A primeira dança

“Mãe, você não pode se isolar dessa maneira. Já se passaram cinco anos. Seu silêncio não faz bem a ninguém. Na verdade, ele atormenta.”

“Não tente me chamar para a realidade. Para a sua realidade. A que você construiu sem a minha vontade, sem o meu consentimento.”

“Eu desisto!”

A última frase de Virgínia ficou solta no ar. Mais uma vez, a ausência de respostas era sinônimo de angústia para a mulher. O olhar perdido de sua mãe a assombrava diariamente. “Onde foi que nos perdemos?”, questionava-se. Sabia que a mãe estava cansada e queria o silêncio. “Virgínia, não seja tola. A pouca voz que me resta será poupada. Eu não quero mais pronunciar palavras vãs e esperar frases prontas e clichês. Eu me dou o direito de permanecer dentro de mim”, disse, outrora, Maria.

Desolada, Virgínia deixou a casa onde morou durante a infância. Ao sair, sentiu um alívio em seu peito. O lugar, antes querido, tornara-se um ponto de encontro com todas as dores que trazia. Seu passado gritava quando ela pisava nos primeiros degraus da escada que dava acesso à porta da frente. Os demônios escondidos do mundo a pegavam pela mão quando ela abria a maçaneta e a guiavam em um passeio infernal. Em cada canto, as tristes lembranças acenavam e gargalhavam de maneira uníssona para ela, fazendo com que todos os medos infantis aflorassem. Temia, sem ser capaz de admitir, pela sanidade de sua mãe.

Recordava o começo da juventude e todas as confissões adolescentes que fizera à mulher. À época, não havia amiga melhor e mais presente do que ela. “Tantas conversas jogadas fora. Tantos assuntos em comum. Queria saber para onde foi tudo isso”, pensava, mas sabia que as respostas desejadas não seriam dadas. Dessa vez, Virgínia saíra da casa e não mais voltaria. A mãe conseguira o que almejava há tempos: a solidão de seu silêncio.

Na sua quietude, Maria insistia em segurar as lágrimas que lhe brotavam. Olhava para os lados, na tentativa de se apegar a algo, mas não encontrava nada. Ninguém. E não esperava que as pessoas fossem capazes de compreender o que a levara até aquele momento de solidão plena. Sabia que, mesmo que tentasse expor o que a transformara em sombras, haveria total dificuldade de entendimento. Mesmo os mais queridos a criticariam. E ela não queria. Dera-se a chance de não mais aceitar o que lhe era sugerido. As reclamações alheias não seriam fontes de questionamentos acerca de si mesma. Não desta vez.

Tinha chegado a uma fase da vida em que poderia decidir sozinha, sem que houvesse interferência de terceiros. Deveriam respeitar sua vasta cabeleira branca. E, assim, resolveu que levaria seus dias como desejava.

“Você morreu para o mundo. Acha que vale a pena?”

“Não sei o que vale a pena e não quero buscar respostas, Virgínia”. As brigas com a filha eram constantes. Entendia a sua vontade de mostrá-la a vida e suas supostas maravilhas, mas ela não queria enxergar. Colocou um véu diante de seus olhos apenas para esperar a hora final, que insistia em demorar.

Na estante, ao lado da cama em que passava grande parte dos seus dias, uma foto preta e branca conservava sorrisos sinceros. Maria, seu marido Celso e a filha estavam sentados no banco do parque, na frente da casa onde moravam. A menina, com cinco anos, carregava um sorvete, cuja calda sujava a saia branca. Os pais a olhavam com carinho enquanto os lábios se esticavam, dando lugar à expressão de felicidade. A fotografia fora batida neste exato momento e, apesar de tantos anos, era fonte de genuína alegria.

O relógio indicava que a tarde estava chegando ao fim. Eram quatro horas. Como todos os dias, pontualmente, a mulher se levantou da cama, pôs um vestido preto, arrumou os cabelos e saiu de casa. Andou duas quadras e chegou a um portão alto e enferrujado. Na placa, a indicação de que aquele era o lugar que representava o fim de tudo. Maria, então, respirou fundo e entrou. Caminhou por um longo corredor sombrio e, chegando ao fim, dobrou à esquerda. Parou em frente a uma pequena escultura de um anjo. Como sempre, perguntou a si mesma o porquê de aquela imagem estar ali. Para o seu ceticismo, o sexo dos anjos era o questionamento mais imbecil. Anjos não tinham sexo. Anjos não eram. Essa era apenas mais uma das invenções do homem para tentar levar a vida como se houvesse algo além. Para Maria, o inferno, assim como o céu, eram criações para castrar e adestrar a humanidade. Na verdade, ambos formavam o dia de um ser humano, que é uma mescla de bons e maus momentos.

Ajoelhou-se ao lado de um jazigo. Ali, dentro do buraco, estava Celso. Visitava o túmulo diariamente desde o dia em que perdera seu marido. A morte o tirara brutalmente e o transformara em estatística. Celso foi vítima de um acidente de carro. Naquela tarde, Maria conheceu o fim em vida. Ao longo dos anos em que viveu com o companheiro, sentia-se protegida e querida. Ele a amara e nunca deixou dúvidas quanto ao sentimento que nutria pela esposa. Quando o homem partiu, ela se sentiu deslocada do resto do mundo. Tornara-se distante da realidade. Faltava uma parte de si. Faltava algo que trouxesse alegria. Faltavam sorrisos, conversas e agrados. Nem mesmo a filha conseguiu suprir a ausência. A luz que havia dentro dela se apagou. E não havia forças para acendê-la novamente.

