Perda (Escrito na sessão do Grupo Oficina Literária de Piracicaba - 10/04/2007)

- O silêncio quebrado jamais recupera-se. Portanto, não fale!

Foi assim, despudoradamente dita, a decretação do silêncio. À partir daquele momento, toda palavra, toda a manifestação, seria considerada um crime "lesa-pátria" mesmo sendo a pátria apenas duas pessoas, Patrícia e Gustavo, neta e avô, respectivamente.

Na altura dos seus doze anos, seria normal que tal decreto a expulsasse da sala mas, contraditoriamente, era impelida a permanecer, sentada em uma cadeira estofada, espaldar alto, forrada com tecido carmim.

À sua frente, de perfil, seu avô alinhava-se em posição quase marcial, compenetrado, óculos de grau grossos, fazendo a leitura de um volumoso jornal.

Cuidado para que o zíper da mochila fizesse o menor ruído possível, retirou de lá o caderno e estojo.

Pensou fosse melhor escrever à lápos e retirando-o do estojo, apontou-o com gestos leves e imperceptíveis ao leitor do jornal.

Sentou-se no tapete macio, colocou o caderno na mesa de centro e pôs-se a escrever quase que freneticamente, olhando de soslaio para o avô que de vez em quando soltava um longo suspiro de desaprovação na leitura de algumas notícias.

Após cada uma dessas observações sutis, dedicava-se à escritura, apagando eventualmente palavras ou frases inteiras, reescrevendo-as com o ardor da idade que tinha.

Uma página, duas, três, quatro. Sucede que, apesar disso, ainda era incompleta a expressãod a sua jovem angústia. Às quatro primeiras páginas, seguiram-se mais três e da releitura, outras duas. Nesse meio tempo, a leitura do jornal estava avançada.

Patrícia guardou o lápois e borracha nno estojo e com o caderno ainda aberto, aguardou na posição que se encontrava.

Finalmente, a leitura do jornal estava concluída. Pareceu-lhe ser aquele momento onde o silêncio, incorruptível, finalmente seria quebrado. O jornal, finalmente, foi colocado no aparador onde descansaria até ser descartado.

Virando-se para a menina, Gustavo pergunta:

- Você estava escrevendo, Patrícia?

As faces da menina adquiriram um indisfarçável rubror. Esperava que a leitura fosse tão cuidadosa que o seu escrever passaria sem ser percebido.

- Estava, vô.

O velho sentiu a hesitação na voz da menina mas ainda sim, seguiu com outra pergunta:

- Posso ler?

A menina passou, hesitante, o caderno ao avô, com as mãos trêmulas. Seguiu-se uma outra leitura, lenta, sendo que ao final foram inevitáveis as lágrimas nos olhos do avô.

- Não sabia que era assim! Desculpe! - disse emocionado, trazendo para si a garota e a envolvendo com um grande abraço.

As manhãs de domingo transformaram-se: prioritariamente a atenção do avô dirigia-se à neta, ao ouvir as suas perguntas e respondê-las, andarem no belo jardim frente à casa, compartilharem momentos únicos.

Depois de vários anos quando Gustavo era apenas uma lembrança, o caderno foi reaberto muitas vezes e lá, como testemunha de um momento, em folhas já amarelecidas, registrava-se no topo de uma página, o título transformador: "Como perdi meu avô para um jornal"

André Vieira
Enviado por André Vieira em 10/04/2007
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