UM SORRISO NO ESCURO

Desdentado, José, conhecido, como todos seus homônimos, por Zé, tentava devorar o naco de carne de porco que encontrara.

Altas horas da madrugada. Todas as luzes residenciais, apagadas. Solitário, José, ali, sentado sob a marquise, ceava.

Encolhera-se ao ver a patrulha surgir na avenida. Mas, agora, tranqüilo, agradece a Deus – os guardas passaram e não o viram. Também, as árvores do canteiro central e as luminárias amarelas... Quer camuflagem melhor que as sombras dessa combinação?

De repente, ele vê um corpo. O que será? José pensa: “Mas será o Benedito?!”

Mas que Benedito, José? Você conhece algum Benedito? Não?! Ah, sim, força de expressão, não é mesmo?

E o corpo? O corpo está ali. Tremendo de medo, José se aproxima.

Calma, José, vamos lá! Abra os olhos... Afinal, é um morto! “Cruz-credo, ave-maria!” Com esforço, José abre os olhos – um de cada vez, que era pra se acostumar.

Estendido no chão frio daquela madrugada, o cadáver sorria bestamente. José parou de tremer. Olhou para um lado, olhou para o outro lado. Ali, só ele e o falecido. E neste, um sorriso inútil...

O que foi, José?

José passou a língua pelas gengivas nuas. Há muito não sorria. E bota muito nisso, não é, José? Suas pequenas alegrias têm sido demonstradas com um leve esticar do canto da boca.

José, José, vamos lá, Zé! Pense um pouco. Que magnífica dentadura! O coitado já se foi mesmo...

E então, de manhã, à porta da igreja, ao cumprimento do padre, José escancarou um sorriso festivo.