Varrida

"Desde sempre eu faço isso.

Abria a porta de casa e sentava pra olhar pra chuva.

Minha mãe sempre perguntava o que eu estava fazendo." (T.C)

E ficava lá, sentada no banquinho rústico de madeira, feito de um tronco de uma laranjeira já morta há muitos anos. Ainda lembrava das laranjas caídas ao chão, com um cheiro forte de manhã sem fim, noite com clarão. As frutas foram devoradas, o suco secou, o sumo expirou, sobrou mesmo aquele toco da árvore, fragmento de vida desenterrada, sem raiz.

A vida corria leve para aquela menina com pele cor de tamarindo, cabelos soltos, pés descalços. Tudo era mais do que aparentava, e além das coisas havia o eco dessas coisas, o reflexo do eco e as raízes do reflexo. Podia correr até a beirada do mundo, olhar para toda aquela extensão e voltar nesse caminho por mil vezes, ainda sim era sempre outro caminho. No quintal de frutas infinitas, extendia-se também a sua infância. Aquela parte da vida em que nada parece ter limites, um buraco é o outro lado do mundo, uma árvore é um mirante, de onde pode-se observar a grandiosidade de uma nuvem branca perdida em telas azuis.

Foi numa tarde qualquer, dessas que nunca esperamos, mas sabemos que um dia virá, a menina avistou, lá ao longe, muito longe, uns pinguinhos dançando no céu. Corriam alegres, mas também afoitos, como se trouxessem um fato importante. Fixou seus olhinhos redondos por alguns minutos, mas logo depois se virou para seu quintal e foi brincar de viver. Tanto brincou que nem viu as máquinas chegarem. Não eram muitas, mas assustadoras, com suas feições de aço envelhecido, terra morta em suas laterais, garfos como dentes ferozes, rosnando para a paisagem que florescia à sua frente.

Com o barulho provocado pelas maquinas, a menina, assustada, correu ao alcance de sua mãe. No entanto, nem precisou correr muito, pois logo a encontrou, sentada numa cadeira estofada, olhando, sem expressão alguma, para lugar nenhum. Teria visto a beirada do mundo, o mirante da árvore, o outro lado do mundo, teria? A menina não sabia, apenas que aquela pessoa sentada na cadeira não era a sua mãe, somente uma casca desbotada da mulher que sempre lhe parecera mais.

Chamou a atenção da mãe por alguns minutos, mas não obteve resposta. Nesse momento virou-se e viu um homem sair de uma das máquinas e aproximar-se. Sua mãe não se levantou, apenas estendeu uma das mãos e entregou ao homem um amontoado de papéis. Bem lembrava das conversas dela ao telefone, contas, hipotecas, dívidas, o pai que foi embora, sem nunca dizer nada. Logo depois o homem virou-se e voltou à máquina. Sua mãe ficou ainda um instante parada, e seu choro foi abafado pelo barulho estrondoso das máquinas.

A menina ficou atônita, vendo todo o seu planeta, que era justamente aquele imenso quintal, ser demolido, metros e metros de terra removida. Uma chuva terrível caiu naquele dia, e nos seguintes.

E agora ficava lá, sentada no banquinho rústico de madeira, feito de um tronco de uma laranjeira já morta há muitos anos. Olhava pela janela da sala, de um apartamento frio e morto, no décimo andar de uma caixa de sapatos. Sempre que chegava a chuva, aquela cascata de gotas grossas, a menina ficava lá, olhando, espiando, talvez procurando um pouco de algo que não poderia recuperar.

Sua mãe nunca entendia. Quem sabe nem mesmo a menina entendesse.

*originalmente de 01/09/2012.