De Olhos Fechados.

Ela hoje tem contato com seus recantos mais sombrios e sente o desconforto de quem pisa em seus próprios porões. Pela janela do apartamento, olha a noite, mas nada vê lá fora.Naquele momento sua vida mostra-se como é, sem os retoques que ela usa para disfarçar pequenas imperfeições em sua aparência.Naquela noite não há brilho.

Acende um cigarro. Voltou a fumar, mas só se permite desfrutar desse prazer quando se encontra só. Não fuma na frente do marido, nem dos filhos, pois a família condena seu pequeno vício.Ela também não come o que tem vontade, pois todos a sua volta fazem dieta e cobram dela o mesmo rigor à mesa.

Ela comporta-se como um modelo de mulher de sua geração. Malha religiosamente todos os dias e seu corpo responde a esse esforço.Tem uma carreira que não é lá essas coisas, mas lhe garante a condição de mulher que trabalha.

O marido garante o padrão de vida que desfrutam, afinal como poderia morar bem, ter carros do ano na garagem e viajar freqüentemente sem o dinheiro dele? Dinheiro, por sinal, que nem ela, nem ninguém sabe de onde vem com exatidão.

Ela está só nesta noite e após o banho demorado, usou os cremes que a dermatologista receitou.Naquela manhã, submeteu-se ao último recurso da ciência para manter a expressão jovem no rosto e apesar de ter estranhado o resultado, sabe que vai terminar acostumando com o novo contorno dos lábios. Essas novidades vêm com tal força, que logo as pessoas vão achar que todas as mulheres nascem com a boca de Angelina Jolie e os seios de Pamela Anderson.

Seu armário guarda peças que traduzem as últimas tendências da moda.Tudo dividido em um closet com lugar certo para sapatos, bolsas, lingerie, jeans, vestidos, blusas e terninhos.

Seu interior é que se encontra bagunçado. Ela não sabe mais o que sente ou o que deseja.É uma mulher sensível, porém se deixou seduzir pelas tentações do glamour.

Em alguns momentos, como agora, sua alma dói e ela nem sabe onde.Ás vezes o que há é um vazio tão ou mais incômodo que a dor.

Em ocasiões como esta, a solidão faz-se presente com muita força.

Ela sente falta de si mesma.Sente saudade da mulher idealizadora, sensível e romântica. Ressente-se das emoções que deixou para trás, das alegrias mais sinceras, dos momentos de afeto e prazer verdadeiros.

Muitos projetos foram executados, todavia os sonhos mais profundos perderam-se no quotidiano. O homem apaixonado com quem se casou, transformou-se em alguém que tudo faz para satisfazer sua vaidade, inclusive oferecendo-lhe presentes para que ela os ostente em reuniões sociais. Por vezes ela se sente como mais um símbolo que sinaliza a sua posição social e sabe que contribuiu para isso.

Por um breve instante lembra-se de um momento de amor e chega a sentir a magia vivida há tanto tempo. De repente não há tristeza, o sentimento de desprazer se esvai com a recordação, seu rosto é iluminado por um sorriso. No peito, a sensação é de enlevo.

Mas o efeito daquela lembrança é interrompido pela realidade. Ela ouve o barulho da chave na porta, indicando que seu marido chegou em casa, de onde saiu pela manhã.Ele volta cada mais tarde e o que antes a fazia sofrer, passou a ser um alívio.

Imediatamente ela corre para a cama e finge dormir. Fecha os olhos para não ver a expressão de prazer e culpa que ele traz no rosto e que tanto a magoou em outras ocasiões. Não suportaria ter que falar com ele e sair da fantasia que alivia sua dor.

De olhos fechados ela vai continuar seu roteiro romântico de mulher feliz e da vida que poderia ter e não tem.

Evelyne Furtado
Enviado por Evelyne Furtado em 10/04/2007
Reeditado em 11/08/2010
Código do texto: T444956
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