Salete,despretencioso anjo

Anjos, arcanjos e santos eram contra a união do casal; mesmo assim realizou-se o matrimônio, porque a última palavra é de Santo Antônio, o casamenteiro. Ela, branca de lindos cabelos longos e lisos . Ele, um belo mulato de olhos verdes. Choveu muito na festa do casamento de Ana e Manuel.

Após um tempo de boa vivência, (num tempo em que casamento era arranjado pelos pais, lá pelos idos de 1936 ) logo começaram as brigas do casal. Manuel saía muito e vivia de romance até mesmo com as melhores amigas de Ana, que logo desconfiou de tudo.Ele, então, proibia a jovem esposa de sair de casa. Demonstrava ciúmes doentio daquela que recebera por esposa. A relação entre o casal era de guerra constante.

Mesmo assim, nasceu Salete com cabelos lisos e, tão negros quanto as brigas daquele casal. Morena igual ao pai e de olhos também negros. Apesar das brigas, vieram mais outros quinze filhos. Era uma época difícil, em que a relação entre pais e filhos era de um distanciamento maior, que chega a ser difícil para esta geração compreender. Era um povo carrancudo, que por coisas muito banais espancavam os filhos. Talvez a seca do lugar tenha colaborado com o mau humor das pessoas da época. Que por outro lado, não perdiam uma festa, daquelas realizadas entre as famílias.

Estou falando de uma família que viveu na cidade de Fundão na Paraíba, lugar este que até hoje sofre com a seca. Às vezes, a falta de alimentos era tão grande que um ovo cozido era dividido entre quinze irmãos. Arroz era luxo. A água era buscada longe. Quem tinha um jumento, amarrava as latas de água no bichinho, quem não tinha, carregava a lata d’água na cabeça de 20 litros andavam quilômetros assim. Subiam e desciam ladeiras com o peso da água. Algumas pessoas, sortudas que tinham em suas terras as minas- que chamavam de cacimbas, tinham a coragem de negar a água , e além disso atiravam os cachorros para afastar os necessitados , que por vezes foram obrigados a roubar a água para seu consumo. Banho, só aos sábados. Com caneca e bacia. Apenas se lavavam pés, mãos e rosto durante os outros dias da semana.

Logo que nasceu, Salete teve uma infecção no umbigo . Venceu esse mal. Depois que aprendeu a andar e falar, chegou a ganhar até três surras por dia. Era muito inquieta , a menina.

Chegou o mês das festas juninas. Salete já era mocinha. Tinha onze aninhos. A festa era na casa de um de seus tios. A família toda estava presente. Fogos de artifícios eram preparados em casa. Eram verdadeiras bombas caseiras. Enquanto todos se divertiam, e ao menor descuido, aconteceu um erro, e um rojão voou em direção à Salete.Quase separou seu pé da perna. Difícil é descrever a dor que essa menina sentiu. Foi socorrida pelos tios que a levaram nos braços, enquanto ela, de dor, mordia quem se aproximava. Salete foi curada, após longos meses de cama. Muita reza, muita promessa aos santos, pois médicos ali não havia. O pé colou de volta na perna, que tinha ficado ligado um ao outro somente pela pele e alguns nervos. Ela ficou com o pé torto, andava arrastando aquela perna, também ficou ruim da cabeça. Cresceu somente de corpo, as atitudes foram sempre a de uma criança.

O serviço na roça era para todos. As moças revesavam. Cada semana uma ficava em casa, ajudando a mãe e aprendendo as coisas de casa. Ninguém podia comer nada fora da hora. Biscoitos, doces, balas eram escondidos. Se um dos filhos mexessem nesses alimentos, levava uma surra tão grande, que tinha que tomar banho com salmora. Era difícil o dia que um não apanhava.

Salete ficava indignada ao ver seus irmãos sendo tratados daquela maneira . Trabalhavam no sol quente danado e apanhavam por qualquer bobagem. Os detentos de hoje sofrem menos do que aqueles irmãos sofriam. Se desaparecesse um biscoito do pacote, era feito um inquérito, um interrogatório, e em seguida uma surra de deixar as galinhas todas banguelas. Algumas vezes, ou melhor por diversas vezes Salete assumiu a culpa de seus irmãos .Para não vê-los sendo castigados. Ela apanhou demais de sua mãe e de seu pai por coisas que nunca fez.

O casal, quando era noite de de lua cheia se atracavam um no outro, não para se acariciar. Era preciso os filhos entrar no meio para separá-los. Assim era também nas outras luas.

Manuel abandonou a família, foi viver com outra pra outras bandas do sertão nordestino. A família de Nina foi se desestruturando. Uns casaram, outros fugiram de casa cedo para não apanhar mais . Nunca mais Manuel foi visto pelos filhos. A última notícia dele, quando chegou ao conhecimento da família, era a de que ele morreu sozinho. Não quis procurar a família, pois tinha vergonha dos erros que cometeu . Nesse período, ele já tinha muitos netos na idade de casar. Nenhum conheceu Manuel.

Ana viveu muitos anos. Sempre perto dos filhos. Sua vida foi de sofrimento sem igual. Ela se tornou rezadeira. Curou muitas dores do povo, mas suas feridas nem a caduquice da idade apagou. Ela morreu com seus cento e cinco anos, vivendo ao lado daquela que sua mão foi por vezes pesadas demais . Salete, a mais maltratada dos filhos, nunca pode e nem quis viver longe de sua mãe. Esperou sua mãe morrer primeiro, por carinho a ela. Morreu depois para ter a certeza de que encontraria sua mãezinha no paraíso. Afinal, tudo o que aconteceu durante a vida foi reflexo de uma vida dura para todos. A gente sempre perdoa.

Enfrentaram o peso da idade juntas. Já não eram mais mãe e filha. Eram mesmo duas irmãs inseparáveis . Já não importava o passado truculento. Uma, não vivia sem a outra. Eram crianças novamente brincando de viver. Já não tinham vaidades, orgulho, cobiça, nem bem sabiam mais o que era sonhar. Apenas cumpriam seu destino.

Salete conseguiu impedir que Ana e Manuel cometesem mais erros na família, buscando para si os castigos que seriam aplicados em seus irmãos mais jovens.

Sempre presente na vida dos sobrinhos. Quando via a chegada de um, corria e se escondia atrás da porta. Pegava-os de surpresa e lhes fazia cócegas até a criança pedir socorro. Dizia a eles sempre, que quando era mais jovem, era tão bela quanto um chopinho.

Lindalva
Enviado por Lindalva em 31/10/2013
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