LIVRE-PENSADOR

Eu não queria sensibilizar o leitor com estas palavras, mas elas são como o Sol que insiste em despontar no horizonte: "Um dia você aprende que o tempo não volta atrás. Portanto, plante você mesmo o seu jardim, e decore a sua alma, em vez de esperar que alguém faça isso para você. Aprende que você pode ir muito mais longe, depois de pensar que não é capaz. Aprende que tudo pode suportar, que realmente é forte, que a vida tem valor, e que você tem valor diante da vida. E aprende que o bem que você poderia conquistar seria muito maior se não fosse o seu medo de tentar”, escreveu o dramaturgo e poeta William Shakespeare. Chega um momento na vida em que temos de caminhar sozinhos, e sozinhos precisamos cultivar os nossos próprios jardins com as flores que melhor expressem os nossos sentimentos, para que tenhamos o mérito de vê-los floridos. Este momento é aquele no qual assumimos a responsabilidade de sermos o que quisermos na vida, inclusive felizes. Os sonhos são as nossas sementeiras. As realizações são as nossas colheitas. O que dá sentido à vida? O livre-pensador Miguel acreditava que a cultura social é um conjunto de pensamentos e sentimentos necessário à adaptação do homem à vida em sociedade, transmitida ao longo do tempo por meio da linguagem, e indispensável à expressão das vocações humanas. Esse é um lado da moeda. O outro é a essência de cada homem, que o torna único e insubstituível no Universo, de origem divina, e com destino eterno. Portanto, a formação individual do ser humano engloba as suas tendências ingênitas, acrescidas da cultura herdada do seu meio social. Não inteiramente satisfeito com a herança de crenças, tradições, valores e costumes que recebera do mundo, Miguel, desde a adolescência, decidiu construir o seu próprio mundo, um lugar onde pudesse elaborar e manter a sua paz de espírito. Ao contrário da sociedade industrial, não se deixava influenciar pelas técnicas de criação de falsas necessidades. O capitalismo pode usar de meios inescrupulosos para atingir seus fins. Do ponto de vista ambiental, sentia-se ameaçado pelo constante aumento da extração dos recursos naturais, porque se via como parte inseparável e dependente da Natureza. A satisfação das necessidades materiais não era suficiente para fazê-lo feliz. Miguel tinha uma necessidade enorme de crescimento interior, de transcendência. Os mistérios insondáveis atraíam a sua atenção mais do que os bens materiais. Desde a aurora da sua vida, via-se como um indivíduo não inteiramente integrado ao mundo exterior, era mais observador do que participante da vida social. Reivindicava de si mesmo e do seu Deus pessoal um mundo novo, no qual pudesse projetar o seu perfil espiritualista. Não mantinha uma relação alienada com a sociedade, mas procurava, de forma vigilante, preservar a sua mente do pensamento mesquinho de levar vantagem em tudo e apesar de todos, que é responsável pelo abismo socioeconômico que polarizou o mundo em ricos e pobres. Desconfiava do senso comum irrefletido, sem autocrítica. Muitas vezes, o consenso pode esconder ideias preconceituosas, trazendo no seu bojo uma falsa consciência da realidade social. Preferia analisar os fatos à luz da razão a aceitar argumentos desprovidos de fundamentação lógica.

