Ilhas

São três da manhã. A essa hora, o bar estava cheio de vazio, assim como ele. Quinto copo de uísque misturado a algumas cervejas e batatas fritas, digeridas rapidamente na esperança de diminuir reviravoltas estomacais. A vã tentativa de levar a bebida à boca resultou em pequenas poças escuras no chão, sob o local em que Fábio estava acomodado. “Inferno. Engulo tanta besteira, mas não tenho capacidade de colocar mais um gole para dentro.”

Havia perdido a noção do tempo em que estava apoiado na bancada de granito, sentado em um desconfortável banco de ferro preto. Abaixou a cabeça e sentiu que tudo rodava a sua volta. Os giros a que se submetia devido ao álcool se confundiam com os que sua vida costumava dar. Esses, geralmente, resultavam em mudanças bruscas, sem que lhe fosse dada a chance de se acostumar com a ideia de transição. O destino, sacana implacável, gostava de lhe pregar peças. Peças pesadas e dolorosas. Dores pelas quais ele não queria passar. “A vida, seu Zé, não vale nada. Ninguém vale nada. Eu também não valho”, desabafou com o garçom, que permanecia ao seu lado, pronto para escutar suas lamúrias.

Seu Zé, mesmo sem entender, acompanhava a ladainha de Fábio, que parecia ter perdido a capacidade de formular frases coerentes. “Fala para ela, Zezinho, que a gente se encontra ainda. Que ela não vai seguir sem mim. Eu sou a força, o escudo e o abrigo dela”, lamentou, enquanto tentava, mais uma vez, tomar outro gole. E esse, assim como os últimos, foi lançado ao chão. “Desperdício é pecado? Eu vou para o inferno por causa disso? Vou por causa dela? Vou para onde, Zé?”

Sua cabeça rodava e doía. Os questionamentos a atormentavam. Desde que saíra de casa, após decidir que havia chegado a hora de seguir sozinha, as madrugadas e a insônia tinham se tornado suas ilustres companheiras. “Três e quinze, e eu não consigo me desligar do mundo.” As poucas luzes da cidade estavam se despedindo. E Marina ainda estava acordada. E permaneceria assim ao longo de mais uma noite tortuosa.

Sentou-se sobre a cama bagunçada por sua agonia, vestiu as sandálias vermelhas e foi até a janela. Ao abrir a cortina, deparou-se com a escuridão da rua, exceto por um ponto luminoso que se destacava na esquina de seu apartamento. Era um pequeno bar, que, horas antes, abrigava bêbados poetas, heróis, apaixonados, sofredores e felizes. Mesmo hesitante, resolveu que deveria ir até lá e conferir se a vida ainda poderia lhe oferecer alguma oportunidade de diversão.

Tirou seu pijama e se olhou no espelho. Reconheceu traços de sua não tão distante mocidade, mas se espantou ao perceber que, sob a aparência jovem, as olheiras se destacavam, demonstrando que, por trás daquela menina, alguma perturbação era notável. Seus lábios finos, antes esticados por belos sorrisos, permaneciam imóveis e calados. Os cabelos negros estavam embolados em um coque malfeito, dando-lhe um ar desleixado.

Vestiu-se de maneira adequada e saiu de casa. A noite estava fria. A neblina forte atrapalhava um pouco a sua visão e lhe trazia uma sensação conhecida. O medo ecoava em seu coração palpitante, ansioso e angustiado. Não se lembrava de qual fora a última vez que se sentiu em paz. A leveza não fazia parte de sua vida há tempos.

Ao chegar ao bar, a solidão invadiu seu peito. Olhou ao seu redor e avistou dois homens. Um era garçom e o outro, algum cliente que havia perdido a noção da hora. O rapaz aparentava dor em sua expressão bêbada. Compadecida, Marina aproximou-se da triste figura e se pôs a observá-la.

“Uma vez, ouvi que a arte imita a vida. Uma merda! A arte imita algo que deveria ser a vida. Se a minha fosse no Leblon, em Copacabana ou em qualquer lugar diferente deste, com todo o luxo que é mostrado, eu estaria feliz, Zé. Mas não. É uma puta de uma farsa”, discursava, enquanto levantava o copo e pedia mais uma dose. Perceptivelmente, as últimas gotas de bebida estavam compondo as poças sob os pés do homem, que, indignado, gesticulava com a resposta negativa do atendente. “Pô, Zezinho, quebra essa. Você é meu parceiro. Vai negar?”

Seu Zé, então, avistou a menina, que ria da situação. Avisou, de longe, que o bar estava fechado e não poderia atendê-la. Fábio virou-se e cumprimentou Marina. “Moça, tudo bem? Pede a ele mais uma dose para mim. Eu prometo que é a derradeira. Depois, eu vou embora”, e a jovem sorriu e o chamou. Cambaleando, o bêbado foi até ela e apertou a sua mão. O garçom, aproveitando a oportunidade, retirou o copo, se aproximou dos dois e, cuidadosamente, apontou a saída, desejando-lhes uma noite tranquila.

