Subúrbios

Acordo. Como todas as pessoas de que tenho conhecimento, e mesmo as que não, abro os olhos. A claridade, benéfica pra alguns, não para mim ou para os vampiros, por exemplo, incendeia o quarto e meu rosto. Cortinas. Urgente. Daqui, da cama, a primeira imagem matutina é sempre ele, o monstro de mofo, bolor e fungos, que me fita, me observa, me julga, como que dizendo: As coisas mudaram, meu velho. Mudaram mesmo, e não foram pra melhor. Tô de saco cheio desse pessimismo iminente sempre a espreitar, me sinto assim como que na obrigação de valorizar o perdedor, o que na verdade revela meu lado mais escroto que é o de querer vencer, seja lá o que seja. Mas eu tô sempre de saco cheio. E perder é realmente uma merda. Não dá pra insistir no discurso – aquele de até pouco tempo atrás – de que é assim mesmo, e o certo é o certo que eu faço, e errado é quem me dá razão.

Não dá. Não tá dando mais. Cada dia é menos um, infelizmente. E o monstro é só infiltração mesmo, culpa do meu senhorio, Sr. Ramiro, que desempenha bem a função de construir uma imagem de bom velhinho, porém não age como tal e conserta ou manda consertar, o rombo no telhado. Ele e seus cabelos brancos desgrenhados, seu odor de bacalhau, seu hálito de vinho do Porto; ele e seu coração “luso-brasileiro”, seu gosto por mulatas, sua conversa chata de gente carente e sua esperteza desconfiada de quem esconde dinheiro no colchão por não confiar em banco ou em qualquer ser vivo. “João sabe esse coqueiro dos fundos? Cuidado, ele é traiçoeiro”. Eu enxergo além, e o que vejo é desagradável, quase sempre. Dessa vez só vi cocos verdes.

Perdi minha fé em Ramiro, e nos velhinhos, sem nenhum vínculo propriamente dito entre os assuntos, a não ser a faixa etária, assumo, por sua atuação vil na classe – de idosos e tal -, na vez em que ele supondo que, como todos os outros domingos, eu estaria comendo na casa de minha família (mãe, tias, madrinha ou quem estivesse disponível), se deu à liberdade, por ser o dono da casa, creio, mesmo esta estando alugada e devidamente paga, de focinhar meu quintal procurando uma aventurazinha no seu cotidiano de missas, viuvez e affairs com funcionárias da Casa & Vídeo. Deixa estar.

Não à toa sua mulher definhou até morrer. Câncer. Nos intestinos. D. Manuela era uma velha muito branca, quase sem dentes, sem dentaduras. Tinhas as veias e os olhos azuis. Não eram bonitos, mas cansados, opacos, uma espécie de cartão da alma, que revelava para além da carapaça carcomida uma concreta inutilidade e falta de qualquer noção de humanidade. Nada a ver com janela da alma.

Aquelas olheiras profundas, a portuguesice, a casa antiga e tradicional com portais de madeira pintados de verde, o lenço na cabeça, os azulejos pintados à mão, a avareza, as infiltrações no telhado, essa soma de elementos preciosos e necessários aos meus queridos descendentes de colonizadores, me fizeram criar um ódio profundo por Portugal. Clima de fado os meus bagos! Pessoas imbecis meus senhorios.

Coincidência: Meu signo é câncer, primeira associação, notícia, feliz no meu horóscopo.

A casa ao menos é espaçosa, arejada, um casarão estilo colonial. São três quartos, sendo duas suítes, distribuídos em dois andares, e uma varanda enorme no pavimento superior, um exagero. À noite, na varanda, fumo dois ou três cigarros, pois venho tentando parar, e observo as luzes dos comércios do subúrbio, que fluorescem e se mesclam a outros tons incandescentes domésticos, causando enorme variação no quadro geral de iluminação pública. À maneira de um show de águas dançantes, sem águas. A não ser das chuvas, que resultam geralmente em poças e dores de cabeça, mas essa é outra história. É bonito de ver.

Dependendo da potência, da quantidade, do tipo de lâmpada utilizada em cada ponto da cidade, as nuances e tonalidades que flutuam em direção e de encontro ao luar, são de um contraste maravilhoso. Parece-me que elas liberam um tipo de névoa, fina, como que pulverizada, refletindo a poluição, os outdoors, as cores dos prédios, das casas, em gotículas mil, como lentes, como se todos os bairros, a cidade em si, fosse parte de uma paleta infinita a pintar uma nova tela de hora em hora, dia após dia. Os matizes urbanos. Já pensei em filmar essa variação. Bastaria deixar a câmera ligada desde o cair da noite até o amanhecer, depois editar e sincronizar as melhores passagens, as mais evidentes e belas. Quem sabe aplicar um efeito, sei lá, algo que sofisticasse e desse um tom artístico à obra. Meio pretensioso. Só que entrou pra pasta de projetos inacabados ou o famoso limbo criativo.

