Retalhos da Memória

RETALHOS DA MEMÓRIA

O sol bem posto estava a cumprir toda sua função. Postura sublime, ar majestoso e vigor inigualáveis iluminando cada recanto, desde o mais lúgubre até o mais feliz, deixando o dia formidável e com ares de festa.

D. Quinha encontra-se em pleno trabalho. Mitucho, seu gato, acompanhava-a num luxo e vaidade que raros felinos conseguem comportar, e eu, em minha meninice interrogava:

- Trabalhando duro D. Quinha?

- É a vida filhota. É a vida.

Poucas palavras compunham os dizeres dessa mulher. Vivia mais no mundo dos gestos e dos cochichos com seus bichinhos, seus verdadeiros companheiros. Ouvia-se D. Quinha assoviar para Mitucho todos os dias lá pelas cinco horas da tarde para irem ao curral. D. Quinha tirava o leite da Malhada e Mitucho o sorvia de dentro de uma lata de sardinha, ainda quentinho e com brilhosas bolhas de espuma que ele explodia com seus bigodes.

É preciso dizer que eu estava em plena infância, que morava a pouca distância dela e que, meu maior prazer era cuidar D. Quinha para aproximar-me dela e lançar-lhes milhares de perguntas. Cada coisa que via era motivo para desmanchá-la em porquês. Queria eu saber tudo e vivia a pedir-lhe:

- D. Quinha por que vaca não canta?

- Ora essa, você já ouviu galinha berrar?

- Não, elas cantam e, às vezes gritam, mas berrar eu nunca ouvi não.

Insatisfeita, lá ia eu novamente com mais perguntas:

- D. Quinha?

- Que é agora?

- Por que só nasce água lá onde tem a fonte?

- Ah, Bentinha. Porque a terra está furada e daí sobe água.

- Então, se eu furar a terra aqui vai subir água?

- Não, não! Não é assim. Eta menina xereta!

Longas conversas com D. Quinha. Quer dizer, longas falas minhas e miúdas respostas suas. D. Quinha, sorriso fácil, poucas palavras, vida simples e feliz. Não raras vezes, fazia pequenos favores a ela para ser gratificada com suas gostosas balinhas de açúcar mascavo e manteiga. Hum! Ainda hoje recordo seu gosto e vejo-me saltitando risonha por ter ganho um doce.

Ah, D. Quinha! Ah, infância maravilhosa! Tempo passado. Tempo vivido. A liberdade era minha bandeira. Brincar, imaginar e criar, meus lemas.

Hoje, em meu fazer adulto, trago bem presente D. Quinha e, por vezes a visito. Seus oitenta e sete anos são de pura sabedoria. Econômica nas palavras, esbanjava seu olhar feliz a todos os movimentos da natureza. Olhava o céu e dizia:

- Amanhã chove!

- Como sabe disso?

- Olhe as nuvens, elas estão pequenas e andando para o norte.

Ainda hoje olho o céu, mas para mim as nuvens são meros flocos brancos, sei lá de que, que se movem e, por vezes, fecham o céu para que venha a chuva. É, mas para D. Quinha a natureza foi sua mestra a vida toda e não há quem possa dizer que uma não ensinou à outra.

D. Quinha sabe viver e ensina muitos a viverem. Tem seus animais e os trata muito bem. Aprendeu com a vida a sorrir, a chorar, a agradecer e a falar, sim porque hoje, ela fala mais que há anos atrás. Memória bem comportada. Lembranças em detalhes. D. Quinha assim vive, no mesmo local com a mesma calma e sem muitos dos meus porquês.

Dia desses fui vê-la e ouvir suas gostosas conversas truncadas por inúmeros gestos. D. Quinha fala dos animais como se fossem pedaços do seu próprio corpo. Conhece-os tão bem que sabe distinguir pelo grunhido se o porco está com fome ou, se está apenas resmungando. O galinheiro é seu passatempo favorito. Lá ela conversa com a Pintada e com o Joca por longo tempo. Parece até que eles a entendem porque ficam à sua volta ciscando e cantarolando de leve numa alegria impossível de descrever.

D. Quinha recolhe os ovos e agradece às galinhas por os terem posto. Dentro de sua humilde e aconchegante casa, ela prepara um bolo e enquanto ele assa, conta-me suas últimas façanhas:

- Bentinha, ontem fui até em cima do morro buscar aipim. Demorei um bocado de tempo porque minhas pernas parecem palitos fracos que não querem mais se mover.

- E o aipim é gostoso? Perguntei toda empolgada.

- Oh, se é! Quando você for embora lhe dou uns pedaços e verá que delícia.

- D. Quinha, que bolo cheiroso, hein?

- Mais bom é o gosto que o cheiro.

No canto, em cima do fogão, a água da chaleira pulava, e lá foi D. Quinha coar o café. Que aroma! O perfume se espalhou rapidamente por toda casa, enquanto que a conversa continuava.

- Pois olhe filha, sinto-me fraca e feliz. Vivi a vida sem luxo, mas com riquezas enormes.

Pensei um pouco sobre essa fala e supus não tê-la entendido, então, resolvi perguntar:

- Como assim?

- Como? A saúde, a amizade, a quentura do sol, o brilho da chuva, o claro da lua. Quer mais?

- Ah sim D. Quinha, isso é muito bom!

Respondi isso por responder, porque para mim riqueza era dinheiro, dinheiro e não aquilo que D. Quinha havia se referido.

Tomado o café e saboreado o delicioso bolo, despedi-me de D. Quinha com a promessa de em breve voltar. Embarquei em meu carro, acenei com vigor e parti. Parti com uma sensação estranha a me apertar o peito, um “que” de última despedida.

Sexta-feira, quatro dias depois da minha visita, avisaram-me que D. Quinha falecera. Que golpe levei. Abriu-se uma ferida em meu peito. Fui ao enterro e não consegui vê-la morta. Recordei as inúmeras conversas nossas, da sua singela alegria, de seu imenso amor pelos animais, até lembrei que quando eu era aquela criança xereta, D. Quinha falava pouco, muito menos que atualmente, ou será que era eu que não sabia ouvir?

Analena

Analena
Enviado por Analena em 14/04/2007
Código do texto: T449714