Marina, respeitosamente, acatou o pedido de Zé e, acompanhada por Fábio, saiu do local. Enquanto o homem reclamava do péssimo atendimento e da falta de consideração de seu amigo, ela tentava acalmá-lo, dizendo que, provavelmente, não era nada pessoal. “Ele está cansado. Acho que quer ver a família. Você também ia querer o mesmo se estivesse no lugar dele”, e sentou-se no banco de concreto da praça, perto do estabelecimento.

Fábio parou ao lado da moça e, ainda de pé, encarou-a. “Se eu tivesse família, ia querer. Mas, como não tenho mais, opto pela companhia de Zé”, e desviou o olhar. Recostou seu corpo em uma árvore, ao lado do banco.

Uma criança corria atrás de uma bola vermelha. O garoto loiro, de três anos, tinha um olhar astuto. Sua esperteza notória deixava-o ainda mais bonito. Seu pai tentava acompanhá-lo, mas, cansado com o ritmo do menino, preferiu esperar a sua volta.

O pequeno campo de futebol estava localizado ao lado da casa de Fábio. “Venham! Preciso almoçar antes que eu perca todas as minhas forças”, gritou uma mulher, igualmente loira, com a mão sobre os olhos para protegê-los do sol. Ela sorriu de forma doce quando os dois vieram em sua direção.

Essa foi a última refeição em família. Na mesma noite, ele veria Rosana ir embora com seu filho. A esposa havia se cansado de seus maus hábitos noturnos. “Meu filho não merece o pai que tem. Ele tem que crescer longe de você e é assim que vai ser.” Essas foram as palavras finais dela. Ele não escutou mais a voz da mulher.

Já fazia uma semana, e, desde então, Fábio passava as noites ao lado de Zé, seu único amigo. Sentia-se abandonado e fracassado. Seus maus hábitos foram reforçados após a partida forçada de sua família. Não havia sentido em mudar. Não havia por quem.

“O que te faz refletir de modo tão absorto?”, a jovem estava com os olhos inquietos enquanto tentava decifrar os tormentos escondidos por Fábio. Ele sorriu com a curiosidade de Marina. Desde que a esposa partira, ninguém havia parado para questionar seus demônios. Embora tivesse certeza de que ela não o compreenderia, sentiu-se, por um breve momento, acolhido por aquela figura estranha que a vida pusera na sua frente. “Qual é mesmo o seu nome?”

“Eu me chamo Marina. Gosto do nome. É a única coisa bonita da minha vida”, e sorriu. Ela descobriu que o homem que a acompanhava era Fábio e ele também havia se desiludido em alguma esquina. Ambos, agora, conservavam um silêncio cúmplice. Eles sabiam que a quietude era sinal de pensamentos desconexos e dúvidas que gritavam em meio à ausência de palavras.

“Por que desgosta da vida? Tão nova, Marina, menina”, e piscou de forma doce. Pela primeira vez, eles se encararam. Novamente, o barulho do vazio aparecia enquanto os estranhos tentavam decifrar os sentimentos alheios. O caos interior era oposto à paz exterior. Apenas o vento era percebido. A madrugada escondia os sons das ruas, mas não os da alma.

“Porque a vida não respeita idade, maturidade ou sentimento. A gente vive tantas coisas mesmo sem querer”, revelou sob o olhar atento do homem. Em algum lugar da menina, em oposição à calma que ela transmitia, era possível avistar agonias e incertezas. “O que a aflige?”, pensou o homem, que sentia o álcool se esvair vagarosamente de seu corpo, trazendo-lhe o retorno da consciência. Marina o intrigava.

Fábio sentou-se ao lado da jovem, que analisava a avenida. “Essa rua se parece comigo. Está vazia de vida. Só tem a nós, que também estamos ocos”, e olhou para o homem assustado que se postara a seu lado. O observador buscava, por trás das palavras de Marina, o que a levava a enxergar o mundo daquela forma pesada. E ela, desconfiando das intenções de seu interlocutor, apenas sorriu de forma sábia. “Você parece entender tudo a seu redor, menina. Você carrega algo forte que eu não sei o que é”, disse, enxergando um pouco de si mesmo nos traços dela.

Marina sorriu mais uma vez com a constatação de Fábio. Já ouvira a mesma frase inúmeras vezes ao longo de sua vida, mas achava estranho que alguém tivesse percebido suas características com tão pouco tempo de convivência. Mesmo desconhecido, ele lhe trazia a sensação familiaridade e conforto. Ao lado dele, sentia-se à vontade. E sentir-se dessa forma era algo novo para a menina.

“Somos uma ilha, Fábio. Já parou para pensar nisso?”, e encarou os olhos questionadores do seu mais novo companheiro.

“Uma ilha?”

“Sim. Uma ilha. Você, alguma vez, reparou no formato e no isolamento das ilhas? São terras cercadas de grande quantidade de água que pode impedir alguém de chegar ao lugar. Mesmo quem está por perto pode ser obrigado a ficar afastado, seja por vontade própria, pela distância ou pela força da água que empurra para o lado oposto.”

