"Não"(Primeira Parte)

Não me lembro do dia em que determinei a minha própria morte; não a física, mas a morte da alma, do espírito benevolente que conduzia o meu corpo – a minha leviana matéria – pelos quatro cantos do mundo. Eu só tenho uma vaga lembrança da pouca luz, do cheiro salobro exalado incessantemente e das caras malogradas à minha volta. Era grande a minha euforia, era pequeno o meu medo. Tornei-me gigante diante da pequenez dos homens, sucumbi às virtudes e ascendi às veleidades. Sim! Todas àquelas imperfeições mundanas, àquelas volubilidades que movem os homens patéticos e as quais – de uma forma até engraçada – eu resisti até agora...

Eu tentei me manter constante, equilibrado. A negativa resposta das minhas próprias ações é que me sentenciou à loucura e ao silêncio deste meu vazio. Agora choro, soluçando baixinho para que ninguém me ouça. Não quero que assistam a um choro de um homem inacabado. O que eles querem é ver a minha ruína desconstruída, não me anseiam edificado para me derrubarem... eles querem a minha ruína incompleta e, como eu disse, desconstruída.

Eu quero morrer consagrado! Mas não subjugado, sujeitado. Quando eu ainda era apenas um sonho, cuidavam em me lapidar. Só usaram a doutrina errada...

Eu nasci em silêncio. Nem o meu choro de desespero foi capaz de fazer minha mãe acordar, e ela dorme ainda hoje nas minhas poucas lembranças. Dorme serena e complacente por ter me dado a sua própria vida. Não sei se é a ciência dos homens ou a ciência de algum deus, se é que existe um; que me permite recordar aquela última lágrima rosada caindo lentamente do seu rosto, e nem me permito buscar uma explicação porque isto me manteve vivo e menos solitário.

Aprendi aos poucos a olhar os vultos à minha volta e a decorar-lhes as formas. Eu, ainda criança, desconfiava de que o corpo era menos importante que a essência, não sabia nomear aquela minha percepção, mas sabia da sua existência e o quão diferente era, sendo apenas um menino sem sonho, sem pretensão, sem vaidade...

O tempo tornou-se era meticuloso até mesmo com as mulheres; estas eram como demônios sedutores, atentavam-me prudentemente. Eu as desafiava, mas me continha e apenas gozava. Chamavam-me frívolo e incapaz de amá-las. Entretanto, eu – narciso – amava-me mais e não tolerava as atitudes cheias de dengos e revezes. Em verdade, preocupava-me mais com as minhas necessidades de macho do que com as sentimentalidades femininas.

E, embora o tempo continuasse a me banhar em cobre; tornando-me ainda mais insondável; eu continuava a coexistir entre estes demônios divinos. Sempre me deixava acompanhar uma garrafa de Bourbon, um cigarro de maconha e por elas. Esta era a minha vida proibida, o que; às margens dos incólumes, era plenamente condenável. Para mim, era uma evasiva, um subterfúgio.

Já tentei buscar no meu passado, na minha infância roubada, alguma explicação que me sossegasse, mas tudo em vão, eu só reafirmava a ineficácia da minha existência.

[...]

Eu seria impetuoso e desleal se dissesse nunca ter sido seduzido por uma daquelas mulheres. Foram poucas que conseguiram se fixar em meus pensamentos. Ora pelo sexo prazeroso, ora pelas viagens promovidas pelo baseado. Não ousaria acreditar que eu as tinha odiado, certamente não me convenceria ser verdade, pois lembro de todas com minúcias, em especial de uma ruivinha – que até entre as pernas não negava-lhe a cor purpúrea. Era Lígia, uma branquinha de olhos esverdeados, estudante – àquela época – do curso de Física.

Mesmo acreditando que esta minha fuga não seria sentida pelas minhas parceiras, eu me preocupava em dissimular um encantamento inexistente. Se era a minha porra que jorrava feliz e quente, não seria insensível ao ponto de não compartilhar uma mentira, não era a minha felicidade que ejaculava, era apenas a minha necessidade de ser macho.

Meu pai sempre dizia que poucos machos eram homens de verdade; e esta afirmativa, confesso, incomodava-me a inteligência. E novamente eu pensava na força do homem versus a força de algum deus. Mais dita pela boca do meu pai, este pensamento nem de longe se fazia inútil.

Aliás, pouco tenho ido ao encontro desta minha velhice. Digo, porque eu e ele – o meu velho pai – somos réplicas inacabadas. Vê-lo é ter uma prévia de como eu estarei daqui a alguns anos, no físico, no caráter e na solidão. Mesmo entrelaçados por pernas torneadas, sentimo-nos presos àquele vazio de antes, mas isso se explica com o tempo e paciência.

O fato de sermos incompletos, como disse antes, não altera em nada a nossa sina, tanto o meu futuro quanto o meu presente eram totalmente previsíveis, bastava olhar-me no espelho em que meu próprio pai se transformara, para ir além.

Não me preocupo com o que ainda há de vir, pois é certo. Eu já aceitei o prelúdio, antes mesmo de envelhecer. Era aquilo, e nada mais. Velhice, reminiscências e morte.

Voltarei à Lígia, o diabo ruivo. Ouvíamos Joplin, fumávamos baseados e transávamos tudo com a mesma intensidade e raiva. Eu tinha que beijá-la somente o lábio, mas me descuidava e acabava por beijar também a alma. E ela, endiabrada, percebia o meu vacilo. Quando eu conseguia me controlar e deixar o meu coração rijo e indiferente, ela sacava. E me castigava com um desdém tirano. Lígia sem dúvidas era o meu maior demônio, e eu tinha que matá-lo.

Texto classificado como conto, porém isto está muito longe de ser breve... por isso, deixo-o classificado desta forma provisoriamente.

Quem escreve é o alterego....