Você é um rapaz bonito

Chove fino, segunda-feira á tarde. Estamos caminhando em algum lugar da zona norte paulistana. Digo a ela que existe um parque a dois quarteirões. Pergunta se é legal. Respondo que trata-se das ruínas de uma antiga e tenebrosa penitenciária. Avistamos árvores e mais árvores, uma maior do que a outra. Como elas cresceram tão rápido? Eu costumava matar o tempo perambulando sozinho por alí, e sempre via uns casais no maior love repousando nos belos e bem cuidados gramados. Prometi a mim mesmo que algum dia faria a mesma coisa... Estar na presença desta fígura ímpar é mais que um milagre. Carla puxa um assunto bem interessante, ela é boa nisso. Cinema, filosofia, religião, música. A conversa é simples e rara, estamos perdendo a noção do tempo. As nuvens possuem cinquenta tons de cinza e reparo uma delicada gotícula despencar dos céus sob a grossa sombrancelha de Carla... Aproximo meus lábios aos seus, e descubro que ela também gosta de mulheres. Aprecia os homens, porém, não tanto quanto mulheres. Desenha-me sua namorada em palavras, se 10% do que menciona for verdade, essa garota precisa urgentemente se casar comigo, ou melhor, trepar comigo... Quando pergunto o que acha de minha aparência, solta um leve suspiro... Você é um rapaz bonito... Um rapaz bonito... Alguma coisa nos faz mudar bruscamente de assunto, algo sobre povos antigos. Você sabia que antigamente os romanos selavam acordos com beijos? Ela continua falando, mas so tenho ouvidos e olhos para seus lábios carnudos, côncaves e declives. Sugiro um beijo para selar nossa provável amizade, ela propôe apenas um selinho. Minha língua encosta o céu de sua boca e ela resolve pausar. Uma vez que a mesma admitiu ter gostado, novamente me aproximo, desta vez com um pouco mais de leveza. Nossas línguas se abraçam como um casal que jamais se abraçou. Escuto alguém berrando, um berro chato e repetitivo. A chuva aumenta. Alguém realmente está nos chamando. Fingimos que nem é conosco e continuamos a ação. Alguma coisa me faz olhar pro lado. Um guarda está plantado ali com um guarda-chuva na mão. Só então percebo o estrago que essa chuva causará. Ele diz que fecharão o portão daqui a cinco minutos. Cinco minutos? Ora, tempo suficiente para um último beijo... Mas ela desiste, diz que não quer traír a namorada. Pergunto se há algum desconto em trair-lá com homem, traição é traição de qualquer jeito, até mesmo com travesti. Engulo seco e espero meu pau murchar para então me levantar também. A chuva finalmente cai e ela me olha de um jeito estranho. Não entendo muito bem o que se passa na cabeça das mulheres. Com lésbica é diferente? Levanto-me e tento agir naturalmente enquanto meu pau diz adeus. Sugiro a biblioteca, ela tem vôo hoje a noite para Belém do Pará, insisto na biblioteca. A três metrôs da biblioteca avistamos um cartaz colado na porta "Fechada para manutenção". Enfim, pelo menos isso reduzirá o risco dela perder o maldito vôo. Lembro do quão gostoso foi aquele beijo e tento um repeteco. REPROVADO. Menos um ponto no jogo. O metrô está lotado e sentido zona leste como sempre é o pior. Damos a volta na estação afim de embarcamos num vagão um tanto quanto humanizado, o tiro sai pela culatra. Entramos no pior de todos e sinto-me como um imbecil. A viagem é rápida, porém, cinco minutos ali dentro equivalem a cinco horas no inferno. Prometo-lhe que da próxima vez estarei de carro. Não tenho carro, não tenho grana, se ficar comigo é porque gosta. Rolando psirico na esquina do hostel. Duas brahmas, cigarros. Estamos num barzinho legal. Ela diz que bebo muito rápido, concordo erguendo a lata e despejando o útimo gole como se fosse uma cachoeira. Digo-lhe que seu olhar é o que mais me chama atenção. Um olhar penetrante e vazio e simples e inteligente e assassino. Poderia matar qualquer um com esse olhar. Ela finge que nem é com ela, mas percebo um leve sorriso desabrochando no canto de seus lábios. Eu poderia ficar aqui sentado e mamando essa cerveja durante todo o resto dessa vida. Nossas vidas são estranhas, concordamos. Concordaos também no quão ridículas são nossas existências, assim como a existência de quase todos os demais humanos também. A vida pode ser boa em alguns momentos, ainda mais se estiver em boa companhia juntamente com cerveja e cigarros. Só falta isso, cigarros. Ela tira um malboro vermelho da bolsa como se estivesse lendo a minha mente. Ligeira, e fulgaz. Sinto-me um principiante ao seu lado, um aspirante de adulto. Sei que sou um menino, apenas um menino barbado esperando alguma brecha, esperando que a vida finalmente aconteça e esperando alguma mulher também. O fogo crepitando rapidamente nos faz lembrar de festa junina. Estranho lembrar disso logo no início do ano... Início? Tá de sacanagem? Indaga-me com a boca esfumaçada. Tomo um gole e confirmo com a cabeça. Diz que sou louco, pois já estamos em abril e abril não é início de ano. Que diferença faz? Reprimo. Foda-se os dias, as semanas, os meses e os anos. O tempo é criação humana, e tudo o que é criação humana é uma merda. A verdade é que nossas vidas não tem valor algum. Nossas vidas só tem valor quando criamos e fazemos o tal valor surgir. Fora isso, é mero cumprimnto de tabela. Como um time de futebol no final do campeonato braileiro lutando apenas para manter-se na 13ª colocação. As cervejas e os cigarros acabaram. A larica desperta e entramos com bastante relutância no shopping. Existe algo mais louco do que shopping? Um lugar indubitávelmente repleto de loucos. Uma gaiola com ar condicionado. Tudo bem, é assim que a banda toca. É preciso esperar meia hora por uma esfiha, é preciso esperar um mês pelo salário, e ás vezes é preciso esperar a vida inteira por uma mulher. E ás vezes é preciso esperar mais que uma vida para momentos efêmeros e antológicos como estes. A esfiha está deliciosa, acho que valeu a pena. O mesmo batom impregnado em seus guardanapos, está presente em minha boca. Sinto uma sensação agradável de feliidade ao me dar conta disso... Os minutos voam e é preciso ir embora... Ela arruma as malas depressa, tem mania de hora. Nunca chega atrasada em lugar algum. É apenas uma mala cheia de roupas. Apenas uma mala. Mas ninguém detesta malas e roupas e roupas e malas, detesta? Eu detesto malas, só as malas mesmo, e os malas também. Enfim, é preciso estar com a saúde mental em dia para guiar uma mulher atraente pelas ruas úmidas paulistanas, arrastando uma mala com a mão direita e segurando um guarda-chuva com a esquerda, tudo isso apenas por um beijo, na verdade, mais um beijo. É cada coisa que a gente faz... É, amigo. Quando tem mulher envolvida na parada as coisas se invertem como se fossem panos de prato confeccionados em tecido boliviano. Graças a Deus o metrô está vazio, e quando eu digo vazio quero dizer, não cheio. Acho que o horário nos favoreceu... Como se chama um motorista de metrô? "Próxima estação, portuguesa-tietê, acesso ao terminal rodoviário. Ao desembarcar, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma, evite acidentes."

