Matryoshka

Eu não tive mãe. Quero dizer: tive, é lógico, pois nasci, apenas não a conheci, nem outra imagem que a substituísse. Talvez por isso compreenda de fato a necessidade dela por aquelas bonecas - que alguns auto enganados creem ser apenas uma espécie de fixação infantil, ou, talvez, projeção inversa de si mesma, já que ainda não tem filhos.

Saber coisas assim sempre fez com que eu me sentisse mais forte - e o poder deste mundo e deste século não depende de mães ou de brinquedos: apoia-se em informação, especialmente na do tipo exclusivo e intransferível.

Ocorre que descobri a senha do e-mail na primeira tentativa. Eu soubera do perigo por pura dedução, do mesmo jeito que adivinhei o código, tão simples que depõe contra sua inteligência e aparente malícia. Nos últimos tempos ela vinha tentando se desviar de encontros e momentos casuais, seja falando feito maritaca, seja chorando baixinho após o sexo, ou indo tomar banho sozinha – a tola, como se águas solitárias pudessem limpá-la dos meus sonhos!

Então, no início acessei a conta duas, quatro, dez vezes ao dia, até que me convenci: a maioria das mensagens era inofensiva – publicidades, contatos de trabalho e dos colegas de curso da pós graduação, convites para participar de redes sociais... Apenas na segunda semana cedi à compulsão de verificar os itens enviados, e ali, outro alívio – até me dar conta de que a pasta 'lixeira' vazia era sinal flagrante de culpa. Os rascunhos, por sua vez, causaram certo pânico: dois para mim, quase com igual teor, outro para ele. Um desastre quase anunciado; como impedir mais esse acidente?

Aliás, saberá ele o quanto ela ama as bonecas? 'Babushkas', corrigiria ela, 'verdadeiras obras de arte!'. Mas algo – um certo 'sens de la raison et d'être' – me diz que esse não é um dos assuntos corriqueiros em seus encontros.

A coleção se compõe de sete conjuntos, oriundos dos muitos cantos do mundo, tantos quantos são os sentimentos de lealdade numa mulher. Há um grupo de dançarinas havaianas, a maior quase em tamanho natural e contendo perfeitamente outras seis, posicionado à entrada do apartamento; em dia de festa ela costuma espalhar as moças pelo hall e sala, então elas ocupam incoerentemente mais e mais espaço, mas os convidados apreciam e elogiam, e ela se sente tipo uma obstetra coreógrafa, creio. Outro conjunto impressionante são as cinco criaturas – clássicas e originais, raras, mesmo – fabricadas em madeira nobilíssima e quase extinta, pintadas à mão, e cuja variação de tamanho só é perceptível quando desembrulhadas de si, mas, seja em apogeu único ou desmascaradas, causam tanto deleite que, um dia, alguém chorou quando as conheceu.

Tantas, todas lindas, mas a série preferida dela é mantida no quarto, na prateleira acima da mesa do computador, muito mais digna de luz e ar do que recebe; essas bonecas ela mandou confeccionar por um artesão talentosíssimo, as quatro com rostos diferentes, copiados de fotografias antigas da bisavó, da avó, da mãe e de si quando criança – todo o galho materno conhecido e celebrado, e que me custaram tanto que ainda penso em prejuízos...

As mãos que criaram as bonecas da família se acidentaram. Será que mãos que artificiam aquele tipo de brinquedo são mesmo suaves? Ou o cálculo correto e necessário à consecução da engenhosa ideia impõe firmeza demasiada? Arte é planejamento, também? Eu perguntei, mas ele ficou mudo. Eu insisti, mas ele se negou. Então...

Então, as minhas babushkas prediletas não poderiam ser senão as três de cristal sólido e transparente - uma para cada ano que vivemos - cujo material não permite encaixes ou enganos, sendo a menor do tamanho dum polegar, e cada uma com um centímetro mais que outra; minhas damas estão dispostas sem ordem certa na mesa de centro da sala cheia de almofadões e livre de televisão. Ela diz que as bonecas não são russas de verdade, não, porque lhes falta justamente a forma quase mágica de contenção, esconderijo, reducionismo e ilusão.

'EM HIPÓTESE ALGUMA MANTENHA CONTATO COM A CONTA ANTIGA': é parte do texto que mandei a ele, através de nova conta que criei como se fosse ela, orientando-o sobre 'desconfiança quanto à segurança de nossas conversas'. E mais: 'deletei todas as mensagens'. Mas os rascunhos sobreviviam e isso era preocupante; então surrupiei seu telefone, substitui o chip por um com número quase igual de tão parecido e copiei a agenda no novo número, no meio tempo em que mandava e-mail da conta fake para ele, alertando para não atender ligações de 'certo' número, porque o segredo estava por um fio, sim...

Preocupação desigual me causa o lado vazio da cama, quando acordo de repente: alegando insônia e vontade de não me incomodar, tem me espoliado das ritmadas respirações que sempre me acalentaram. Eu fico o resto da madrugada entre desejo e asco do sono, porque também é dele que vem uma voz doce, baixa e cantante – e quase posso adivinhar o verso seguinte – e quase posso sentir o cheiro de lavanda antiga, fugindo do frasco, bojudo como o seio que um punho pequeno alcança – e isso tudo acontece justamente antes que eu acorde, de repente...

Já disse que não lembro de ter tido mãe - fosse o contrário, talvez uma mão suave, mas firme, houvesse me guiado por caminhos menos escondidos, mais retos; no mesmo caso, lembraria nem que apenas da réstia de delicadeza que precede a calma de cada criança faminta, suja, choraminguenta.

O alento que sinto em saber que ela pode até se esconder dentro de muitas de si, mas outro artefato de cristal – a tela do computador – me indicará seus tamanhos e contornos, mecanismos e recônditos – ah, é pura justiça poética! Aliás, dizem exatamente isso das vinganças russas.

Mas a mim interessa mais o conjunto em âmbar, marfim, nácar rosa e lápis-lazúli, com olhos de turmalina negra, com que a presentearei mais tarde, uma boneca especial para cada ano de relacionamento.

Creio que o sentimento será como o de ter mãe.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 06/02/2014
Reeditado em 10/01/2017
Código do texto: T4680762
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