NECESSIDADE VITAL

A epifania da existência pode ser a brisa que acaricia, como pode ser também o tufão que devasta. O planeta Terra é um vale de lágrimas, algumas de alegria, outras de tristeza, dependendo da qualidade da energia que o espírito irradia. Uma semente doentia não produz uma árvore sadia, tampouco uma criança corrompida gera um adulto que adicione valor às instituições sociais. Uma sociedade livre, justa e solidária surge da liberdade, da justiça e da solidariedade aprendidas na infância, no seio da família, na sala de aula. A vida representa o amor compartilhado no beijo eterno, o mundo é a partilha do prazer escasso. A vida acolhe e cuida, o mundo tolhe e manipula. A vida é o verso da natureza, o mundo é o seu anverso.

A realidade deve ser analisada com os olhos da razão, com os pés no chão, mas precisa também ser sentida pelo coração, numa atitude de aceitação, que alimenta a esperança de um mundo melhor para a posteridade. Pode ser tudo, como pode também ser nada. É tudo quando está plena de realização, é nada quando está vazia de emoção. A vida é a realização da emoção sonhada, pretendida. Existe arte no universo multifário da realidade: no barro que o oleiro transformou em vaso, porque o vaso é belo, no diamante bruto que o lapidário transformou em brilhante, porque o brilhante é belo. O trabalho artístico consiste em extrair da realidade intrínseca a beleza extrínseca, que encanta o espírito humano.

As artes expressam a concretude e a abstração, que penetram pelos poros da alma e atingem o âmago do espectador, o seu pomar interior, onde o artista cultiva e colhe o fruto da sua inspiração. A composição artística é uma realidade interior, porque é a harmonia traduzida em sentimento, porque é sentida. Em tudo o que compõe, o artista deve atentar para o amor, porque sem amor a sua arte nada valeria. O amor é o principal componente da criatividade, posto que Deus, o criador do tempo, do espaço e da vida, é puro, infinito e incondicional amor. O amor encurta a distância entre os corações afastados e soa em uníssono com o coral das criaturas angelicais.

As artes tateiam, com a luva da sensibilidade, os mistérios da vida, que as tornam fascinantes, sintonizadas com as mudanças de um mundo em constante transformação. Vislumbram a morte que existe na vida presente e a vida eterna que nasce da morte. Decantam a leveza da pluma e o peso da culpa, a degradação, a natureza, a degradação da natureza. Às vezes, as artes mostram os olhos arregalados do espanto. Às vezes, exprimem a tranquilidade do acalanto. Observam com profundidade a diversidade filosofal, mas seguem na contramão da intolerância, porque a paz social carece da convivência indulgente das diferentes crenças e opiniões. Possuem todas as cores do espectro, mas se apresentam também sem nenhuma delas. Revelam o verde da esperança, o azul da serenidade e o vermelho da paixão, mas revelam também toda a solidão incolor do mundo. Procuram, na dualidade da existência, a unicidade da beleza, aglutinando bons e maus momentos, a fim de idear uma vida de excelência, com a firme convicção de que o mal não existe, sua presença é somente a ausência do bem, assim como a escuridão também não existe, é apenas a falta da luz. As artes completam a vida.

Amadeu era um músico aposentado. No município em que residia, havia um variado ecossistema em seu entorno, com cachoeiras e uma extensa área de mata nativa, além de se destacar também pela atividade cultural, incluindo teatro, artesanato e música. Era primavera, e nessa estação ocorre a reprodução das cigarras, que trazem à vida a graça do seu canto, acompanhadas de uma grande diversidade de flores que colorem as paisagens. Ao som de uma sinfonia de cigarras, Amadeu dedicou aquela tarde de primavera ao vício solitário da meditação, ao mesmo tempo em que regava as plantas do jardim. Terminado o serviço, entrou em casa e pegou um livro de filosofia na estante. Leu o capítulo que discorria sobre a semelhança que existe entre os filósofos e os artistas no que tange à tentativa de promover a valorização dos homens e do mundo, em oposição à banalização da vida. As linhas do texto que abordavam a harmonia despertavam-lhe maior interesse, já que era músico. Depois disso, fechou o livro, fechou os olhos, fechou-se em si mesmo e quedou taciturno.

