MÍRAME

As calçadas de Buenos Aires carregavam a tarde nas costas doloridas, pisoteadas por calçados e poesia. Em meio à multidão apressada, em busca da hora perdida, detive-me diante de tal cena, em primazia. Fui ainda esbofeteado por dois ou três ombros atrasados, até que o cenário me absorvesse e a multidão se acostumasse com meu vulto concreto, como um poste ou uma lixeira vazia. Pude então, sem mais interrupções, apenas observar aquela arte, meio realidade, meio fantasia.

Do lado canhoto, o olhar sujo, triste e poente, do rosto selvagem, da boca sem dente. A roupa suja, um bolso sem dinheiro e paladar pouco exigente, jazia sentado na porta de um cinema cerrado, sem censura, dormitório não permanente. Sentado assim permanecia, sem esperanças, socialmente doente. Aquela multidão alheia a ele também já o absorvera, como uma lixeira transbordando ou uma notícia indecente, e o representante da classe indecorosa aceitava, sem muitas opções, que aqueles olhares o ignorassem, assim, completamente.

Na mesma calçada e um pouco a frente, bem próximo e não menos (nem mais importante), aquele senhor um pouco cansado. De carteira cheia, boina limpa e dentes de ouro, um velho assalariado. Permitia-se sem conforto de estofado, pelo aconchego do momento solitário, o concreto gelado. Resignava-se da tarde sem novidades, sem ontem ou amanhã, de um final de sábado. Foi quando então aquele olhar, energia pulsante, sem mistério nem mesmo explicações, no ar rarefeito de uma tarde mais ou menos fria, foi, assim, traçado.

Captei o olhar irreal, desnudo, de ternura genuína, se desenhando do primo rico ao primos pobre, sem cor de pele ou mais valia. Olhos fixos, desmembrando a história antiga e as leis da economia, desnutrindo os preconceitos e ignorando a maior quantia. Que valor, que valentia! O recorte da boca, quase formando um sorriso, buscava um reflexo naqueles olhos, de uma amizade verdadeira, e pedia. Transparecia no calor intenso dos olhos a vontade do abraço, da conversa interminável, ou ao menos da silenciosa companhia. De extrema ansiedade, a perna tremia. Procurava pela correspondência do olhar contente, uma felicidade e uma paixão inexplicável por aquele ente comum, apenas pelo fato de ser comum, e assim nada mais queria.

Mas aquele olhar triste e distante, já tão alheio aos olhos da multidão, que mirava fixamente ao ponto vago do outro lado da rua, nada lhe dizia. Por pura inocência, não sabia corresponder, pois o olhar do mundo, a quem já implorara companhia, jamais correspondia.

Ali permaneceram, não sei por quanto tempo, e nem quis saber, acreditando que aquela cena fora montada com propósitos artísticos, como as comédias ou os tangos ao ar livre, esperando por minha contribuição. Tive medo de tirar moedas do bolso, envergonhado-me de tamanha ignorância e inanição, e como aluno de um mundo estranho, sozinho em uma tarde porteña, aprendi, pasmo, tal lição.

O senhor de maior renda, tão perdido nas contas das hipotecas de seus imóveis, nem ao menos notou o mendigo ali recostado. Mas seu cão ligeiro, de sobrenome respeitável, bem alimentado, rechonchudo e tosado, desejava a todo custo uma amizade utópica com aquele cão sem dono e sem nome (apenas apelidado), com fome de ontem, e as costelas à mostra em seu corpo castigado. Que aventuras havia vivido descoleirado? Que mistérios havia desvendado? Que liberdade, que soldado!

O cão notou o cão, mas o homem não notou o homem, até que daria um belo ditado. Mas é a lembrança de um mundo enfermo, onde aquele que possui olhos e não vê, é quem deveria ser chamado de coitado.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 02/06/2013
Reeditado em 03/06/2013
Código do texto: T4322069
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