Estrela da noite

Estrela da noite.

Este era o nome da estreita e curta rua onde, naquele pedaço de periferia da zona sul paulista, Marco Antonio Guerra de Lima aguardava, como combinado, seus colegas para um serviço de madrugada.

Involuntariamente, Marcão, como era conhecido pelos mais próximos ou Patola, título recebido em virtude da aparente e apreciada robustez de seus braços, vulgo temido pelos demais, volta seus olhos em direção ao céu.

“Onde estariam as estrelas da noite?”, é a pergunta que faz a si mesmo. “Será que elas, envergonhadas e constrangidas, escondiam-se para não presenciarem as coisas ruins que ali, naquela região, a escuridão trazia?”

Os olhos de Marcão gradativamente acostumados, há dezenove anos, já não necessitavam de refúgio para enxergar a violência. Eram plenamente protegidos pela máscara da indiferença. Não se lembrava de ter visto, como lhe haviam dito, estrelas brilhantes. Somente pálidas manchas amareladas no quadro negro superior. Nada além disto. Poderia seu filho ver as estrelas?

Sim, um filho. A criança, a nascer dentro de alguns meses, não conhecia ainda seu pai, nem sabia de nada acerca de fatos e acontecimentos daquele lugar; estava protegida ainda pelo ventre da mãe, Nanda, sempre a cuidar da modestíssima casa, um barraco num quintal dividido com mais quatro habitações,. “Se Deus permitisse, jamais viria a saber”.

Marcão queria juntar algum dinheiro e, com sua mulher e filho, ir embora dali. Para sempre. Cansara-se daquela vida de correria, tumulto e violência. Quantas vezes as estrelas não se esconderam para não ver Marcão, digo, Patola -- porque Marcão era correto e só fazia o bem -- a tirar a vida de outras pessoas?

Por que Patola era tão friamente insensível? Por que não se importava com a vida? Por que não se importava com ninguém? Com ninguém, não. Preocupava-se com seu filho. Para ele queria vida, embora não soubesse bem o que era ter uma.

Imagine só. Aquela louca da Magnólia, moradora da redondeza, queria, quando soube, que a Nanda tirasse o bebê. Nem pensar. Se Magnólia continuasse com esse papo, Patola tirava era ela. “Matar uma criança inocente? Que não chegou a viver? Que absurdo! Coisa da cheiradora da Magnólia.”

Patola já tinha matado, mas nunca ninguém indefeso. Aquilo era acerto de contas; era ele ou o cara. Era gente que já tinha vivido e errado, como ele. Não uma criança, uma nova vida, que precisa ter uma chance, precisa ter uma esperança, precisa ver, pelo menos uma vez, o brilho das estrelas.

Patola tinha errado. Mas Marcão mudaria isto. Não deixaria seu filho sofrer, não iria deixá-lo viver na miséria e na pobreza. Por que aquele fundo da zona sul, esquecido até das estrelas, tinha que ser tão miserável? Por que tanta desigualdade? Por que tanta indiferença? O que impede as pessoas de se amarem e se respeitarem?

Respeito e amor. Eis a diferença entre Patola e Marcão. O primeiro desconhecia o amor, não estava no ódio, contudo lhe era impossível presenciar, sentir, perceber o amor. Sua alma (que alma?), seu interior era escuro, frio, amargo; sim, havia um gosto ácido que, de dentro, lhe vinha à boca e aos olhos, retirando de tudo a luz, como o imperceptível manto que roubava o brilho da noite.

O mesmo não se passava com Marcão. Ele tinha uma mulher e logo seria pai. Amava sua família, faria qualquer coisa por ela, qualquer sacrifício, empreenderia qualquer luta, esquecer-se-ia. Chegaria até ao ato máximo de matar Patola.

Para o amor florescer, Patola deveria morrer. O egoísmo, a prepotência, a soberba, o desinteresse, a revolta, o desamor deveriam desaparecer. Será que ele conseguiria explicar isto a seus pares? Como ele poderia dizer que o caminho está no amor e em seus profícuos efeitos como o afeto, o respeito, o carinho, a preocupação, a participação, o compartilhamento?

Nanda e seu filho, para ele, constituíram-se da bússola a direcioná-lo ao correto cardeal. Protegê-los-ia com a própria vida, porque ambos eram a sua vida. Claro, eles eram sua vida, sua existência, seu ser. Não eram seus como propriedade, como objeto, como algo somente a observar, a possuir, como um objeto. Eram seus porque faziam parte de seu ser, pertenciam a seu “eu”.

Marcão, Nanda e a criança. Uma família, um só ser, um só existir. O individual dando lugar ao total. E a finalidade seria o bem-estar de seu filho, porque, se isto ocorresse, Marcão estaria da mesma maneira bem, logo seria feliz, estaria se realizando, se formando, se completando, resultando.

E se a sociedade se visse como uma enorme família onde cada um fosse um filho, cujo bem-estar seria o interesse a ser alcançado? Poderia imperar a solidariedade como única regra, tendo o amor por princípio.

Novamente Marcão volta sua cabeça para o céu. Pequenos pontos amarelos começam a explodir com intensidade. As estrelas estão brilhando, Marcão ouve sons distantes, batidas, como tambores; mais brilho, clarões que não vêm do alto, sons que não são o rufar de tambores. Disparos flamejantes, estampidos metálicos e secos. Seis ao todo, na direção de Marcão.

Seu corpo começa a enfraquecer. O amarelo das estrelas contrasta com o vermelho líquido que tinge suas roupas. Esvaem-se suas forças. A vida inicia a rota inexorável de fuga.

Ao cair, ele percebe que as estrelas brilham ainda mais intensamente e iluminam a trilha celeste que seu filho corta ao correr.

João Ibaixe Jr
Enviado por João Ibaixe Jr em 25/03/2007
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