Na correnteza ininterrupta do tempo, Miguel passou muitos anos levantando a bandeira do comunismo, acreditando que assim estaria contribuindo para a construção de um mundo melhor para as futuras gerações. Depois de muito militar nesse campo, compreendeu que não há ludíbrio que o tempo não desmascare com evidências irrefutáveis, e que a verdade, cedo ou tarde, aflora à consciência de quem não se limita a pensar unicamente sobre o que é divulgado pela mídia, mas procura, por iniciativa própria, inteirar-se sobre as necessidades e os interesses de toda a sociedade, e não apenas de grupos restritos e fechados, dotados de influência política. O meio social no qual o homem está inserido, e do qual não pode esquivar-se, dada a sua natureza gregária, é o ambiente propício ao desenvolvimento das potencialidades humanas trazidas do berço. Miguel considerava a arte de ler uma maneira aprazível de manter-se atualizado, consciente de que vivia num mundo em ebulição intelectual, mas costumava comentar com os amigos que a liberdade não está nos livros, mas nas mentes que os escrevem. O homem é livre para direcionar a sua curiosidade para a área do conhecimento com a qual tenha afinidade, mas precisa, por uma questão de sobrevivência, ficar atento às exigências do mercado de trabalho e, na medida do possível, tentar unir o útil ao agradável. O comunismo que defendera na sua agitada juventude estava sepultado no cemitério das falsas consciências. No entanto, não se sentia triste pelo fato de ter perdido uma parte significativa do seu tempo com essa utopia, porque estava convencido de que, na verdade, não sofrera uma perda, mas obtivera, com seu gradual crescimento intelectual e emocional, um ganho importante em termos de percepção crítico-reflexiva da sociedade politicamente organizada e com uma ordem econômica fundamentada na livre iniciativa. O ato de refletir com imparcialidade, sem levar em consideração aprioristicamente nenhum postulado ideológico, tornou-se uma atividade habitual. Os acontecimentos que se sucederam ao longo da sua vida contribuíram para formar na sua mente a convicção de que a liberdade não está fora do ser humano, mas dentro dele. Está nos instintos e nas emoções. Concluiu que o capitalismo, que julgava elitista em outras épocas, nasceu da natureza biológica e psicológica do ser humano, a qual, por ser imperfeita, posto que a perfeição é uma virtude do Criador, portanto inalcançável pela criatura, faz com que o capitalismo também seja imperfeito. Decerto o capitalismo vem se humanizando ao longo do tempo, mas a insuficiência desse processo lento de humanização é evidente nos abusos que ainda são cometidos mundo afora, tornando imperiosa a utilização do processo judicial como instrumento para garantir a moderação nas relações entre o empresariado e a classe trabalhadora. Apesar de todas as mazelas sociais decorrentes das imperfeições do capitalismo, Miguel não deixou de acreditar num futuro melhor, com uma distribuição mais justa da renda, mas passou a admitir que o desenvolvimento não pode ser alavancado, com eficiência na utilização dos recursos humanos e naturais, apenas por meio da iniciativa estatal, mas também pela livre iniciativa, que permite a expressão individual das aptidões e habilidades capazes de transformar o mundo numa habitação com mais segurança jurídica e crescimento sustentável, ambos conducentes a um nível mais elevado, e também mais democratizado, de bem-estar social. Os anos que se passaram trouxeram fatos que firmaram em Miguel a crença inabalável de que fora da liberdade não há evolução, mas somente estagnação.

