Eu, meu cabelo e a minha mãe

Se cabelo fosse bom não nascia na bunda, é o que dizem. E implicam comigo. Demais. Tá certo, eu estimo demais minhas madeixas, as elogio, e não deixo ninguém por a mão. É meu, nasceu aqui. Eu adoraria falar sobre todos os produtos que eu passo para deixá-lo brilhante e leve, mas essa não é a questão. Minha mãe briga comigo todo dia. Ela quer que eu corte. Eles já batem na metade da minha costa, estão quase chegando ao traseiro. É charme, gente. Se eu dissesse o tanto de meninas que já peguei por causa dele... Juro que vocês não acreditariam!

Mas a briga feia mesmo aconteceu ontem. Mamãe aproveitou enquanto eu dormia e pegou uma tesoura de jardineiro emprestada. Quando acordei, demorei em entender o que estava acontecendo, mas quando vi aquelas duas pontas babando ao olhar para os meus preciosos fios, dei um salto da cama e quase caí janela abaixo.

Minha progenitora ficou olhando pra mim como se eu fosse um extraterrestre. Estava com os olhos arregalados, e do jeito que ela estava quando acordei, havia ficado. Foi um momento tenso. Deu pra sentir a atmosfera ficar mais pesada.

E ela acabou gritando:

- Seu idiota, eu podia ter cortado o seu pescoço!

Acho que eu não entendi no momento, mas me lembro de ter ficado perplexo.

- Então a culpa é minha?

- Claro que é! Você não deveria ter acordado. Sabe como essas pontas podem ferir?

- É claro que eu sei! Quem não deve saber é você!

Sei que gritei alto demais, mas a ocasião pediu assim. Sempre fui respeitador com mamãe, principalmente quando meus cabelos ainda estavam curtos. Na verdade ela sempre foi dura na parte educacional. E por isso ficou olhando pra mim como se estivesse prestes á, agora de verdade, passar aquela tesoura na minha jugular.

Cocei meu pescoço. Deixe-me ver se eu consigo evitar o pior.

- Me desculpe, mãe... Quer dizer, por gritar. Mas é assim, tipo, não vou cortar meu cabelo.

Ela me encarava. Será que ela estava babando ou era impressão minha? Por que ela não largava aquela tesoura? Olhei para baixo da janela. A queda não era tão alta.

- Tudo bem. – ela suspirou, deixando a tesoura no criado mudo e erguendo as mãos em sinal de derrota. – Tudo bem por ter um filho que se parece com uma mulher.

- Eu não me pareço com uma mulher! – protestei.

Na verdade eu pareço, mas essa não era a questão.

- Tudo bem por ter um filho que não me respeita. – ela estava chorando. Ah, meu Deus, ela sabe como sou manteiga derretida! Não vou deixar que me domine. – Tudo bem por ter um filho que gasta mais com cremes do que eu.

- Mamãe...

- Posso pelo menos te dar um abraço?

Caraca, como ela é boa nisso! Acabei cedendo. Sabe, eu não me lembrava muito bem há quanto tempo não dava um abraço tão caloroso em mamãe. Como ela é cheirosa! Não acredito nisso, ela está acariciando meus cabelos. É um momento único, tenho que registrar. Agora tudo está em paz. Espero que ela se conforme com o tempo. Vai acabar percebendo o quanto seu filho é gatão.

- Pensando bem, - ela disse – seu cabelo é maravilhoso.

Eu não tive tempo pra agradecer. Ela se livrou de mim como um tigre e eu senti apenas o tranco no meu peito, e depois de um baque forte, tudo ficou escuro.

Dores. Muitas dores.

Branco. Muito branco.

Quando acordei, percebi que estava na cama de um hospital. Uma penca de enfermeiras olhava pra mim e davam risada. Tentei perguntar do que estavam rindo, mas a fala não saiu. Uma delas pareceu entender, e me estendeu um espelho. Vocês sabem o que é a eternidade? Até eu conseguir me enquadrar direitinho no espelho, foi um sofrimento.

É, mamãe venceu.

Vamos para aquela cena clássica dos cinemas?

Corta pra fora do hospital e ouve-se apenas o meu grito.

Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 30/08/2013
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