partir em paz.

O feiticeiro esperou que o velho se sentasse, espalhou bagos de milho no chão e desafiou Thiago mostrando-lhe uma galinha.

- Tanta impedir esta ave de comer o milho sem te aproximares dela e eu acredito que sejas um marabuto.

Como por magia um espeto que assava pedaços de carne numa fogueira próxima começou a mover-se no ar perseguindo a galinha que num instante desapareceu no labirinto de tendas.

Os nómadas estupefactos começaram a segredar entre si sobre o estranho prodígio olhando para o local aonde se sumira o animal com o espeto voador manejado por uma mão invisível.

Passados alguns segundos ouviram o zumbido de uma flecha e uma sentinela apareceu com o bicho agarrado pelo pescoço e com um enorme sorriso começou a falar.

- Chefe, esta galinha ia a fugir, mas eu consegui apanhá-la.

O velho barbudo soltou uma gargalhada, mas Mustafá chegou perto do guarda dando-lhe uma bofetada cheio de cólera surpreendendo a sentinela que fugiu a correr enquanto um coro de gargalhadas enfurecia gradualmente o feiticeiro. Vermelho de raiva voltou-se para Thiago que permanecia imóvel.

- Ganhastes o primeiro assalto porém falta venceres a guerra.

Furioso, procurou umas pedras e deitou-as no fogo até ficarem incandescentes.

- Vou passar descalço por cima delas, quero que faças o mesmo.

Concentrando-se passou rapidamente com os pés nus sobre as pedras e cruzando os braços depois da transição voltou-se para Thiago aguardando ver o que o antagonista fazia.

- Desafio-te a também passares descalço por cima delas.

O cristão sorriu, descalçou-se sentando-se no chão. Depois parecendo estar assentado numa liteira invisível levantou-se no ar e como que por artes mágicas passou por cima dos calhaus.

Murmúrios de admiração ouviram-se por toda a parte. Repentinamente um zumbido ecoou, uma seta proveniente do aglomerado de pavilhões atravessou o ar cravando-se no braço esquerdo de Mustafá que com um grito caiu por terra. Thiago saltou sobre ele, arrancou a flecha do corpo do mago, colocou a boca no ferimento e cuspiu de forma a neutralizar algum eventual veneno. Depois assentando a cabeça do ferido em cima de um tronco acolchoado com o seu próprio turbante retirou um líquido de uma sacola tingindo o braço do feiticeiro. Os muçulmanos seguiam todos os movimentos do forasteiro não ousando interferir no tratamento.

- Ele precisa agora de descansar. Quem poderia querer a sua morte?

O velho de barbas coçou o queixo pensativo.

- Mustafá tem muitos inimigos e agora de noite dificilmente apanharíamos quem lhe atirou a seta.

Alguns lamentos de dor vinham da boca do mago. Lucena aproximou-se dele e ao chegar-se junto do jovem feiticeiro este arrancou-lhe o pequeno crucifixo carbonizado, lembrança da gruta de São Justiniano, que ela trazia ao pescoço e escondeu-a por baixo da túnica. O chefe árabe quis devolver-lhe a recordação porém a moça impediu-o.

- Deixa, Mustafá precisa neste momento mais da imagem do que eu. Necessita de um sono retemperador, depressa saberemos como reagiu ao veneno.

- Ele ainda é muito novo, certamente vai sobreviver.

- Sim, não deixámos o veneno espalhar-se.

- Dei ordens para que vocês dormissem numa tenda. Podem depois partir quando quiserem, contem com a amizade da minha tribo.

Lucena sorriu para o ancião agradecendo, depois aconchegou um cobertor no corpo de Mustafá ficando de vigília ao jovem feiticeiro. Thiago e Rodolfo naquele momento traçavam uma linha num mapa.

- Ao alvorecer retomaremos o caminho em direcção às montanhas, devemos evitar as trilhas perigosas para as crianças.

- Parece que existe pouca união nestas paragens.