Segundo os biólogos, essa proliferação e variedade de luminárias e suas diferentes luminescências, como a dos grandes edifícios que dormem completamente acesos, desorientam as mariposas, causando um sério desequilíbrio em sua população, uma vez que estas se vêem sem a capacidade de retornar ao seu ponto de procriação. O caso típico de desarmonia terrena. Beleza para uns, morte para outros. Fazer o quê.

Rita me ligou esta noite. Primeiro sinal de vida desde que me deixou e se escondeu atrás de um bilhetinho com erros de escrita. “Perdoe os erros de português, é que estou muito nervosa (...) e se nossa história não continuou, foi você o culpado...” E segue daí. Não é necessário transcrever os deslizes.

Rita, Rita. As palavras nunca foram seu forte, sejam elas escritas ou faladas, mas tudo bem, o amor – ou sexo muito bom – nos faz superar tudo. E foi o que fizemos. Até onde cada um pôde suportar.

Conheci Rita em uma de minhas peregrinações pelos sebos do centro. Ela trabalhava em um deles. Em um primeiro momento não despertou minha atenção mais do que qualquer outra bunda passante. Engraçado pensar que, seria o início de três anos de um relacionamento ímpar, conturbado e passional, chegando quase às vias da loucura, muitíssimas das vezes. Aliás, esta, eu descobriria mais tarde, era, é, um dos traços mais marcantes da personalidade de Rita. Penso ser devido ao modo que teve de pegar a vida pelos chifres ainda muito jovem, o que a tornou uma idosa aos vinte e cinco anos. Uma senhora de modos conservadores, mas de uma vitalidade incomparável – a juventude falando mais alto, com toda certeza. Sensível e biruta, assim eu a vejo. E linda. É inegável o tesão que sinto por ela até hoje. Até esta ligação me excitou. O problema é o que vem depois, ainda mais se tratando de quem é, uma das mais desequilibradas mulheres que convivi.

A toda ação segue-se uma reação, que pode ou não, desdobrar-se em uma cadeia, uma rede de acontecimentos em que o lado mais fraco, como em qualquer cadeia, tomando como modelo a alimentar ou a própria casa de detenção, sai de alguma forma ferido. É o que menos queremos, eu e ela, há de se convir. Rita é jovem. E bela, me repetindo, fato que acontece continuamente, inclusive nos desacertos. Um quarto de século. Estatura mediana? Não. Baixinha mesmo. Uma verdadeira “mini-gostosa”. Cabelos longos e olhos castanhos. Cabelos negros outrora, hoje, avermelhados ou acaju, pra mim: ferrugem. A aparência infantil não formando um bastião contra as investidas – minhas e de outros -, mas salientando através da falsa ingenuidade, inocência astuciosa, uma frieza impressionante, assim como os padrões de pele das cobras, a avisar o perigo. De boba não tem nada, os desavisados logo percebem. Nossa sintonia foi, no nosso modo estranho de ser e ver a vida, instantânea. Eu ignorando ou fingindo o fazer, de ouvidos moucos, sua falta de raciocínio rápido ou a incompreensão de minhas piadas, e reparando sempre no decote de sua bata, batinha, como disse a mesma: “Ai! Respingou na minha batinha!” Porra, é claro. Não sou bom nessa técnica de segurar orgasmo, não me empenho é verdade, deixa fluir e vamos lá, o rio deve correr para o mar, a chuva desce a montanha e o dólar sobe e a gente goza. É disso que se trata. Sexo e dinheiro: Os pilares da modernidade, humanidade, tanto faz.

O motivo da ligação era um possível encontro, desses que terminam em foda com cara de reprise de tv, em que eu acabo, apesar das más intenções e memórias, fudido. Fisicamente, emocionalmente e economicamente. Ao final ela pede para retornar, eu vacilo, melhor não - talvez. Complicado. Além do fato dela estar nessa viagem mística e espiritual, regada a Daime com bolachas Maria, excesso de anfetaminas, chocooky e meditação, bulimia e livros tipo: “O caminho do bem”. Garanhão tântrico transcendental comedor de arroz integral. Não faz muito meu gênero. O que carregaria a conversa de amenidades a conversões, biografia do Dalai Lama a: “Lembra como nós éramos felizes?” Dessas armadilhas, venho escolado, bom malandro que sou, após anos de serviços prestados – e sofridos - às mais impossíveis feminices. Neste caso, em especial, atenção redobrada, já que se mostrou uma psicopata em potencial. Sempre a desconfiar, investigar, um faro apurado para comprovar, e imaginação fértil para inventar, suposições sobre minhas relações extraconjugais, apesar de termos sido “o casal moderninho”, relacionamento adulto e maduro e isso tudo que dá errado e é uma puta desculpa pra cada um comer quem quiser. Acho que minha paciência vem expirando a validade há anos, ou saco transbordado mesmo.