Para Maria, a ida ao cemitério era a única coisa que ainda tinha valor. Sabia que estava mais perto de Celso, e isso a confortava. Nesses momentos, ela o tratava como se ainda estivesse vivo. “Trouxe a sua música favorita, meu querido”, contou ao vento, enquanto ligava um pequeno rádio preto, cuja bateria era recarregada com o intuito de oferecer ao marido um pouco de alegria. A voz de Frank Sinatra, cantando “The way you look tonight”, ecoou pelo vazio dos corredores que guardavam as sepulturas.

“Ah, meu amor, eu encontrei nossa filha hoje. Ela continua teimosa. Não entende o quanto sinto a sua falta e não quero buscar você em outros sorrisos. Por isso, as lágrimas brotam em meus olhos, mesmo que eu lute contra elas”, explicou ao marido, enquanto secava o rosto com os dedos envelhecidos. “Mas não se preocupe. Estar ao seu lado é sinônimo de alegria para mim.”

Maria, então, levantou-se e girou no ritmo da música que colocara. Cantou alguns trechos e sorriu para o ar. A canção foi a primeira que ouviu ao lado de Celso. Foi em um baile que costumava frequentar. Lembrava-se do momento em que ele a convidara para dançar. Os dois conversaram brevemente enquanto os pés os guiavam. Dois-para-cá-e-dois-para-lá. Sorrisos sinceros. Celso a observava de longe há tempos. Maria, por sua vez, cedera aos encantos do futuro companheiro quando viu seus olhos castanhos pela primeira vez. Dois-para-cá-e-dois-para-lá. Palavras tremidas saíam de suas bocas. Mais sorrisos. Histórias engraçadas misturadas às risadas. Dois-para-cá-e-dois-para-lá. Vagarosamente, os lábios se aproximaram e se uniram. Os pés, agora, seguiam o ritmo do suave beijo. Olhos fechados e pensamentos descontrolados. Coração acelerado. Dois-para-cá-e-dois-para-lá. Afastaram-se e, envergonhados, observaram as pessoas ao redor. Encararam-se novamente e, desde então, permaneceram juntos.

“Essa é a minha história de amor favorita”, e ajoelhou-se mais uma vez, como sempre fazia. Conversou mais um pouco com o marido. Em sua cabeça, ela sabia todas as respostas que ele dava e ambos mantinham um diálogo são. Maria aproveitava para lhe falar sobre a solidão que fora forçada a aceitar depois da morte brusca. Celso respondia que Maria não precisava se sentir só, afinal, ele continuava por perto e não a abandonaria. A mulher sorria com as palavras inventadas do marido. Para ela, essa era a sua verdadeira realidade.

“Senhora, o cemitério vai fechar agora. Queira me acompanhar, por favor.”

A voz de Frank Sinatra, que fazia parte da visita, foi calada. “Até logo, meu querido. Não precisará me esperar muito. Em breve, estaremos juntos novamente”, despediu-se com um beijo lançado ao acaso. Enquanto seguia o homem que a tirara de sua paz, pensava sobre a vida. Agradeceu a gentileza do rapaz e saiu do cemitério. O portão estava sendo fechado quando ela olhou para trás. Seu coração tamborilou, e Maria teve a certeza de que nada seria como antes a partir daquele momento.

Voltava para casa a passos lentos, olhando para a lua que acabara de surgir entre as nuvens já escuras. A beleza do grande satélite sempre a encantara. Quando criança, o seu sonho era morar lá. Uma vez, pedira ao pai que comprasse um avião e a levasse até a lua. Prometeu que pagaria todas as despesas e seria uma ótima menina. O homem sorria com a esperteza da pequena Maria, que não entendia o motivo do sorriso. Em sua mente, era um pedido tão simples. Por que ele não a atendia?

Chegou a casa e acendeu as luzes. Normalmente, voltava para o quarto e se deitava, ansiando pelas quatro da tarde do dia seguinte. Mas, hoje, seria diferente. Ligou novamente o rádio e a voz de Frank Sinatra preencheu os espaços vazios. Sem perceber, Maria esboçara um pequeno sorriso. Sentia-se bem e plena. Olhou ao redor e reconheceu, em cada canto, trechos de sua trajetória. Viu Virgínia correndo pela casa para abraçar Celso, que acabara de chegar do trabalho. Viu, também, o bolo surpresa que fez para o décimo quinto aniversário da filha. As fases da sua vida passaram diante de seus olhos, que conservavam um ar sombrio.

Foi até a estante de seu quarto e pegou a foto da família. Voltou para a sala, abriu um pequeno móvel marfim e encontrou diversos álbuns. Reuniu as principais fotografias e as colocou em um grande envelope. Pegou uma folha de papel e escreveu um breve bilhete para a filha, que encontraria o maço. “Olhe o passar do tempo. Analise meus olhos e traços e descubra a resposta para suas questões. Espero que, mesmo sem a pronúncia de uma palavra, você seja capaz de compreender o que se passa em minha alma.”

Lacrou o pacote e o colocou em cima do sofá, onde Virgínia costumava deitar quando a visitava. Foi até o rádio e colocou novamente a canção. Aumentou o volume, pegou o aparelho e abriu a porta da rua. Caminhou alguns metros e parou em cima da linha do trem, que estava deserta àquela hora. Crianças corriam pelas ruas, jogavam bola e gritavam. Sentia vontade de pedir que se calassem, mas não poderia atrapalhá-las. Não faria isso. Não mais.

Ao longe, ouviu um ruído conhecido e avistou uma pequena fumaça. “Someday, when I'm awfully low, when the world is cold, I will feel a glow just thinking of you and the way you look tonight”. A voz de Frank Sinatra se misturou a uma buzina ensurdecedora. Pessoas gritavam para a mulher. Maria sorriu e esperou. Agora, era a sua hora.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 08/02/2014
Reeditado em 12/06/2015
Código do texto: T4682548
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