A queda

“Visto de cima, o mundo parece bonito”, pensava V. Dentro de sua cabeça milhares de vozes se contradiziam, algumas sugerindo “a queda”, outras implorando pela “redenção”. O vento que soprava era morno e grosso, trombava na gente sem desviar. O horizonte exibia todas as cores: o cinza chumbo dos prédios, o azul sufocado do fim de tarde, os amarelos e laranjas do sol que se punha. Mas para ela não existiam mais cores. Na verdade mal conseguia se lembrar de tê-las visto algum dia.

Ela olhou para o precipício esperando que o abismo a olhasse de volta. Nada.

O vento começou a soprar mais forte e por um segundo os fantasmas desapareceram. V se sentiu criança outra vez. A roupa azul e branca da escola, as meias de Educação Física, o cabelo ondulado preso num rabo de cavalo. Viu a sí mesma caminhando de mãos dadas com a mãe. Primeiro dia de aula,escola nova. Sentiu o coração disparado e a cabeça cheia de inseguranças infantis. Então V entrou novamente na sala de aula. Agora duas dela, a pequena temerosa, ansiosa por ser aceita e a mulher amarga e desiludida. Tudo começou a desandar ali .

Se lembrou das músicas que as crianças cantavam pra ela. Em roda, girando alucinadas, impedindo que ela pudesse fugir:

- Gorda baleia, saco de areia, da bunda vermeia!

Engraçado que até aquele momento ela não sabia que era isso, GORDA, nem que isso fosse tão horrível a ponto de impedir que qualquer criança da sua faixa etária brincasse com ela. Durante todo o período escolar V não teve um amigo sequer. Comia o lanche dentro do banheiro, com os pés para o alto escorando a porta, impedindo que alguém a visse ali. As vezes a tristeza salgava o lanche.

Um barulho. “Seria alguém?” e, mesmo que fosse, ninguém nunca a enxergava. Era tão transparente, que se alguém a pudesse enxergar ali, sentada na beira do abismo, de certo não veria uma mulher inteira mas somente os contornos sutis do que nunca veio realmente a ser.

As lembranças se misturavam e ficava cada vez mais difícil resistir ao impulso de se deixar cair.

V. ajeitou o corpo pesado deixando as pernas pra fora da pedra. Embaixo o mar espumava, chocando-se contra o paredão de rocha. O azul amarelado do céu era substituído pelo chumbo da noite que nascia; o vento ficou mais frio e leve quase que acariciando o rosto molhado pelas lágrimas.

Mário, porque me lembrar dele agora? E a voz de Mário surgiu, substituindo as outras : Não dá pra ficarmos juntos em público, eu gosto de você, mas talvez seja melhor não nos vermos mais! Mário foi o primeiro e único homem que ela amou. Teve outros, em sua maioria tão bêbados que seriam incapazes de reconhecer a própria face caso as vissem em um espelho.

O vento ficava cada vez mais frio e forte. Cortante, fazia com que as ondas quebrassem barulhentas. O mar.. nunca pude desfrutar de um dia de verão. Mas o oceano gritava por ela, a desejava. As ondas pareciam chamá-la, espumando contra as pedras num balé caótico e ameaçador.

Então, quase sem querer, em um movimento desajeitado de quem nunca ficou a vontade com o próprio corpo, sem nenhum segundo de arrependimento,ela caiu. Ao conscientizar-se da queda simplesmente fechou os olhos e ouviu pela última vez os gritos que a acompanhavam. Pela última vez as crianças correndo em volta dela, pela última vez viu Mário ir embora, os últimos segundo de olhares atravessados, nem mais uma piada estúpida. Nada.

O último ato de uma tragédia anunciada, seu grand finale. O barulho da queda, o coração ainda batendo lentamente. O ar se esvaindo dos pulmões até que todo o resto de vida desaparecesse.

O mar recebeu o corpo cansado, abraçando-o e envolvendo-o em sua espuma branca e macia, até que só existisse o silêncio.

Meri Jaan
Enviado por Meri Jaan em 20/05/2014
Reeditado em 09/09/2015
Código do texto: T4813223
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