O plano cartesiano (janeiro de 2014)

Eu vivia a contar os dias para o final de semana. Quanto mais passavam as horas, mais contente batia meu coração. O sábado e o domingo significavam para mim o descanso da jornada semanal de quarenta horas de trabalho árduo, como acontece com outros milhões de brasileiros, mas também representavam a oportunidade de rever Lúcia. Encontrarmos-nos.

Lúcia não estava acessível para mim durante os cinco dias úteis da semana: trabalhava de advogada junto à prefeitura até muito tarde da noite, enquanto eu prestava meus serviços de arquiteto para uma firma particular sediada no outro lado da nossa pequena cidade. Eu não estava em casa antes das onze horas da noite, e ela também. Falávamos por telefone.

Em um desses dias de semana, em especial um daqueles dias em que a lembrança de Lúcia se materializava em minha lembrança, dei para rabiscar em papéis avulsos o nome dela. Neste dia em especial, dei para fazer garatujas com o nome de Lúcia em um plano cartesiano. Desenhava o plano com as retas x e y e, em diversas partes do plano, escrevia seu nome.

Para cada plano cartesiano, uma localização diferente. É como se desejasse, em um plano cartesiano, levá-la ao céu; enquanto em outro baixava inteiramente Lúcia ao inferno. Oscilava assim com Lúcia mais para cima, ou embaixo da reta, de acordo com a recordação do momento de minha amiga confrontado com a cruz do plano cartesiano.

Não é difícil de entender essa minha excentricidade: Por horizonte, a terra. É o eixo x, ou eixo das abscissas, que representa a ideia de espaço. Na vertical, no eixo y (ou eixo das ordenadas), cortando pelo meio o eixo x está representado o tempo, que rasga ao meio o horizonte terrestre. Mas, isso é mais parte do meu entendimento do que verdades pré-estabelecidas.

No meu curto entendimento, pensamento raso, resumia assim no plano cartesiano não só Lúcia, mas também a vida em geral: acima, para o lado do eixo y, tinha o horizonte cerúleo e o perfume etéreo do espírito, representados nos primeiros e segundo quadrantes. Para baixo, no terceiro e quarto quadrante, estava lá marcada a terra, bruta matéria, própria do eixo x.

Em uma cidade pequena não havia lugar para aulas de filosofia, portanto o que depreendia da filosofia advinha da minha própria vida. Advinha da vivência quotidiana e de alguns livros comprados nos sebos em viagens a uma cidade maior, vizinha. Sempre me encantou Descartes, lutando contra as superstições que surgiam de uma má compreensão da matéria.

Mas, a descoberta de céu e inferno em sua cruz dos eixos x e y, isso dizia mesmo respeito ao meu entendimento de sua criação. Ficava encantado por horas a observar o plano cartesiano e, a partir disso, punha nomes sobre essa cruz, lançando a alma de meu escolhido ao céu ou ao inferno. De fato, nunca deixei alguém em definitivo amaldiçoado, assim jogado para o diabo.

Salvei da danação eterna tantas vezes Lúcia quantas posso me recordar. Se me traía – cogitava eu – em uma folha de papel desenhava em letras desenhadas e coloridas seu nome sobre o eixo x, um pouco abaixo, para indicar seu pecado. Um pouco acima do eixo x, de acordo com o eixo y, eu representava a vitória de Lúcia contra o pecado.

Nunca excedi o contar de dez traços nos eixos, e Lúcia, por exemplo, jamais ganhou uma nota maior de menos sete em direção ao inferno. Por poucas vezes, no entanto (eu me lembro), dei-lhe nota nove no quesito “virtudes”. Acho que, admito, sou muito duro com Lúcia e acho que se devem a isso os meus irremediáveis achaques de ciúmes. Posso ser injusto, às vezes.

A cruz de Jesus? Nela, se faz convergir o infinito. Sim, há esperança para Lúcia, há sempre a certeza da salvação dela do diabo, na representação do plano cartesiano, enquanto essa representação é também a representação da cruz do mártir Jesus. Dessa forma,ainda que fosse verdade, e me traísse Lúcia em pensamento, o destino lhe reservaria na cruz a salvação.

Rabiscar planos cartesianos tornou-se uma obsessão. Entre um desenho ou outro de um projeto de arquitetura eu tinha que rabiscar minhas cruzes cartesianas. Podiam ser umas dez nos piores dias: rabiscava escrevendo o nome de alguém (nem sempre tinha de ser Lúcia o foco de minhas atenções), e depois de uma hora imerso em pensamentos jogava o papel fora.

Caso alguém pudesse me surpreender, fazendo desenhos no papel milimétrico, poderia até acreditar que se tratava de mandinga. Macumba. Mas não, meus nomes no plano cartesiano estavam muito mais para desenhos da minha profunda imaginação, colados à cruz de Jesus. Mais acima, eu elevava alguém ao céu. Abaixo da reta x, aproximava alguém do diabo.

Essa obsessão não era uma doença, mas uma necessidade de cultivar um senso de humor. Acho até que sou inteligente, porque pessoas inteligentes tendem a ser pessoas espirituosas. Havia muita espirituosidade e talvez nenhuma espiritualidade nas garatujas cartesianas: eu montava incansavelmente meus planos cartesianos como forma de lembrar-me de alguém.

Nós, que somos os escolhidos na arte de amar devotadamente uma pessoa, precisamos de um papel milimétrico (de forma a sermos justos milimetricamente), e caneta. Funciona como sopa de letrinhas para uma criança: a gente fica brincando, e fazendo perguntas a si mesmo um ser humano vai longe ao elaborar respostas. Depois, é apostar na punição ou na salvação da cruz.

Seguindo minha pura imaginação, atravessei os anos. Anos de devoção a Lúcia, é bom lembrar: sábado e domingo passávamos sempre juntos e, se possível de mãos dadas. Passeávamos de manhã pelo pomar da cidade e, pelas noites, pelos bares e restaurantes. Tínhamos alguns amigos que nos acompanhavam, dificilmente estávamos sozinhos, o que era muito bom.

Nem desconfiavam da minha – vamos por assim dizer – vida dupla. Assim como com o nome de Lúcia, também já havia me deparado com o nome de um ou outro amigo sobre o plano cartesiano. Via de regra, só figuraram na cruz aqueles a quem amo. Pessoas especiais merecem pensamentos especiais, de acordo com a imagem que porventura faça deles e delas.

O Plano Cartesiano me é muito benfazejo: lembranças que guardo através dos anos e anos fazem de mim uma pessoa bem-aventurada. Sou recompensado diariamente em minha vida, pois cultivo o emprego que gosto, amo a amiga escolhida, e tenho amigos sinceros. Desta forma é que prometo, a quem possa interessar a excentricidade, felicidades. É sincero.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 19/02/2014
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4698207
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