Ao cair da noite, enquanto assistia à televisão, veio-lhe à consciência a imagem do seu violino, que há muito tempo deixara guardado no armário da sala. Era um violino clássico profissional, fabricado artesanalmente e com acabamento envelhecido acetinado. A recordação entristeceu-o. Amadeu havia trocado a música pela filosofia, cujo estudo consumia as horas que, no passado, dedicava às partituras. Não obstante a prevalência do individualismo no mundo, quem percorre sozinho a sua jornada, ao atingir o seu objetivo, encontra sempre a face pálida da solidão. Apesar do gáudio da chegada, em breve estará com a alma desfalecida pelo tédio, soterrada nas profundezas do seu mundo individualista. Não podia perseverar na filosofia, quando nas suas veias vibravam notas musicais. Aprendera muito nos livros de filosofia, mas a sua necessidade vital era a música. No momento em que se conscientizou da sua triste realidade, todo o castelo no qual havia se isolado desmoronou como se fosse de areia. Caminhou pelos cômodos da casa cabisbaixo e meditativo. Foi até o armário da sala, abriu a porta e pegou o violino. Sorriu para ele como se tivesse reencontrado um velho amigo. “O coração precisa de outros corações para compartilhar os sentimentos, porque quaisquer atitudes, inclusive as menos intencionais, quando tomadas com o coração, beneficiam os corações alheios. O artista pode viver solitário dentro de uma concha, mas o talento precisa de uma expressão exterior para cumprir a sua missão!”, disse a si mesmo na tentativa de convencer-se de que não poderia viver nem mais um dia sem a música.

No dia seguinte, Amadeu foi ter com o seu amigo Cassiano, um filósofo que residia a um quarteirão da sua casa, e com quem mantinha uma amizade de longa data, que remontava à época universitária. “Tenho tido muitas dificuldades nesses últimos anos, desde que abandonei a música!”, confessou ao seu amigo. Este levantou-se do sofá e foi até ele para lhe dar um abraço. “Toda jornada só termina quando a pessoa recebe o retorno integral da carga de fé investida na forma de dividendos que traduzem a felicidade de dividir com as pessoas que ama aquilo que ama na vida!”, afirmou-lhe Cassiano, com a sabedoria acumulada ao longo da sua carreira profissional. Isolado no seu abismo existencial, Amadeu estava alheio à vida social, muito embora esta não o tivesse alheado. A causa não era outra senão a contradição entre a sua natureza e o mundo, entre o preço que pagava à vida e o que dela recebia em contrapartida. Era convidado para participar de concertos, mas hesitava em aceitar os convites. Com o falecimento da sua esposa, já com tempo de serviço para aposentar, resolveu largar a música. Margarida, com quem manteve um matrimônio de vinte anos, foi a sua grande incentivadora no meio musical. Parece que a sua morte, repentina e trágica, matou nele o amor pela música. Com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, o seu amigo refletiu por um instante, depois insistiu na sua posição. “Eu não sei o que diz a nossa vã filosofia, mas creio que Deus concede a cada pessoa uma semente para ser plantada no seu pomar celestial. Faça a sua parte, cumpra a sua missão!”, disse-lhe Cassiano, de forma conclusiva. Amadeu vestiu o casaco, despediu-se do seu amigo e foi embora pensativo.

Na tarde do dia seguinte, o violinista passeava na praça do centro da cidade. Enquanto comprava um jornal, ouviu a campainha do telefone celular. Pagou o preço ao jornaleiro e atendeu a chamada telefônica. Era Sara, uma violinista da orquestra sinfônica municipal, convidando-o para um concerto em homenagem ao compositor brasileiro Villa-Lobos no Teatro Central, que ficava do outro lado da praça, ao lado da Igreja Matriz. O espetáculo musical aconteceria no sábado da semana seguinte, e os ingressos já estavam esgotados. O teatro seria reaberto após permanecer dois meses fechado para a restauração das suas instalações. Naquele momento, Amadeu viu-se entre a escravidão e a liberdade. Era tudo ou nada. O desejo de fuga chegou a tocar a sua alma, mas esta já estava preparada para suportar as flechadas do desânimo. O violinista encerrou a conversa confirmando a sua participação, que marcaria o recomeço de uma carreira que fora interrompida por uma fatalidade da vida. Compareceu aos ensaios, treinou com afinco e participou do concerto. Amadeu passou a dedicar todo o seu tempo à ocupação que mais gostava na vida: a música.

Apaixonados pela música, os corações de Amadeu e Sara apaixonaram-se também um pelo outro. O namoro teve início depois do concerto, num restaurante onde foram jantar com os outros músicos. No coração de Amadeu, Sara e a música restabeleceram a paz de que necessitava. O amor tem o poder de harmonizar a mente, de limpar as manchas secretas da alma e de expurgar do espírito os pensamentos de derrotismo. A harmonia produzida pelo amor traduz a felicidade perfeita, porque o amor é perfeito. A sabedoria plena é um atributo divino, mas ao homem é permitido desejá-la, como o vaga-lume que, de tanto admirar o fulgor das estrelas, sonha em tornar-se uma delas para reluzir com mais intensidade.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 01/08/2013
Reeditado em 04/08/2017
Código do texto: T4415055
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