“Nunca tinha pensado nisso. Você se sente uma ilha, Marina?”

“Sim. É exatamente assim que me sinto.”

Os dois se entreolharam. Dessa vez, não havia pergunta a ser feita. Um carro passou na rua enquanto o motorista buzinava e gritava palavras incompreensíveis. No rádio, alguma música alta, de mau gosto, era reproduzida. Mas o barulho não afastou os pensamentos e o isolamento que se abatera sobre os dois. Fábio refletia sobre a ilha de Marina, que pensava na solidão visível de Fábio.

Ela era criança quando se sentiu desamparada pela primeira vez. Era uma festa na qual estavam presentes parentes e poucos amigos íntimos. A comemoração do aniversário de sua mãe era realizada todos os anos e representava uma reunião de pessoas que, supostamente, compartilhavam verdadeiros sentimentos. Mesmo menina, ela já percebia sinais de estranhamento entre familiares. Notava que a olhavam com desdém e, quando a garota percebia, disfarçavam. Sentia-se incomodada com todos os que estavam ao seu redor, mas permanecia quieta. E transformou-se em silêncio.

Depois de algum tempo, seus pais começaram a olhá-la de forma estranha. A sensação de carregar um erro dentro de si aumentava a cada dia. A vida em família tornou-se insuportável quando comentários hostis e risadas debochadas eram ouvidos por Marina. Chamavam-na de exótica. Esquisita. Diferente. Distante. Solitária. Depois de tantos nomes, ela optou pelo seu isolamento característico e abandonou seus sonhos de infância para viver uma realidade adulta para a qual ainda não estava preparada.

“Toda ilha esconde algo em seu interior, menina. O que você carrega em suas terras serenas?”

“Serenidade transformada em tormenta pelo balanço agitado das águas. Creio que esse seja o interior da ilha”, e riu, divertindo também o seu acompanhante. Enquanto conversava, Marina recordava breves episódios de sua infância. Lembrou-se de seu avô, que tentava acompanhar suas histórias criativas e seus movimentos engraçados e desengonçados enquanto ela encenava trechos da vida de seus personagens. Seu Benedito costumava deixar a menina por conta da imaginação fértil. Acreditava em algum potencial que somente ele enxergava. Dos outros, ela via estranheza e distanciamento constantes.

Ainda na infância, ele a deixou. Optou por ir para longe da falsa harmonia em que a sua família vivia. Abandonou os falsos abraços, apertos de mãos, beijos, sorrisos, palavras e afetos insinceros. Depois dessa atitude, Marina falou com o avô somente por duas vezes: na escola, quando ele aparecera de surpresa para lhe dar explicações, e por carta, enviada de uma cidade bem distante da sua. Ele não sabia, mas a menina admirou-o ainda mais depois de seu ato. E reuniu todas as forças para seguir seus passos alguns anos depois.

“O que te trouxe até aqui?”, questionou a moça, abandonando seus pensamentos. Ele a olhou e sabia que, naquele momento, ela veria o interior de sua alma como ninguém jamais ousara enxergar. Pela confiança transmitida, Fábio abriu seu coração. Falou sobre tudo o que o incomodava e sobre sentimentos com os quais Marina convivia diariamente.

“Fábio, sabe o que me incomoda e, paradoxalmente, me conforta? Somos iguais, apesar de termos vividos circunstâncias diferentes. Compartilhamos a mesma impressão sobre a vida e suas surpresas, nem sempre agradáveis. Agora, eu te pergunto: o que podemos fazer com todas as confissões?”

“Você é sempre tão racional? Você parece sentir as coisas de uma forma diferente”, e sorriu para a jovem cuja aparência de menina havia se afastado para dar lugar a uma mulher determinada e forte, apta a enfrentar a vida de forma corajosa. “Eu te admiro. Queria ser como você.”

Marina sorriu e agradeceu com um leve aceno de cabeça. Achava que ele estava enganado a seu respeito, mas não quis cortá-lo. “De onde você tirou suas conclusões? Eu estou tão confuso em relação a tudo, e você me passa certeza.”

“Amanhã, você vai acordar e concluir que eu não estava certa. Nunca estive. Ao amanhecer, você verá que eu continuo isolada na minha impenetrável ilha, assim como você. E ficará convicto de que não existem respostas para os nossos questionamentos. Nem companhia para as nossas solidões. Nem solução para nossos problemas. O que podemos fazer é viver somente um dia, sem esperar o que virá no próximo”, e levantou-se. Marina sorriu levemente e esticou a mão para Fábio, que havia se transformado em um menino após as palavras da jovem.

Ele, então, entendeu o que havia acabado de ouvir. E sentiu que, naquele instante, a vida valeu a pena. Marina conseguira, por um breve momento, lutar contra as correntezas de Fábio e chegar à sua ilha, outrora abandonada. E ele acreditava que tinha deixado marcas nas terras quase intocáveis em que a doce garota estava escondida e isolada pelas furiosas águas que a atormentavam.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 12/12/2013
Reeditado em 18/06/2015
Código do texto: T4609719
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