O mundo invisível

Numa casa noturna da Rua Augusta, na madrugada de um sábado agradável, uma mulher e um homem conversam ao se conhecerem por acaso, ela esperava um amigo atrasado e ele apareceu do nada. Com sorrisos nos rostos e sincero interesse na conversa alheia, foram se apresentando aos poucos, para quebrar o gelo.

- Eu sou jornalista, e você? - Disse ela.

- Eu já fiz muita coisa, mas agora... Agora eu não sou nada, ou melhor, sou poeta. - Ele respondeu em tom de piada.

- Mas o que você faz para ganhar a vida? - Insistiu ela, rindo.

- A minha vida já estava ganha desde a barriga da minha mãe. Eu apenas fui sobrevivendo, um dia depois do outro. Acabei de abandonar um emprego que me matava de estresse, até passar do limite das minhas forças, embora soubesse que a vida já estava perdida desde que ganhei ela. Como não consigo mais fugir dos problemas, escrever poemas é só o que me resta, é a minha última ação de resistência ao infinito que me espera. - Ele declamou esta parte, como se estivesse no teatro, mas sem falar tão alto.

- Mas você ganha algum dinheiro com poesia? Com certeza já se sente artista, mas e a barriga... - Continuou ela, interessada nas atitudes daquele maluco desinibido e poético, como se ela soubesse que ele estava fazendo tipo, e se divertisse com isto, foi dando corda para o assunto.

- Eu quase terminei meu primeiro livro, escrevi muitos textos, letras de músicas, mas você sabe como é difícil. Agora, com a massificação do consumismo, pouco se dá valor ao mundo invisível, não recebi nem um valor simbólico, nunca na vida. Mas conquistei muitos sorrisos, que é o que me importa mesmo. - Terminou a frase com o peito erguido, sorrindo, sempre quis ser um palhaço porque adorava sorrisos.

- É, a maioria das pessoas sequer passa os olhos em poesia hoje em dia, nem que você ponha o melhor verso na cara delas. Deve ser mesmo difícil, mas por que você ainda insiste? O que é este mundo invisível? - Continuou ela, curiosa pela próxima resposta.

- O mundo invisível é o não palpável, é o pensamento humano, do qual as ideias são as sementes. As ideias vagam livres, brotam nas pessoas de formas variadas, e comigo vêm em palavras concatenadas. A ideia é a origem, o fundamento e a razão do pensamento. A ideia é cada conhecimento que nos guia através do mundo dos sentidos e sustenta toda a filosofia. - Disse em tom de homenagem, mas depois desanimou-se. - Mas este mundo é invisível e para muitos não existe. Eu só insisto na poesia porque eu acredito que eu existo, e ainda quero provar isto.

- Ah, mas é lógico que você existe... - disse ela sorrindo, ao desviar o olhar para a mesa onde estava o seu drinque - Você está aqui do meu lado, oh...

Foi uma surpresa e tanto, quando, ao levantar os olhos, ela percebeu que não havia ninguém ao seu lado. Era impossível que ele tivesse saído assim tão rápido, ou se escondido nesta fração de tempo. Olhando ao redor reparou que um grupo de pessoas comentavam que ela estava falando sozinha, e estavam a olhando esquisito.

Hesitou por alguns segundos para se recuperar do susto, e só pensou em uma coisa que pudesse fazer naquele momento. Sentou-se, enfiou a mão na bolsa, e retirou dela uma pequena agenda, que postou sobre a mesa, trêmula.

Começou a escrever poemas.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 08/06/2014
Reeditado em 23/08/2015
Código do texto: T4837421
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