FAMÉLICOS

A idéia não tinha sido essencialmente dele, mas ele foi quem tivera coragem em apresentá-la à comissão. Esta a analisou e viu que, apesar de arriscado, a sugestão de invadir as terras da outra margem do rio era muito atraente.

As terras eram devolutas e ninguém, supunha-se, iria reclamá-las. Para aquelas cinqüenta famílias, o local seria a salvação de suas vidas – trabalho árduo, mas, muita fartura!

Mas havia um problema a ser resolvido. A floresta que se estendia a perder de vista era, segundo lenda corrente, dominada por espíritos malévolos, e o imaginário da maioria daquela gente simples, seria o obstáculo a ser vencido.

- Não se deve bulir com os espíritos da floresta.

- A vingança deles é terrível!

- O que o senhor sabe sobre isso, “seu” Tonico?

- Seguinte, há muito tempo, coisa de dez ou doze anos atrás, alguns garimpeiros cismaram que encontrariam ouro nos riachos que cortam a mata. Atravessaram o rio em vários barcos e aportaram na prainha, do outro lado. Quando todos já haviam desembarcado seus pertences, e se preparavam para adentrar a floresta, algo de muito esquisito aconteceu...

- O que foi que aconteceu, “seu” Tonico?

- Seguinte, os trinta e tantos garimpeiros começaram a gritar. Eram gritos desesperados. Então, as peles de seus rostos começaram a se soltar e desaparecer no ar. Braços e pernas desmembrados iam e vinham no ar, até ficarem puros ossos. As cabeças estouravam espalhando miolos por todos os lados. Os troncos se abriam e tudo que tinha dentro de cada um deles – estômago, coração pulmão, enfim, tudo, tudo mesmo – saltava no ar e desaparecia.

- Credo! Mas como o senhor sabe de tudo isso?

- Seguinte, um garimpeiro, meu filho! Ele tinha levado a mulher, e só ela escapou daquela desgraceira toda. Foi ela, essa zinha, quem, depois de dias, avisou a polícia de uma cidadezinha aqui perto...

- E aí, “seu” Tonico, a policia acreditou nessa história macabra?

- Seguinte, não, claro que não! A mulher estava como que louca, os cabelos desgrenhados, os olhos esbugalhados, magra como um caniço... Parecia mais um esqueleto ambulante. O sargento, que era o comandante do destacamento, expulsou-a da delegacia. Como que ele, o Delegado de Polícia local, poderia acreditar numa maluca de pedra? Ela não sabia nem o próprio nome!..

- É... Acho que até eu não acreditaria!

- Pois é! Então, a mulher saiu pelas ruas. Ninguém nunca a tinha visto por ali. Andando de um lado pro outro, ela repetia sempre a mesma história. Em poucos dias a cidadezinha toda já sabia do que tinha acontecido lá na floresta. A população local ficou assustada, pois todos conheciam os causos antigos...

- Brrrrr!.. E então? Pensando bem, é melhor a gente procurar outro lugar...

- Deixa de bestagem, homem; isso aconteceu foi há mais de dez anos. Cê não viu o “seu” Tonico falando?

- Tá bom, tá bom... E então, “seu” Tonico?

- Seguinte, o padre Olegário, que, aos sábados, chegava para preparar a missa do domingo foi imediatamente informado do assunto. Aí, o que fez ele? Então, ele foi à procura da mulher do garimpeiro que, por graça de uma boa alma cristã, recebera guarida e se recuperava das agruras recentes. Ela, então, contou ao homem de Deus tudo, tudo o que acontecera. E, então, o padre, com a experiência adquirida em longos anos de sacerdócio, percebeu que ela não mentia e nem estava fantasiando os acontecimentos. Havia um mistério a ser desvendado. Por isso o padre Olegário reclamou à autoridade policial, providências urgentes. Aí, o sargento Tobias teve que se mexer, afinal ele não queria ficar mal com a Igreja, e o padreco tinha prestígio! Ele que não seria besta de desatender o padre.

- O sargento Tobias era meio preguiçoso, né?

- Seguinte, não era não! Eu o conheci. Era gente boa, boa mesmo. Todo mundo gostava dele. Ele ajudava as pessoas, ia às missas, resolvia as querelas com paciência e sabedoria. Mas, nesse caso da floresta, o sargento não acreditou, porque parecia mais com uma lenda, e, ainda por cima, relatada por uma pessoa não muito boa da cabeça... Mas agora, com a interferência do padre, ele viu que a coisa mudara de figura... É, ou não é?

Enquanto “seu” Tonico contava a história, as pessoas do acampamento foram se juntando ao seu redor. Ouviam atentos e conjeturavam em voz baixa. Seria uma boa idéia atravessar o rio? E as crianças, coitadas! Já pensou? Sendo estraçalhadas?! Cruzes!

Os meninos, que até a pouco jogavam uma pelada, deixaram o folguedo e se juntaram ao grupo de ouvintes.

- Meu pai também conta caso de assombração, assim...

- O meu também...

- Fiquem quietos, seus cabeçudos! Esse caso é de verdade!

- É?!...

A tarde chegou quase que imperceptível, e já ia se arrastando pela boca da noite, que a engolia sôfrega. Cinco ou seis mulheres se afastaram do grupo. Precisavam preparar a janta, que só seria servida à luz das fogueiras.

O líder do grupo, Ambrósio, observava a reação de cada uma daquelas criaturas sob sua coordenação. Várias vezes ele pensou em voltar para a capital. Mas estava, agora, tão envolvido com o Movimento, que, se o deixasse, sentir-se-ia um desertor covarde.

- Continua, “seu” Tonico. O que os meganha fêiz?

- Seguinte, o sargento Tobias, com certeza, pensou: não custaria nada verificar o local. Seria até bom para acabar com aquelas superstições e desmistificar a floresta com seus demônios. Então ele ordenou aos soldados que trouxessem a mulher novamente à sua presença. Precisava registrar a ocorrência e traçar um plano de ação...

- Plano de ação?! Mas ele não botava fé na história...

- Seguinte, você tem razão. Mas ele estava resolvido. Levaria todo o seu efetivo, seria uma operação militar. Seus homens estavam se enferrujando e, então, aquela manobra na selva serviria de exercício. Os soldados não corriam riscos e, por isso, estavam todos animados com a missão. Toda a cidade viu quando a patrulha saiu em marcha, com o sargento à frente em sua postura estudada de grande marechal. Secundava o destacamento, um grupo de dez civis voluntários que procuravam imitar a marcha brancaleônica à frente.

- “Seu” Tonico, quantos soldados de verdade tinham mesmo?

- Três.

- Três?!..

- Seguinte, o sargento e mais três praças..

- É... eles precisavam mesmo de reforço.

A noite chegou e, a ela, se juntou a fome. O grupo se dispersou.

Ambrósio, preocupado, recolheu-se á sua cabana. O dia seguinte seria de decisões. E só ele entendera quando “seu” Tonico falou da marcha brancaleônica...

E o velho Tonico voltaria amanhã. Ele precisava continuar a história que, afinal, fazia parte da estratégia...