- Não duvides. Argel fica longe, apenas podemos contar connosco.

Agha que os acompanhara desde o princípio da jornada aproximou-se deles mascando tabaco.

- Amanhã chegaremos à minha tribo. Não sei o que seria de nós sem a vossa presença.

- Apenas cumprimos o nosso dever.

- Sois um “santo-homem” estranho. Já tinha contactado com outros marabutos e ouvido falar dos seus prodígios, mas é a primeira vez que assisto às maravilhas de um deles.

Thiago pousou a mão amigavelmente no ombro do berbere e confessou.

- Não presenciastes nenhuma magia, apenas observastes fenómenos naturais. Descansa agora que tudo correrá bem.

A noite envolveu todo o acampamento com o seu manto negro e o rugir de um leão não chegou para inquietar os animais e os homens habituados aos sons daquelas paragens. O ruído abafado pela areia dos cascos de um cavalo cavalgando para fora do local pronunciou desgraça não obstante a quietude da escuridão.

VI

Desgastados pelo calor, foi com manifesto alivio que o chefe dos berberes apontou para um local perdido no horizonte.

- Dentro de pouco tempo poderei abraçar a minha gente.

Rodolfo sorriu, levantou o braço mandando parar a caravana.

- Vamos almoçar. Entretanto um dos teus homens pode ir anunciar a nossa chegada.

Agha soltou uma gargalhada e esclareceu.

- Não precisamos de avisar. Neste momento já toda a nossa tribo sabe que estamos aqui, nada lhes passa despercebido à volta do nosso deserto pois enxergamos ao longe.

Uma linha de pó começou a desenhar-se ao longe e gradualmente deu forma a três cavaleiros montados em cavalos pequenos e musculados. Ao chegarem junto da caravana cumprimentaram, colocando a mão no peito.

- Que Alá vos proteja.

Depois da saudação, o trio recém-chegado desmontou e sentou-se para ouvir o relato da viagem em que Agha não poupava elogios aos cristãos. Ouvindo com a máxima atenção a narração, um dos recém-vindos puxou de um longo cachimbo, acendeu o conteúdo do pipo e absorveu o fumo.

- São poucos os barrani a atravessarem o deserto e os que passam são escravos para irem trabalhar para as pedreiras das montanhas.

- Procuramos o pai de Lucena. Ele só podia ter passado por aqui há poucas semanas.

O berbere abanou a cabeça cuspindo para o lado retorquindo a Rodolfo.

- Apenas demandaram estes lugares dois barrani há uma semana, eram jovens que iam trabalhar para um turco que comprou vastas propriedades no interior. O otomano prefere ser guardado por escravos cristãos do que por muçulmanos.

- Porquê?

- Porque sendo bem tratados querem conservar a boa saúde do turco pois não sabem depois de ele morrer quem vai ser dono deles e qual vai ser o novo trabalho. Como cativos não sonham com grandes ambições.

- Então iremos para oeste.

- Muito cuidado, a consideração de que gozam os marabutos em Argel não é a mesma que por estes lugares. Aqui prevalece a lei do mais forte.

- Teremos cautela.

- Sim, quando virem homens armados nunca saberão se são amigos ou inimigos.

Thiago agradeceu a hospitalidade do berbere. Montando a cavalo seguido de Lucena e Rodolfo iniciou a jornada para oeste.

Percorridas algumas milhas e já com o Sol em poente vislumbraram um grupo de homens à volta de um braseiro com solidéus na cabeça, camisas de pano brancas e meias negras. A gaba estava presa à cintura por um shal.

Ao verem aproximar-se os três amigos o que aparentava ser o mais velho levantou-se convidando-os a sentarem-se junto ao braseiro.

- Somos judeus, estamos comemorando o “Pentecostes”. Se sois berberes acompanhem-nos na nossa celebração e festejem o “Navasardi”.

- Não somos berberes, mas sim cristãos.

