"Quando vier o amanhã"
Quando vier o amanhã
Era uma tarde atípica, num sábado de Inverno. As flores
ainda exalavam seus perfumes e mostravam-se resistente ao imenso
calor fora de época. As ruas estavam desertas, apenas alguns
meninos insistiam enfrentar a alta temperatura, brincando de bola e
soltando pipas.
Ouvia-se muito distante um som alto e abafado por gritos,
talvez lamentos de desespero ou de dor, eram confusos e vinham
ressoando uma tristeza latente. Ouviu este som por longas horas,
tentando examinar, através da sua aguçada percepção auditiva, mas
não conseguia identificar o início, somente chegavam aos seus
ouvidos uma sonora canção ébria de ritmos e
melancolia: “Tuntz...Tuntz...Tuntz”.
Atraído pelo ritmo, ora infantil ora sexual, enveredou sua
curiosidade e foi caminhando em direção ao som, caminhou por
sessenta minutos até chegar a um grande parque.
Era uma festa, “uma festa muito estranha”, pensou por
alguns instantes que seria algum aniversariante de seis anos
comemorando avidamente mais um ano de vida. Todos os convidados
chupavam pirulito e só desejavam doces e balas.
As pessoas estavam em pé, outras deitadas e muitas tantas
dançando ao som frenético daquele “tuntz..tuntz..tuntz”. Nas
bandejas, onde deveriam estar taças com saborosas bebidas e
apetitosos petiscos, vinham dispostos comprimidos e uma pasta
cremosa e cheirosa. Pensou em ser alguma medicação: “Acho que
tinha gente doente, pois tomavam comprimidos e cheiravam vick”,
pensou em voz alta.
Ignorou a “festa estranha com gente esquisita” e continuou
a andar.
Mais adiante, sorridentes a brincar, um monte de jovens (o
mais novo deveria ter mais de vinte anos), “eles pulavam muito,
brincavam de bola e malabares”. Pensou silenciosamente: “aqui a
infância é eterna”.
Encostou-se numa frondosa árvore, fechou os olhos e
tentou sentir o que as pessoas sentiam. A experiência trouxe aos seus
sentidos as recordações do passado: o saboroso perfume que
proporcionava a sua delicada pele uma maciez invejável, os pássaros
líquidos que se misturavam na água que o banhava, a mescla de
sabores que impregnavam seu quarto durante todas as tardes de
verão. “Ah! Que saudade daquilo tudo!”, imaginou com palavras.
Abriu seus olhos e visualizou novamente o passado, sentiu a
dor de um golpe no abdômen e sua perna enfraqueceu: “Eu fui
atingido, por distração”. Conclui o mestre. Não admitia distrações, era
um mestre nas artes marciais, mas foi golpeado.
Sentiu o sangue gélido a escorrer pelas pernas, e aspirou sem sentir,
um cheiro salobro a lavar o ferimento, ardendo e ao mesmo tempo
aliviando.
Voltou ao tempo presente, onde a realidade parecia bem
menos dolorida e mais divertida.
Aquele lugar, estranho e divertido, “o levava a lugares
desconhecidos dentro dele, acompanhava o ritmo do seu coração”, e
foi ali que descobriu a paixão pela vida que inexistia em sua atual vida.
Seu coração deu o último grito as 22h00 de uma noite
quente de outono, tinha 26 anos e começou a viver pouco antes de
conhecer o fantástico mundo periférico, amou cada instante desta
descoberta e por ela e com ela atingiu a plenitude inebriante da
eternidade.
Homenagem ao jovem Emerson (Japonês), falecido em 07/04/2007 vítima de hepatite fulminante.