O Casarão da Miguel Bombarda

Misterioso! Tinha um quê de misterioso, de nostálgico, e, ao mesmo tempo, de aterrorizador. Assim era o casarão manuelino da Rua Miguel Bombarda.

Incontáveis foram os anos que deixei a minha imaginação em cima do tapete roído da porta da entrada. Uma velha porta de madeira cinzenta e já sem ânimo.

Não me lembro de um só dia que não tivesse parado diante do gradeamento, alto e imponente, quando por ali passava; tão-pouco me lembro de ter ouvido magros gemidos femininos, relato dos mais idosos, que provinham das janelas desdentadas, ornadas, aqui e acolá, com anilados fios de viúva negra.

A Primavera começava a brotar. Pairava no ar uma frangrância de flor de lilás. Um manto de frágeis florezinhas amarelas e brancas, alfombrava resquícios do que fora um belo jardim, ao mesmo tempo que arrostava com os carecentes canteiros. Os secos galhos das glicínias agarravam-se às paredes da casa, como o musgo às telhas encardidas, ou as lapas aos rochedos.

Poucos metros me distanciavam do tapete roído da entrada principal; mas bastantes entre a coragem e o medo!

Um movimento, quase imperceptível, numa das janelas do primeiro andar atraiu a minha atenção. Não fosse aquela sombra por detrás dos cadilhos das cortinas esfarrapadas, e diria que seria, talvez, a leve brisa primaveril que as teria assoprado.

A curiosidade, caro leitor, leva-nos a actos inexplicáveis, arrebatados...

Empurrei, levemente, o portão enferrujado. Rangeu de dor, talvez; os ferros suportavam o peso das intempéries de muitos e muitos anos. Contavam-se reumáticos séculos de vida.

O medo refreava-me os passos, e o braço da curiosidade, que se poisara nos meus ombros, empurrava-me, materno e afoito, em direcção à porta. Os meus dedos trémulos tentaram alcançar a maçaneta da porta. Misteriosamente, esta abriu-se sem que a minha mão chegasse a sentir o frio do ameaçador leão esculpido no forjado ferro.

Entrei! Sim, entrei naquele casarão que albergara, outrora, uma das mais conhecidas famílias da cidade. O soalho da ampla entrada estava coberto de tapetes orientais em tons ocres, verdes pálidos, beges e negros. Uma mesa redonda disposta ao lado da faustosa escadaria, que me pareceu feita de madeira de acaju, conservava, ainda, um vaso de cristal baço. Imaginei aquele vaso repleto de lírios brancos. De um lado da mesa, uma Bergère Luis XV. O assento afundado, cor de vinho, denunciava o peso de longas horas de espera. Do outro lado, uma estátua de um negro com uma tocha dourada na mão, fazia de candeeiro.

No lado esquerdo, de encontro a uma fissurada parede que já fora branca, um piano. Em cima deste, um candelabro de prata com restos de velas brancas, poisado em cima de um delicado napperon de linho. Quantas melodias não teria alumiado?... Alegres ou tristes? Tristes diria eu, ao ver aquelas camarinhas alvas em forma de lágrima, que findavam aos seus pés!

Na outra parede, em face do piano e ao lado de uma porta de madeira, um bengaleiro com uma colecção de bengalas. Quase todas com cabeças de animais, em prata. Por cima deste, um espelho já carcomido pela humidade.

Ergui o meu olhar, e no patamar das escadas, pendurado numa ampla parede, um quadro renascentista. Admirei-o, pausadamente. Era uma mulher de trajes negros, sentada num coxim doirado com galões brancos, as mãos poisadas no colo. As rendas alvacentas do colarinho contracenavam com a tristeza do seu rosto, dos seus olhos cor de mar bravio, e com a farta cabeleira de azeviche. Olhava-me com um sorriso beato.

Um ruído assustou-me. Por detrás de mim, a porta fechara-se. Voltei a olhar o quadro, e apercebi-me que não me era dirigido aquele olhar beato, mas sim à entrada da mansão.

Avancei um pouco e abri a porta que se encontrava à minha direita. Uma ténue luz adentrava naquele salão de estilo vitoriano. Ao fundo do salão, uma imponente lareira de mármore rosado. Dois sofás, frente a frente, teriam, com certeza, sido testemunhos de longas conversas. Vários quadros de caçadas inglesas ornavam as paredes. Olhei ao meu redor. Uma delicada vitrina guardava louças de porcelana branca e azul, castiçais, estatuetas, e um bouquet de flores já secas. Algo faltava naquele salão. Uma história, o relato, em branco e negro, de um passado vivido!!!

Nem uma fotografia adornava o peitoril da lareira. Nem a mesa de voltarete instalada num canto perto da janela, ostentava um porta-retratos. Nenhum rosto alegre, nenhum sorriso farfalhudo fora emoldurado. Tirando as rugas da mobília de madeira, nada identificava os traços daqueles que naquela casa viveram. Os objectos de fino gosto que decoravam o salão, calavam num silêncio pesaroso, as cenas que presenciaram um dia!...

Voltei à entrada da casa, voltei a olhar para o quadro pendurado no patamar das escadas. Um cálido roçar de folhos descia, majestosamente, os degraus.

Fiquei inerte, apavorada. Eis... o mesmo traje negro, o mesmo rendado colarinho, o mesmo sorriso beato. Só as mãos não encontraram o repouso do regaço; pendiam, como ponteiros, ao lado de um corpo definhado. Ondas rebeldes saltavam do cais daqueles olhos cor de mar bravio. A fausta cabeleira de azeviche, agora prateada de luares, e entrelaçada p'las noites azedas, fenecia nos apiedados ombros. Parou debaixo do seu retrato. Entreabriu os seus secos lábios, e com pesar proferiu amargas palavras.

- Por essa porta saiu, um dia, o meu José Cravinho.

Balbuciei, despropositadamente, um "Não vi nenhuma fotografia no salão..."

- Não existem fotografias nesta casa, respondeu ríspidamente. Os rostos amados, guardo-os num velho baú que teima em rastejar pelos corredores da mente; guardo-os no meu tiritante seio. Só a mim pertencem!

Diante do meu semblante apático, continuou.

- Durante a madrugada, acendo as velas brancas que repousam no candelabro, abro a tampa do piano, e os meus magros dedos passeiam vagarosos nos dós combalidos. No encoberto horizonte dos meus olhos, um homem alto e esguio, de cartola e bigode doirado, folhei-a a pauta dos meus cinzelados dias. Na sua pele rosicler, finos veios rubros pululam ao toque dos meus dedos. Não! Não verá lembranças recostadas em franzinas molduras, nem penduradas num muro de cal e areia. Não pendurarei o meu único amor; os muros ruem às portas da morte; a alma vive na soleira do eterno!...

O seu olhar convidava-me a deixar aquela moradia, deixá-la no desfastio da solidão. E saí.

Desde a calçada branca, desgastada pelos passos perdidos dos transeuntes, voltei a mirar a janela do primeiro andar, as paredes de madeira murcha, a pintura descascada, as calhas das goteiras encarquilhadas.

O Tempo se encarregaria de apagar aqueles aguados traços da paisagem, como a chuva apaga, somente, as peugadas dos que ficam para trás. Só não apaga os entalhes que a paixão deixa no alpendre das nossas almas, porque a alma vive na soleira do eterno!...