Vidas, idas e vindas

“Então, doutora, ele era tudo, tudo, eu só tinha dezesseis e não sabia o que era aquilo, eu nem queria no começo mas acabei ficando com ele, não é o ficar de hoje, ah não, fiquei como se fosse ficar para sempre, no começo era uma questão de me acostumar, ele era lindo, lindo, acabei me apaixonando de verdade, era amor, mas amor mesmo, eu era doente por ele, e ficamos juntos muito tempo, muito tempo para dois adolescentes, não tinha sexo não, eram só os beijos maravilhosos, que naquele tempo adolescentes não faziam como hoje, era casto o amor.

Mas de repente, doutora, nós não demos mais certo, e aí eu nem sei bem explicar, sabe, rompemos e voltamos, não é uma coisa como é hoje, ah não, era namoro de ir em casa e tudo, de conhecer as famílias, de achar que se vai casar com o eleito e coisa e tal, e sexo só depois do casamento, mas não chegamos a isso, rompemos, depois voltamos, mas não foi a mesma coisa, e então nos afastamos.

E aí, doutora, cada um foi pra um lado, eu casei, ele casou, eu nunca mais pensei nele, ou minto, pensava sim, com curiosidade, procurava nas listas telefônicas o nome dele de vez em quando, não tinha essa coisa de internet, e eu nunca achei nada, nada, além de ter encontrado com ele uma ou duas vezes muito rapidamente, sabe, banco, supermercado, essas coisas, e tanto eu quanto ele muito desconfortáveis naquela situação, mal nos falamos, apesar de eu querer perguntar tudo, olhos nos olhos, tantos anos de distância, mas era só um olá, como vai, olhar desviado, e cada um tocava sua vida.

Mas um dia, doutora, muitos e muitos anos depois, filhos adolescentes, ele me procurou, quis me ver, e eu fui, eu não sei se devia ter ido, ah devia sim, é claro que devia, eu estava muito curiosa, e sabe, ele nem tinha mudado muito, seu olhar e tudo o mais, continuava lindo, ele era um homem maduro e só, estava separado, e é claro que caí, caímos, eu me apaixonei de novo, como não havia de ser, se sempre lembrava dele, ele me ensinou a beijar, é óbvio que ele era o beijo da minha vida, claro que era, sempre ia ser, mas não tinha sexo não, eu era louca por ele e ele por mim, mas nos beijávamos com paixão e só.

E depois, doutora, ele quis ficar comigo de verdade, quis muito, e eu também queria, era só o que eu queria, mas nem tive tempo de resolver minha vida, ele não me esperou, acho que tinha pressa, foi embora, me deixou, nem se despediu, foi para longe sem falar comigo, e eu sofri muito, ah como sofri, ele desistiu de mim da mesma forma e na mesma intensidade com que tinha se aproximado, e eu quase ruí, quase morri, e escrevi tudo o que tinha pra escrever.

Aí, doutora, eu me separei pra poder ficar só com as lembranças dele, só com a ausência dele, então um belo dia ele voltou e me pediu perdão, me pediu desculpas por ter ido assim, tão sem avisar, mas aí eu queria me esconder dele, eu estava com medo de sofrer de novo, e ele não estava mais tão efusivo, acho que na fuga dele algo o machucou, não sei, parecia um bicho ferido, nós nos víamos de vez em quando mas não era mais a mesma coisa.

Ele quis, doutora, ele me quis de novo, eu também o queria, mas não era sempre que ele me queria, ele estava confuso, e assim fomos indo, até que eu resolvi que estaria lá quando ele quisesse estar comigo, me ver, me levar ao cinema, que é o que mais fazíamos, a única coisa que fazíamos, cinema, cerveja, não tinha sexo não, parece mentira mas não tinha, a gente ainda tinha muito do pudor da adolescência, eu morria de vontade e ele talvez também tivesse, mas tinha uma barreira, não sei, eram os beijos mais maravilhosos e eu morrendo de querer.

Mas então, doutora, um dia ele me avisa que ia voltar para a mulher dele, nem falou olhando nos meus olhos, e eu pensando que a gente ia enfim ficar junto, tinha os beijos e a vontade de estar do lado, tinha paixão, tinha amor mesmo, e eu não sei por que, os filhos já grandes, nós sozinhos, tudo fácil, tudo simples pra nós, de repente ele me diz isso, fiquei triste, mais que triste, fiquei irada, fiquei revoltada, ele me ligava e eu não atendia, não mandava nenhum sinal, não respondia mais aos dele, até que ele desistiu, porque eu tinha colocado na cabeça que era hora de esquecer esse infeliz, fiquei tão decepcionada que o arranquei a fórceps de dentro de mim.

E aí, doutora, eu pensei que ia conseguir de verdade, mas era uma mentira que eu contava pra mim mesma, eu tinha banido aquele homem de dentro do meu cérebro, da parte pensante, mas ele continuava no resto do corpo, na alma, nas memórias, no desejo que não realizamos, na vontade de que tivesse continuado, que a gente tivesse podido dar uma outra chance pra nós, éramos um casal, éramos um ícone, faltava ainda um monte de coisas, faltava até sexo, mas ele nem quis tentar, arregou antes, fiquei mesmo possessa e por isso tentei tirá-lo de mim.

Mas aí, doutora, eu não consegui manter a palavra e depois de muitos anos eu o procurei, agora sim, tinha a internet, achei seu telefone, atendeu o neto, acho que já era um homem, um vozeirão, pensei que fosse ele, até gelei, eu sempre gelava quando ouvia a voz dele, e aí o neto dele me disse que ele havia morrido fazia um mês, morrido, imagine, um infarto, outra vez ele havia fugido, outra vez os nossos tempos não bateram, coisa de timing defasado, eu fiquei muito triste, muito triste porque queria ter falado ainda mais coisas, a vida inteira quisemos falar muita coisa, todas as vezes que nos víamos nunca chegávamos a conclusão nenhuma, não fazíamos nada além de falar e andar de mãos dadas e beijar, e agora ele morreu, imagina, e tudo o que não foi feito, o que eu faço com isso, com quem posso contar, a quem posso contar?

Então, doutora, essa dor que estou sentindo não é nada não, exagero dos meus netos, se for infarto deixa, eu preciso encontrar com ele, sabe, preciso falar uma ou outra coisa acerca de nossas vidas e do que poderia ter sido e não foi, era sempre isso que fazíamos, não fazíamos amor, íamos no cinema ver a vida dos outros e falávamos sobre a nossa, às vezes nos beijávamos mas não fazíamos nada para viver, ríamos um pouco mas não tudo o que precisávamos rir, então quem sabe consigamos acertar nossos ponteiros agora, doutora, agora que não há mais vida pra atrapalhar.”