ACALANTO
                    Seguindo a rotina combinada de rodízio, ficara para Márcio fazer companhia ao filho na hora de colocá-lo na cama para dormir. Na maioria das vezes era um momento de imenso prazer para Márcio: tomava o filho de dois anos no colo, levava-o para a cama, deitava ao lado dele, acariciava os cabelos louros encaracolados e amaciava a voz para iniciar uma estória sobre duendes, fadas, heróis e uma quantidade enorme de animais descritos de forma romântica e delicada. Algumas vezes, no entanto, a tarefa o incomodava: faltava inspiração, os duendes e as fadas sumiam, os heróis perdiam as lutas, os animais tornavam-se ferozes em razão das dificuldades que ele passara durante o dia. Tudo ficava ainda mais complicado porque o filho percebia a diferença e o sono demorava além do dobro de tempo para chegar.
                         Naquele dezembro de 1972, Márcio chegou em casa com o novo disco do Roberto Carlos e, aproveitando a folga, enquanto Marília alimentava Betinho, serviu-se de uma dose de uísque e sentou na sacada do apartamento para curtir as novas músicas e olhar a cidade como se olhasse a Via Láctea. Quando ouviu a quinta música, "Acalanto", do Dorival Caymmi, uma idéia brilhou no espaço vazio, como os desenhistas de estórias em quadrinhos gostam de expressar, numa forma de lâmpada incandescente.
                                   À noite, ao levar Betinho para a cama, ao invés de contar uma estória, acariciou os doces cabelos encaracolados e rodou a música: "É tão tarde, a manhã já vem, todos dormem, a noite também... Só eu velo por você, meu bem....". Betinho arregalou os olhos para Márcio e depois se manteve quieto, com o dedo polegar na boca, até o término da música. Nesse momento, tirou o dedo da boca e pediu: "De novo." E Márcio repetiu a música mais uma, duas, três vezes, até que Betinho adormeceu.
                         No dia seguinte, Márcio gravou os dois lados de uma fita cassete com a música repetida inúmeras vezes.
                         Assim, nas noites de pouca inspiração, Márcio colocava a fita e observava o encanto do filho a escutá-la até adormecer.
                           Aos oitenta e dois anos, Roberto Medeiros Ramos estava internado por complicação em um câncer terminal de rim.
                        Na hora da visita, pediu ao filho mais velho que gravasse no MP4 a quinta música do disco do Roberto Carlos de 1.972. Insistiu que a música fosse gravada inúmeras vezes, até completar uma hora de gravação, pelo menos. Márcio, que herdara o nome do avô, não entendeu o pedido, mas aquela não era uma hora para discutir os desejos do pai. No dia seguinte trouxe o MP4 gravado conforme o pedido.
                       Roberto, com as mãos trêmulas, colocou os fones de ouvido, ligou o aparelho e fechou os olhos. No rosto magro, assolado pela doença, desenhou-se uma proposta de sorriso e ele permaneceu assim, como se estivesse concentrado, absorvendo um prazer somente a ele permitido.
                     Foi então que Roberto voltou a ser Betinho e adormeceu seu último sono.
 
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 23/10/2013
Reeditado em 14/03/2017
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