O semita traiu uma expressão de assombro, sentando-se continuou a alimentar o lume com gravetos.

- Então comemorem o São João.

Thiago desmontou, retirou um recipiente com água sentando-se em seguida ao lado do judeu.

- Engraçado como na mesma altura existem três celebrações diferentes para cada uma das religiões.

Um dos hebreus veio com uma ânfora de vinho e ofereceu-a aos cristãos.

- Bebam. Se desejam comer têm carneiro a assar e como o Sol deve desaparecer dentro de momentos podem dormir aqui. Rodolfo recusou o vinho dizendo.

- Preciso de tratar dos animais, mas agradeço o teu convite.

Depois de cuidar dos cavalos e mulas o moço dirigiu-se para um poço a fim de encher os recipientes, contudo um dos judeus impediu-o de continuar.

- Não tem água, tens uma nascente mais adiante.

Rodolfo começou a caminhar para o local indicado, contudo um lamento das profundezas do poço acabou por o fazer parar. Quando se voltou viu o hebreu apontar-lhe um bacamarte.

- Devias ter aceitado o vinho pois já estarias com os teus amigos.

Olhando para o fundo do poço, Rodolfo viu Thiago e Lucena sentados no fundo a olharem para ele com uma expressão inquieta.

- Este poço é uma prisão natural.

O cristão reconheceu a voz do judeu que os recebera e viu com apreensão que estava desarmado.

- Traficamos escravos, foi no entanto a primeira vez que vieram ao nosso encontro por espontânea vontade.

Sem oferecer resistência o moço deixou que o prendessem e o descessem por uma corda para junto dos companheiros.

- Dentro de dias os “Aurés” virão buscá-los para os venderem nas montanhas para as pedreiras. A jovem será vendida como escrava para alguém que a precise como serviçal ou concubina.

No fundo do túnel reinava a amargura, os três cristãos faziam agora companhia a dois negros capturados na Núbia enquanto andavam a pescar. Alguns musgos cobriam a carne fedorenta e deteriorada com que os semitas alimentavam os prisioneiros.

- As paredes são demasiado altas para treparmos e escasseiam as pedras para nos agarrarmos.

Lucena fez um movimento afirmativo com a cabeça à observação de Thiago olhando tristemente para a boca do poço aonde sobressaia uma ténue claridade. O amigo sentou-se mais próximo dela.

- Não podemos acender um lume pois as ervas estão verdes e o fumo intoxicava-nos em pouco tempo.

- Só nos resta aguardar acreditando que a humidade não nos deprima.

- Enquanto houver vida, há esperança.

- Fomos muito ingénuos em deixar-nos surpreender e termos dito que éramos cristãos.

- De momento nada podemos fazer senão descansarmos aguardando os acontecimentos.

Pouco a pouco o sono foi vencendo-os, um silêncio pesado surgiu mantendo-se por largas horas Rodolfo de vela, observando a entrada do poço. Já os olhos se principiavam a fechar quando um ligeiro ruído o inquietou. De repente algumas cordas desceram fazendo com que ele acordasse os amigos.

- Silêncio, alguém está a querer libertar-nos.

Começaram as subir pelas cordas, ao chegarem ao cimo viram um árabe de rosto coberto pedindo silêncio e um dos judeus jazendo com um punhal enterrado no peito a poucos metros de distância. De imediato seguiram o salvador para junto de quatro cavalos, mas a queda de um dos núbios complicou a fuga ao acordar os judeus.

O oportuno rugido de um leão perto do local onde acampavam os traficantes de escravos lançou a confusão salvando a situação e os seis saltaram para os corcéis indicados partindo a galope.

Correndo velozmente atrás do desconhecido viram com temor o grupo perseguidor dos hebreus ganharem terreno pois alguns cavalos dos fugitivos levavam dois cavaleiros e acabaram por entrar num desfiladeiro. Os perseguidores seguiram-nos até à entrada montanhosa sendo recebidos nessa altura por uma oportuna chuva de balas que os fez retroceder em pânico pois não contavam com uma emboscada.