Tenho que comprar cigarros. Tenho que parar de fumar também. Segunda-feira, sem falta.

Saio do quarto, desço as escadas e ando até a rua. Na calçada o dejeto de algum vira-lata jaz fedendo e rodeado de moscas. Um poemeto bizarro irrompe de minha consciência, meu inconsciente: “Animal efêmero, sou eu homem-cão/ liberdade em ebulição/ cheiro traseiros e me esgueiro faceiro dos...” Besteira pura. Na esquina, os muros da linha férrea surgem como muralhas, estendendo-se a perder de vista, protegendo e dividindo as ruas. Do lado de dentro, sua vegetação de ervas daninhas e capim alto ladeia os trilhos, buscando o céu, uma dádiva e fonte de brincadeiras para a molecada. Para os animais, habitat. Pique-esconde, pique-tá, bandeirinha, amarelinha e pelada. Pipa, bola de gude, sacolé. Varizes pendendo de flácidas pernas dispostas em cadeiras de praia fora de contexto, diante de portões desgastados, enferrujados. Aposentados sentados nos bancos, como a estátua de Carlos Drummond em Copacabana, corações flechados e “Mamãe te amo”, exibidos em tatuagens esverdeadas - nessa idade não se liga pra nada, dizem. Revoadas de pardais e de biquinhos sob a luz do sol. Gente comum, desoladoramente comum. Este é meu cenário, meu celeiro, meu bairro.

Vou caminhando e cumprimentando, esforçando-me para ser simpático. Eles, os vizinhos, me acham estranho, mas criei um respeito mútuo através de favores trocados. O tempo arrasta-se modorrento aqui neste lugar. Acostumei já. O calor do asfalto e das pessoas faz toda a diferença. Mesmo que, em diversas situações, este excesso de zelo pelo próximo seja razão para bisbilhoteiros, aos montes.

Desisti de comprar os cigarros, afinal. Queria era tomar um ar, me espreguiçar. Em casa, o teclado telefônico espera por um, uns toques, que dêem a seqüência numérica mágica da felicidade ou esplendor orgástico e vice-versa. Penso no cheiro de Rita, nos cabelos e na falta de educação premeditada para me fazer raiva, sabendo dos meus ridículos valores. Reflexões estas, que refletem minha carência e falta de mulher, sexo... Quando como, de minha visita a um sex shop e, entre consolos, vibradores e cremes de menta, fui o único escolhido para receber um desconto em uma agência de “acompanhantes” - tradução livre: putas.

- Aqui senhor, descontos de até 30%, basta apresentar este cupom na portaria. – falou estendendo o braço, com um papel rosa na mão, uma estonteante morena.

- Obrigado. Mas, me diga uma coisa... Por que você só deu o cupom pra mim?

- Aaahhh... Ri, ri, ri, ri, ri...

Aquele risinho sarcástico, aliado a minhas fraquezas emocionais, acabou com meu dia. Da mesma forma que meu receio de reencontrar Rita. Os relacionamentos, a meu ver, são como bulas de remédios. As letras são miúdas, a linguagem é excessivamente técnica e ninguém lê até o final. Daí o número de paixões enfermas e automedicações equivocadas.

Lá longe, atrás dos morros e favelas, o sol manda o último aviso, dizendo que vai se pôr. Lá embaixo, Sr. Ramiro chafurda na lama do jardim, atrás de mudas de antúrios para sua filha. O telhado nem de longe é uma de suas preocupações. Eu folheio nosso álbum Rita, aquele da viagem para a Bahia, lembra? Os passeios de bugre, os negões garçons em Porto Seguro, o acarajé quente ou frio.

O telefone no canto da sala...

Você toda queimada, ardida, pimentinha que é. Nossos porres de caipirinha, nossas brigas só pra fazer as pazes fazendo amor. Amor? É, era amor. Era.

O telefone continua lá, no canto, no gancho...

Os centros de candomblé e seus pais de santo veneráveis, as ruas, as ladeiras, tudo muito bonito. Mas falta algo. Sempre faltou, acho.

O telefone, por mim, pode ser cortado.

Através da janela a lua surge, com ela meu espetáculo particular. Melancolia e abstinência, use a imaginação. A brisa fresca, rara, balança as folhas das árvores, as luzes, o álbum, minha indecisão. Uns veriam poesia Rita; eu, daqui, só, vejo cocos verdes. Só cocos verdes. Questão de ver.

Douglas Evangelista
Enviado por Douglas Evangelista em 16/08/2005
Código do texto: T43112