Bem, estamos sentados em frente sua plataforma de embarque. Penso continuamente em tentar outro beijo. Seus lábios fazem meu pau manifestar-se. Tento me conter. Parece impossível, não conseguirei. Ela nada diz, como se esperasse que eu disesse algo. O que eu poderia dizer? Cada palavra deve ser friamente calculada. Cada palavra movimenta uma peça no xadrez, um bispo, um rei... Uma vírgula mal empregada e, XEQUE-MATE. GAME OVER! Ela elabora jogos mentais e eu perco todos. Um silêncio abrasador. Olho para o teto como se implorasse por alguma intervenção divina. Seu ônibus chega. Eu digo alguma coisa estúpida e não obtenho sucesso. Ela se levanta. É uma longa viagem, uma enorme viagem, porém, uma bela viagem. É hora de partir. Diz isso com um semblante indexadamente enigmático. Algo ficou no ar. Estou fora de lugar. Jesus, eu preciso agir rápido! Minha mão esguerda ergue sua mão esquerda apoiando-se em meu ombro esquerdo. A mão direita ligeiramente traz sua nuca de encontro a minha face. Minha mão esquerda toca sua cintura. Nossos lábios se encontram... Adeus, Carla.

Vai demorar um pouco pra eu esquecer disso...

Afinal de contas, ela viajou de ônibus ou de avião?

cristiano rufino
Enviado por cristiano rufino em 13/06/2014
Reeditado em 16/06/2014
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