Parando os cavalos dirigiram-se aos novos aliados e espantados reconheceram Agha comandando um numeroso grupo de berberes ainda escondidos nas rochas.

- Agha, eu nunca pensei sentir tanta satisfação em ver-te nestes penedos.

O nómada desceu da rocha correndo em direcção a Thiago que desmontou e o abraçou efusivamente.

- Marabuto, apenas seguimos as instruções de um membro de uma tribo nossa amiga que pediu para esperarmos aqui por vocês.

Todos olharam em redor à procura do libertador de rosto coberto contudo ele desaparecera sem deixar rasto.

- Sabes quem era?

- Não. Tinha as faces ocultas, apenas o identificamos pela vestimenta como membro do outro clã, seguimo-lo até aqui e depois aguardámos conforme nos pediu.

Rodolfo sentou-se no chão e esticou as pernas ainda dormentes.

- Muito feliz a nossa fuga. Primeiro um leão apareceu na melhor altura a rugir no meio dos traficantes de escravos e depois os teus companheiros aqui à nossa espera.

Agha inquiriu curioso Rodolfo depois de ouvir as suas palavras.

- Surgiu um leão no meio deles?

Thiago piscou um olho para o amigo emendando.

- Não vimos nenhum leão, apenas se ouviu um rugido.

Rodolfo encarou o amigo, deu uma risada batendo com a mão na areia do deserto.

- Claro que o rugido só podia ser obra tua. Só não entendo quem estava interessado em arriscar a própria vida para nos salvar?

Lucena regressava a pé puxando o seu cavalo pelas rédeas e ouvindo a conversa sorriu.

- Eu sei a identidade do nosso salvador, encontrei isto no pescoço do meu cavalo.

Todos se levantaram curiosos e foram ver de perto o objecto que a filha do conde Manrique transportava na mão

- A cruz de São Justiniano de Lepanto.

Thiago agarrou no objecto sagrado, beijou-o e murmurou enquanto olhava o deserto.

- Mustafá pagou a dívida dele.

VII

Um vermelho agressivo tingia o horizonte, prenúncio de violento calor para o dia, o vento desaparecera por completo e a ondulação da areia perdia-se nas rochas das montanhas pouco nítidas contrastando o ouro com o castanho.

Thiago segurou numa pequena ânfora e hidratou o cavalo que com sofreguidão bebeu sedento o conteúdo.

- Dentro de algumas horas estaremos nas montanhas. Os indígenas destas zonas veneram os “velhos das montanhas” que habitam nesses lugares inóspitos.

- Como podem seres humanos viverem num ambiente tão hostil?

- Bebem a água dos cactos e alimentam-se de raízes.

- Estranho procedimento.

- Conta a tradição que descendem de antigos escravos fugitivos que se refugiaram nas grutas para fugirem aos donos.

- Como conseguem não voltar a cair nas mãos dos amos e traficantes de escravos?

- Possuem estranhos poderes, sabem fazer-se temer por aqueles que os hostilizam.

Penosamente os cavalos chegaram às montanhas e vaguearam pelos desfiladeiros de areia fina. No cimo do monte um negro idoso numa atitude de prece acompanhado de um pachorrento leão que dormitava pareceu ignorar os europeus. Thiago dirigiu a montada para junto do anacoreta, o leão acordou da letargia, contudo o eremita colocou a mão sobre o dorso acalmando-o e indagou.

- O que procuras?

- Desculpa interromper a tua oração, procuramos um barrani.

O indivíduo olhou em redor, respondendo e fazendo em simultâneo um gesto com a cabeça.

- Há dias que não passa aqui ninguém. Diariamente rezo na montanha como o profeta me ensinou no seu livro sagrado não dando conta de alguém aqui passar.

- Procuramos o pai da rapariga que nos acompanha.

Lucena maravilhada com a calma do negro desmontou e sentou-se junto daquele ser andrajoso com tão estranha parceria.

