O Cortejo

Sofia acordou feliz... conseguira pular da cama cedo, conforme programado em seu “relógio mental”. Não era sempre que conseguia cumprir sua meta... sua vida era definitivamente “toda torta”, como ela costumava definir, pois tinha uma vida com muitas facetas, era mãe e pai, tinha um emprego em tempo integral em uma repartição pública, fazia trabalhos extras para “engordar” o orçamento apertado, e ainda possuía uma mente muito criativa, que não a deixava parada... fazia com que ela se consumisse criando... escrevendo, principalmente. Por todos esses motivos, quase não dormia, ou dormia muito pouco.

Mas hoje seu dia renderia muito, pois acordando no horário, conseguiria aproveitar seus momentos mais preciosos, que eram os passados com sua filha, com seus amigos, ou mesmo fazendo pequenas tarefas do dia, como tomar um banho ou sentir o vento bater em seus cabelos. E o dia começou bem humorado, conforme o estado de espírito do primeiro raio da manhã.

Após levar sua filha na escola, foi para a academia, e mal havia começado a andar na esteira, viu passar um cortejo. “Alguém muito importante deve ter falecido”, pensou. Eram carros muito bonitos, com flores e coroas muito caras e coloridas, podia ver que as pessoas dentro dos carros estavam em trajes muito elegantes também.

A imaginação de Sofia iniciou uma nova exploração em seus sentidos... começando a ponderar o sentido daquele cortejo... Qual seria o sentido de todas aquelas flores, de toda aquela gente reunida... só pra dizer Adeus?

Imaginou o valor de cada coroa de flores, o valor também de cada presença ali, pois pelos carros, poder-se-ia imaginar que eram pessoas muito, muito ocupadas, que provavelmente, não tinham tempo de se reunir em uma ocasião “normal”.

E o que Sofia gostaria para seu próprio cortejo? Ela tinha ficado tão absorta em suas elucubrações, que tinha se esquecido de que estava andando na esteira já fazia mais de meia hora. O suor pingava em seu rosto, mas ela nem se detinha a esses meros “expectadores” de seus pensamentos.

Nessa orgasmia mental em que se encontrava, perguntas e respostas vieram à sua mente: “Qual é o objetivo em ter meus amigos velando meu corpo a noite inteira, se o que mais quero é tê-los comigo durante minha vida, nas minhas horas de aflição, quando mais preciso de um ombro para chorar, nas minhas horas de vitória, quando preciso de companhia para celebrar, nos momentos de decepção, quando preciso de uma mão amiga e de uma palavra de consolação, quando estiver perdida nos labirintos da vida ou descaminhos, precisando de alguém que me puxe à realidade, quando estiver aflita, alguém que me dê uma notícia, enfim... preciso de amigos para me velarem a vida!”

“Qual é o objetivo de ter meus amigos comprando coroas de flores com mensagens bonitas? Quero que meus amigos me mandem mensagens por e-mail, por carta, no Natal, na Páscoa, no meu Aniversário, ou mesmo um recado, só para dizer olá... para lembrarem-me de que tenho amigos próximos, distantes, que mesmo que não estejam presentes no meu dia-a-dia, estão pertos do meu coração. Presentes da minha alma. São relíquias. E ao invés de comprarem coroas de flores, que se esvairão no cemitério, junto aos corpos mortos de tantas idas vidas... plantem em seu jardim, ou num vaso bem à vista, uma flor bem colorida, e todos os dias, ao vê-la ou regá-la, olhe bem pra ela e diga: Essa flor foi plantada pra minha amiga Sofia... assim, ao mesmo tempo em que lembram de mim, é como se me mandassem um beijo, no pensamento de um beija-flor.”

“Qual o objetivo de deixarem seus trabalhos para saírem em seus carros em um cortejo até o meu enterro? Prefiro, ao invés disso... que ainda em vida, separem um tempo para me ver, visitar-me, ou mesmo combinarmos uma saída alegre, cheia de bate-papo e bebida, para rirmos à vontade, contarmos causos de vida, piadas, falarmos de alheia vida... ou mesmo de nossos problemas, passado e planos para o futuro... o que importa, é estarmos juntos. Pois de que adianta, em meu funeral, olharem meu inerte corpo, já sem vida? Já não serei mais eu, será pedaço de carne, osso e fluidos migrantes... minha alma lá já não mais estará, portanto, meus amigos, aproveitem que cá neste mundo ainda estamos, e vamos nos reunir em cortejo à vida!”

“E se um dia, eu vier a deixar este mundo, e numa cova qualquer de algum cemitério estiver meu corpo inerte enterrado, e num dia comum ou especial vocês tiverem a intenção de deixar-me um agrado... primeiro retornem aqui e leiam este recado: ‘Vá à livraria mais próxima e compre um livro ao seu bem amado. Faça uma dedicatória, colocando nela toda sua alma. Feche-a assim: Um dia, uma poeta escreveu que é preciso amar a vida. Não escreveu nenhuma novidade. A única novidade é que ela colocou em prática o que dizia. Poderás colocar um EU TE AMO também, caso o queiras, pois sempre é muito bom dizer isso a quem amamos...’”

Sofia sorriu, satisfeita. Estava pronto seu réquiem! Olhou para a esteira, havia andado uma hora, sem ao menos perceber... uma poça de suor e de alívio em ver que sabia do que é feita a vida ali resplandecia. Alongou-se, com o corpo em maresia.

Um verdadeiro poeta é aquele que vive sua própria poesia, pensou. E a partir daquele dia, sempre que sabe da morte de alguém, conhecido ou desconhecido, compra um livro, e o oferta a alguém que ama. Sempre que sente saudades de alguém que já se foi, telefona para apaziguar a saudade de alguém que ainda está vivo. Pois, para Sofia, a vida é para ser vivida no presente, aproveitando cada momento com as pessoas que ainda fazem parte da nossa existência e dos que se foram, restam as lembranças dos momentos felizes, que os mantêm eternos na memória.

Caroline Schneider
Enviado por Caroline Schneider em 26/04/2007
Reeditado em 26/04/2007
Código do texto: T464480