Noturno número 1

Desceu a rua que dava na velha praça. Andava coberta por um velho xale que fora de sua avó e ela fora presenteada no leito de morte daquela senhora que tanto adorava. Sentia, com isso, a presença confortadora da anciã, como se tudo aquilo fosse suficiente para que pudesse sobreviver a qualquer destino.

Sentou-se no banco, aquele mesmo que tantas vezes quando era criança buscava refúgio e uma certa proteção dos elementos do dia. Esperou... Era ali que encontraria, ainda que fosse pela última vez, quem esperava ser o amor de sua vida.

Logo ele se apresentou , perfumado e bem arrumado, terno imaculadamente branco, como um anjo. Sorriu, deu-lhe de presente um maço das flores mais belas que, segundo ele mesmo, havia colhido com as próprias mãos.

- Você tem de ir mesmo? - perguntou a moça de cabelos negros como a noite que dominava seu coração.

- Sim, bem sabe que não há escapatória. A convocação é explícita e não admite exceções. Não creia que eu queira ir embora, ainda mais para essa guerra estúpida... Mas deve ser assim, não como eu quero, mas como outros querem...

As lágrimas começaram a deslizar pela face da moça, numa explícita demonstração do carinho que sentia por aquele rapaz que sentava-se candidamente ao seu lado. Ele a abraçou, coração apertado, o peito arfando devido às lágrimas que também lhe vinham aos olhos.

- Meu amor, eu voltarei...

- E se não voltar? Como ficarei?

O rapaz ficou com a pele imediatamente branca, pálida por aquela informação que a dona de seu coração lhe dava.

- Sente que posso não voltar?

- Eu não sei! Eu não sei! Essa é a minha tortura desde que soube que você recebeu aquela maldita carta. Oh, Carlos! Eu não sei! Eu não sei! Estou desesperada...

- Eu voltarei... Te prometo! Eu voltarei...

Ela aninhou-se no peito quente daquela pessoa à quem devotava o maior amor de todos. Subitamente, elevou os olhos brilhantes:

- Quero um filho seu...

- O que? respondeu surpreso.

- Quero um filho seu, agora! Se não voltar, uma parte de você ficará comigo e se voltar, nos casaremos.

- Não acredito no que está falando... Você sabe as conseqüências? Como pode sequer pensar nisso...

- Você não me ama! - respondeu voltando a face.

- Como não te amo? Já não é suficiente tudo aquilo que estamos vivendo? Diga... Não é suficiente?

- Não! Quero um filho teu! Quero agora! Se não for assim, que não volte mais e se voltar que não me procure!

Carlos sentiu sua garganta e boca secarem imediatamente. Sim, a amava mais do que qualquer coisa nesse mundo, mas essa proposta era totalmente absurda, sem sentido... No entanto, o que fazer?

A moça olhava seu apavarlhamento e simplesmente esperava a resposta. O rapaz a tomou pela mão e a levou até a casa onde morava sozinho.

- Nem sei o que tenho na cabeça! Não sei... Mas não posso deixar pensar que eu não te amo...

Ela trancou-se no banheiro e retirou sua roupa, ficando apenas com a combinação que usava. No quarto semi-iluminado, apresentou-se frente à seu amado. Ele, obviamente, a desejava. Olhou para o corpo daquela mulher que se alteava próximo à ele, parecendo totalmente gigantesca, maiúscula, sem que ele pudesse ao menos reagir.

Beijou-a , não de forma erótica mas como uma doce reverência, uma total admiração por aquela que lhe dava a maior prova de amor.

Despiu-a de forma completamente tímida, sensível, vagarosa, e, quase em profanação, sua boca tocou seu pescoço, seus seios, seu colo, fazendo que, mesmo involuntariamente, a moça soltasse um ou dois suspiros contidos.

Sua virgindade resistiu pouco à penetração. Os movimentos de dor e também quase que automaticamente pausados, alternavam-se. Dentro de si, sentia o membro latejante, os gemidos que Carlos soltava, os beijos em sua boca. Pela primeira vez, sentiu-se mulher, aquelas mulheres e todas as mulheres...

Finalmente, num gemido de prazer, terminou. Sentiu, ainda que fosse imaginação, o esperma entrar em seu corpo.

Banhou-se , rapidamente , após alguns minutos de calor dos braços de seu amor...

- É melhor irmos... - disse - Me acompanha?

- Claro que sim...

O terno continuava imaculado mas o caminho foi percorrido no mais restrito silêncio. Carlos mal sabia o que dizer à alguém que sacrificava a sua honra de mulher para mantê-lo vivo, para sempre. Como odiava ter de partir, como tudo aquilo lhe parecia absolutamente absurdo, absolutamente fora de lógica.

- Nos separamos aqui Carlos... Vá com Deus... Se voltar, terá meu eterno amor... Assim seja.

Beijou-o levemente e depois vi-o sumir na penumbra da noite recém nascida.

Nove meses depois , a criança nasceu. Entre impropérios e julgamentos, esperava Carlos que deveria aparecer, a qualquer hora na estação.

No entanto, um dia, quando menos esperava, a irmã de Carlos desceu a rua, um papel na mão. Um pressentimento, um sentimento de horror a invadiu... Na mão da quase cunhada, um papel amassado, na face , uma expressão de horror...

- Meu Deus , Ana! Meu Deus! Meu Deus!

Abraçou-a. Não precisou ler a carta, para saber o que estava escrito:

"Lamentamos informar que o soldado Carlos Antunes, morreu em combate, no cumprimento do dever..."

As lágrimas negaram-se à cair em quantidade. Intimamente já sabia que esse seria o desenlace. Sua esperança terminara, jamais teria Carlos novamente. Não foi ver o caixão quando ele foi velado, mas , oculta , viu o esquife descer à sepultura.

No colo, o rebento recém nascido, sorria à luz do sol e brincava com o camafeu que a mãe carregava no peito, com a figura do pai. Ao olhar para ele com os olhos rasos de lágrimas, paradoxalmente, a criança sorriu. Havia esperança. Deixou os outros prantearem o morto, seguiu pela velha praça, com o velho xale de sua avó.

André Vieira
Enviado por André Vieira em 12/04/2007
Código do texto: T446693