- Minha filha, aquele que procuras deixará a solidão das companhias com quem anda arranjando o amparo graças ao teu amor.

- Sabes do seu paradeiro?

- Todos temos um pouso e apenas estamos perdidos quando queremos. Quantos de nós nos julgamos desgarrados e tudo reconhecemos à nossa volta comungando com Aquele que nos criou? Deus sabe o lugar de todos e até aquela lebre que ali vês sabe aonde me encontrar durante o dia.

- Ajudas-me?

Um pequeno fruto rolou de um arbusto caindo aos pés dos dois.

- Alá acaba de te informar que a vida consiste numa roda, voltarás ao inicio da tua jornada com aquele que anseias e o ciclo será fechado.

A respiração do ancião tornou-se ofegante. Thiago temeu pela saúde do negro e aconselhou.

- Deixa-o, para quem não fala há muito tempo estás a obrigá-lo a um enorme esforço.

Com dificuldade o homem levantou-se com a ajuda de uma vara e apontando para longe exclamou.

- Sigam este rumo que vos estou a indicar. Muitos perigos vos aguardam, mas não desesperem pois Deus é misericordioso.

Desceram a encosta íngreme, os animais percorriam a trilha escorregando nas pedras, apenas os braços dos viajantes travavam a marcha. Ao resvalar, as mulas e os cavalos levantavam a areia formando uma nuvem obrigando os retardatários a tossirem as impurezas do ar.

A marcha continuou penosa, o Sol asfixiante não dava tréguas e a vegetação parecia soçobrar ao calor. Passadas algumas horas viram uma dezena de indivíduos esfarrapados picando a pedra enquanto três guardas sentados sob um arbusto mascavam tabaco e limpavam longos saifs ou espadas árabes. A chegada dos forasteiros não interrompeu as tarefas até ao momento em que Lucena correu para um dos cativos que se encontrava preso com grilhões unidos por uma pequena corrente abraçando-o expansivamente.

Uma das sentinelas que parecia ser o chefe, levantou-se de imediato e agarrou a moça que em desespero procurou soltar-se só acalmando quando sentiu uma faca na garganta. Rudemente o guarda inquiriu.

- Quem sois?

Depois ordenou aos companheiros que desarmassem Thiago e Rodolfo e prendendo-os com cordas. O grupo havia descoberto o paradeiro do conde Manrique porém a sorte continuava adversa.

O resto da tarde decorreu com Lucena olhando tristemente para o pai que mais magro e escuro continuava britando a pedra. Um tuaregue vestido de azul em que apenas os olhos estavam destapados passou parecendo nem se dignar a olhar a triste cena.

VIII

Passados quinze dias os jovens continuavam sem esperança de salvação. Enquanto Thiago e Rodolfo saiam com os demais cativos a partir a rocha, Lucena servia como serviçal na casa do dono dos escravos.

A habitação era constituída de uma casa de apenas um piso que rodeava um pequeno lago artificial sendo a parte de cima constituída por um terraço, aonde os nativos faziam a secagem de produtos agrícolas. Uma divisão autónoma com grades servia de dormitório aonde pernoitavam os prisioneiros em velhas enxergas roídas pelo tempo.

O chefe do trio de guardas era um homem impiedoso, chamado Haddad, que não poupava os condenados à escravidão utilizando o chicote do cavalo quando se demoravam mais a caminhar ou faziam um pequeno intervalo no trabalho de desbaste das pedreiras. As caras com cicatrizes dos escravos eram a parte visível da desumanidade com que ele os tratava.

No final da tarde, antes de anoitecer, uma vez mais regressavam os prisioneiros em fila indiana com uma enorme corda que os prendia pelo pescoço uns aos outros, com grilhões e correntes nos pés que lhes dificultava a marcha sendo amparados pelos companheiros quando algum ameaçava cair.