Quando era estudante, durante o curso de Economia, Miguel filiou-se ao Partido Comunista. Entretanto, com o advento do golpe de 1964, refugiou-se no Chile para escapar da perseguição política, que era implacável naquele período. O capitalismo pode usar de meios violentos para atingir seus fins. Permaneceu na segurança do exílio até a redemocratização do país, quando retornou ao Brasil descrente em relação ao marxismo que, tempos depois, perdeu-se na floresta eterna da desilusão. Jogou no lixo o “Manifesto Comunista”, que era o seu livro de cabeceira, e dedicou-se a questões religiosas, convertendo-se ao Cristianismo. A lógica, quando corrompida por conceitos falaciosos, transforma-se numa árvore infrutífera, cuja única utilidade é enfeitar o jardim mental, visto que não produz as sementes da coerência necessária para gerar uma maneira de ver o mundo com os olhos do racionalismo, vedando os olhos do radicalismo, que impossibilita a abertura de novos horizontes na sociedade para a realização pessoal. Miguel adotou uma postura intelectual contrária aos sistemas preestabelecidos, optando, no lugar destes, pela busca incessante de um sentido para a vida que lhe permitisse colher a felicidade que os anos de militância política não plantaram no seu espírito. Assim, extirpou da mente os rejeitos ideológicos do socialismo utópico, preferindo dar asas à imaginação para criar a sua própria filosofia de vida. No seu diálogo interior, defendia o argumento de que o marxismo idealizou um ser humano às avessas quando impôs o controle estatal da atividade econômica. No silêncio imposto pelo totalitarismo, que não resiste a um questionamento racional, aos poucos foram soando as vozes libertárias, e destas as ações reacionárias, e destas, finalmente, o retorno inevitável do homem à integralidade da sua constituição psicológica, que nada tem a ver com a ideologia proposta pelos intelectuais que alardearam o “Manifesto Comunista” como a solução para o problema complexo da desigualdade social, na medida em que não representava a manifestação dos anseios populares, mas a ambição de um grupo interessado em centralizar o poder de decisão dentro das suas fronteiras, e até mesmo fora delas, por meio da invasão cultural com o intuito de obter hegemonia política, como pretendeu igualmente o movimento que implantou o nazismo. A ideologia política do "Führer und Reichskanzler" foi responsável pelo extermínio de aproximadamente seis milhões de judeus! Portanto, considerada a necessidade de liberdade como vital para o homem, pode-se inferir que o comunismo é uma ideologia política e socioeconômica liberticida, visto que não respeita o direito legítimo e intransferível que cada pessoa possui de tentar conquistar a felicidade da maneira que lhe aprouver, de acordo com as suas características intrínsecas e as regras de conduta vigentes na sociedade. Não obstante a sua natureza gregária, os seres humanos são diferentes, e é dessa diversidade de vocações dos indivíduos que a sociedade, mediante o exercício da livre iniciativa, consegue satisfazer as suas necessidades. A inteligência, associada à criatividade, é uma qualidade que todos podem e devem desenvolver em si mesmos, investindo na sua autocriação e em algo maior, que é a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, mas, para isso, é fundamental uma renovação constante das leis e dos costumes, de modo a acompanhar o aprimoramento das relações sociais para fazer face ao processo de expansão da economia globalizada.

A liberdade confere ao homem a possibilidade de converter os seus sonhos em experiências, de aceitar as mudanças, de amar e ser amado e, em última análise, de ser feliz, de acordo com o conceito que cada um tem da felicidade. Não existe felicidade do lado de fora quando inexiste liberdade do lado de dentro. As escolhas dão a medida da felicidade. A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. As atitudes podem atender às próprias expectativas, ou às expectativas alheias. No dualismo da vida, sempre existem duas opções de escolha: uma delas trará contentamento, a outra, desapontamento. O resultado depende do nível de sintonia da pessoa consigo própria. Não há possibilidade de olharmos e vermos a harmonia no universo de estímulos à nossa volta, se no nosso mundo interior impera a desarmonia, a desconexão com a nossa identidade original. Tudo o que é imposto gera desarmonia, porque a alma só encontra harmonia na liberdade. Além disso, a liberdade é imprescindível para o desenvolvimento integral da personalidade com vistas à conquista da individualidade, do direito natural de cada um de “estar no mundo à sua maneira”. Esse ser integral não pode existir sem a inclusão da sombra psicológica no ambiente da consciência. Dissociado da sua criatividade, o ser humano fica despersonalizado, não evolui, não atinge a perfeição, que é a felicidade. Essa natureza sombria é um legado de conflitos intrapsíquicos que remonta aos estágios primitivos da jornada evolutiva da Humanidade.

Uma vez que o indivíduo guarda no seu recôndito os atributos psicológicos que são rejeitados pelos padrões morais, e até por si próprio, tudo o que é definido, ou rotulado, como contrário à cultura social da sua época origina um “não eu” que vive escondido no seu âmago impenetrável, como um gênio do mal. O inconsciente é habitado por fantasmas mentais resultantes desse mecanismo de repressão. Sem a arrumação constante da sua casa mental, torna-se impossível ao indivíduo organizar a sua vida social. No entanto, mesmo ausente do nível consciente, a sombra psicológica continua a influenciar o comportamento. Essa interferência ocorre de várias maneiras, inclusive por meio da sabotagem das realizações positivas do ego, que consiste na tendência de repetir atitudes autodestrutivas.

