O Som do Sistema Nervoso em Circulação.

Em certas ocasiões os sons do mundo se misturam. Os barulhos das máquinas e dos homens são músicas que se ouvem dias e noites. Uns gritam nas madrugadas, velhas nas lavanderias movimentam suas máquinas a vapor, outras tricotam um cachecol para suas bisnetas. Mães embalam crianças e murmuram sons incompreensíveis, assustando as crianças.

Dentro do consultório dentário o som da broca é o horror da boca. Na recepção o ventilador faz o velho cochilar e babar pelo canto esquerdo da boca desdentada, enquanto lá fora dores e paixões mundanas levam os esperançosos de volta para seus lares depois de um surrado dia de trabalho.

O calor é demais e o sapato aperta com os inchar dos pés. Nas escadarias de uma catedral, no centro velho, uma senhora, depois de andar o dia todo para visitar o filho na penitenciária, senta e acende um cigarro do Paraguay. Olha para cima e solta uma baforada, que sobe e flutua, dando a impressão de um deus se indo ao espaço, num lugar onde as estrelas piscam como que a dizer para não desistirmos, que estão lá e são nossas companheiras de caminhadas...

Na calada da noite o bêbado não agüenta mais e deita na calçada.

Cães cheiram seus pés extremamente fedidos, e ali mesmo se aquietam. Adolescentes matreiros, surgidos das periferias, levam suas sandálias e sua trouxa de roupa. No dia seguinte o bêbado acorda mendigo. Desmemoriado, sem roupas, lenços e documentos, vaga descalço pelas ruas, com fome, dor de cabeça e o sistema nervoso comprometido, gerando a ira dos comerciantes locais, que o rechaçam como se fosse uma praga. O bêbado então desiste do mundo e se senta no chão, deixando-se ficar sem pensar, impassível às coisas do mundo, quase sem respirar, sem ocupar espaços, encolhido e carcomido, cada vez mais magro e mais acinzentado, da cor do concreto e do asfalto... Outrora um pai de família que perdeu o emprego e passou a beber demais. Aí perdeu a família e passou a beber mais ainda. Perdendo as qualidades duvidosas de um bêbado, passou a ser um mendigo, e por fim nem mais sequer um mendigo, uma pedra britada largada no canto da sarjeta, sem direito a sequer respirar ou pisar o chão da terra. Se pudesse se jogaria fora do globo terreno e flutuaria no sistema solar, feito um minúsculo meteorito rumo ao sol, a desintegrar-se no nada existencial.

Não me levem a mal, é apenas o som de meu sistema nervoso em circulação.

SAvok OnAitsirk, 06.7.12.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 23/04/2013
Reeditado em 23/04/2013
Código do texto: T4255179
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