Os guardas seguiam ao lado do grupo cavalgando prontos para darem com o pequeno chicote naquele que se atrasasse.

Ao chegarem ao átrio viram três homens conversando calmamente sentados sobre a borda do muro do lago artificial. A vestimenta totalmente azul em que apenas lhes deixava visíveis os olhos imediatamente os identificou como tuaregues.

Haddad e os outros dois guardas ignoraram-nos, pois estavam habituados à chegada de nómadas mercadores que procuravam vender utensílios nos poucos lugares habitados.

Calmamente desceram das montadas e levaram os cavalos a beber deixando os escravos saciarem a sede no tanque. Enquanto os animais bebiam retiravam-lhes as selas e as rédeas para os preparar para o descanso na cavalariça.

Entretanto Lucena saiu de casa munida com uma bilha e uma tigela como habitualmente fazia para dar de beber aos três guardas, contudo em vez de fazer o usual trajecto entregou os utensílios ao que parecia ser o chefe dos tuaregues, regressando rapidamente para a habitação.

Perante a surpresa dos circundantes o nómada abandonou os companheiros dirigindo-se a Thiago e enchendo uma tigela de água ofereceu-a ao jovem.

Haddad, que presenciava o que o tuaregue fazia, aproximou-se dele com a chibata procurando bater-lhe de modo violento porém o forasteiro desviou-se e com um potente murro deitou o adversário ao chão.

Outro guarda que assistia veio em socorro de Haddad com a cimitarra ao alto, mas um tiro proveniente do terraço atingiu-lhe um braço fazendo com que a arma rolasse no pavimento.

Todos olharam para o local de onde havia partido o disparo e com assombro viram dez homens segurando bacamartes prontos a intervir se necessário.

Os dois tuaregues que tinham assistido a tudo, imóveis até aquele momento, saíram do local aonde estavam sentados, calmamente dirigiram-se para Haddad que permanecia deitado no chão, retiraram-lhe as chaves e abriram os grilhões aos escravos colocando-os por sua vez nos vigias obrigando-os em seguida a entrarem na divisão da casa com grades.

Com um gesto o líder tuaregue convidou todos os prisioneiros a entrarem em casa e sentou-se no tapete persa da sala de estar seguido do grupo. Retirou o turbante que lhe encobria o rosto e com um sorriso falou para o grupo.

- Davam uns excelentes barranis.

Thiago, Roberto e Lucena não esconderam a sua expressão de assombro quando reconheceram o dey de Argel. Thiago foi o primeiro a recompor-se da estupefacção e inquiriu.

- Como nos descobristes?

Abdul Hauqel olhava para os amigos ainda mal refeitos da surpresa esclarecendo.

- Não utilizei poderes mágicos. Quando saíram de Argel no vosso grupo ia um tuaregue que era meu espião. Tinha como missão acompanhar-vos e zelar pela vossa segurança.

- Penso que nunca mais o vimos desde que deixamos as crianças com a tribo.

- Não o viam contudo ele sempre esteve a vigiar-vos. Quando os prenderam na pedreira foram a ele que o viram passar e depois de saber aonde dormiam veio avisar-me do que tinha sucedido.

- Abençoado seja.

- Seguidamente vim aqui com os meus janizaros e libertei-os. Fico contente por Lucena ter encontrado o pai tendo tudo acabado bem. Regressaremos a Argel podendo depois retornarem ao reino de Portugal quando quiserem.

- E os guardas das pedreiras?

- Irão connosco. Serão condenados por maltratarem os cativos e terem vos tornado escravos que são delitos graves. Agora vamos dormir pois amanhã iniciaremos a viagem de regresso.

A noite estava quente, Lucena e o pai abraçados foram até ao átrio ver ao longe as montanhas que tinham sido cenário de tantos dias de sofrimento. Os olhos estavam agora marejados de lágrimas de alegria.

Fim

Rui Manuel Resende
Enviado por Rui Manuel Resende em 23/04/2013
Código do texto: T4254807
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