O ser humano só tem acesso à sua natureza sombria, ao seu mar inconsciente de águas revoltas, quando decide mergulhar fundo em si mesmo a fim de conquistar, nesse mergulho introspectivo, crítico e reflexivo o seu autoconhecimento, retomando a posse de tudo aquilo que lhe foi reprimido. Com certeza, é um processo doloroso, pois traz os espinhos da verdade e leva as flores da ilusão, por isso deve ser orientado pela psicoterapia, mas a decisão de aceitar a sua natureza sombria é intransferível, só pode ser tomada pelo próprio indivíduo, cabendo ao psicoterapeuta apenas a sinalização do caminho a ser percorrido nessa procura de si mesmo.

Desde a infância, Miguel foi educado para renegar o seu próprio sistema de valores, e a adotar, como se fossem seus, os valores das pessoas que lhe eram significativas, passando a assumir, dessa forma, o caráter que queriam que ele tivesse, e não o caráter condizente com a sua personalidade. Como tudo nesse mundo, isso teve um preço: a infelicidade. Miguel adquiriu a tendência de anular os seus próprios processos comportamentais para ser rigidamente aquela outra pessoa que esperavam dele. Nesse processo de fechamento à sua própria experiência, as suas relações sociais deixaram de fluir naturalmente. Miguel tornou-se uma pessoa falsamente feliz. No mecanismo da autoilusão, a pessoa procura ser a sinonímia das pessoas que são influentes em alguma área da sua vida relacional, em detrimento da sua própria semântica existencial. Miguel aprendeu com a vida a ajustar o seu comportamento em função das circunstâncias sistêmicas, sem renegar, todavia, as características imanentes da sua essência.

Entorpecido pela ideologia marxista, Miguel criou na sua mente imatura uma imagem distorcida de si mesmo e do mundo. Alienado da sua matriz mental, saiu do mundo real e entrou no mundo ideal. Este mundo, por não condizer com os seus instintos, tornou-se um degredo existencial, onde conviveu por muito tempo com a sua sombra psicológica. O mundo, como pretende o capitalismo, deve representar um espaço de integração de diferentes maneiras de pensar e agir, decorrendo dessa multiplicidade de interesses menores uma unicidade de interesses maiores sob a égide da democracia, e não uma maioria subordinada aos interesses de uma minoria dominadora, sem representatividade popular, que se arvora no direito de ditar as normas disciplinadoras das relações dos cidadãos com as empresas e o Estado. Entretanto, para que a integração construtiva de diferentes vontades, muitas vezes conflitantes, seja possível, é imprescindível o concurso da tolerância, que é o apanágio da paz social. Se todos os homens são imperfeitos, sujeitos a falhas e excessos, cada um deve absolver a imperfeição alheia com a mesma dose de indulgência com que perdoa a sua própria dívida moral. O nível de intolerância de uma sociedade indica o tamanho do obstáculo que deve ser transposto para que alcance a paz social. Da mesma forma, o capitalismo caminha ao seu modo, com os seus erros e acertos, com as suas justiças e injustiças, mas caminha com liberdade, pagando o preço da sua imperfeição. Na construção de uma sociedade fraternal, duas virtudes são fundamentais: humildade e perseverança. Humildade para aceitarmos os nossos erros, e perseverança para nunca desistirmos de seguir sempre em frente, apesar da quantidade e da qualidade das pedras que surgirão ao longo do nosso caminho. “Um dia, sei que a verdade absoluta me será revelada, mas se eu não caminhar com humildade e perseverança neste mundo relativo, andarei sempre em círculo, cerceado pelas culpas que não perdoei, e levarei mais tempo para atingir o meu objetivo supremo, que é a vida eterna!”, afirmou isso a si mesmo. Em oração, Miguel pediu o auxílio de Deus, não para evitar as quedas, mas para se levantar e seguir a sua jornada com a cabeça erguida. Colhido por um sono repentino, deitou-se na cama, respirou fundo e adormeceu, aliviado pelo perdão incondicional que lhe fora concedido pela sua consciência. Se a alma humana só encontra plena satisfação no seio de Deus, então é a liberdade, com amor ao próximo, o que dá sentido à vida!

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 22/08/2013
Reeditado em 26/08/2013
Código do texto: T4446478
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