A Carona

Ela já havia tentado todas as desculpas e, mais uma vez, não conseguiu recusar a carona. Alegou que iria tirá-lo do seu caminho, que de metrô chegaria mais rápido, mas nada adiantou. Ele insistiu tanto, que seria grosseria recusar.

E, afinal, nem havia um motivo concreto para recusar. Ele era seu pai e, para todos os efeitos, estava sendo apenas gentil deixando-a na casa da amiga para estudarem.

Mas ela sabia que não ia ser só isso. Já eram anos de prática nessas caronas.

Há anos, ele aproveitava todas as oportunidades em que estavam longe da mãe e dos irmãos para usá-la. Despejava nela toda a carga de frustração, covardia e omissão. Quanto mais longa a viagem mais constrangida, humilhada, ela se sentia.

A abordagem era sempre a mesma: melada, insidiosa, vulgar - “Você já é uma menina crescida, entende essas coisas”; ou “Você sabe como as coisas em casa são difíceis para mim”; ou, ainda, “Eu confio em você e tenho certeza que não vai contar nada a ninguém”.

Agora, na adolescência, o constrangimento virara nojo. Naquela tarde, ao saltar do carro, ela não agüentou. Correu para a casa da amiga e pediu para tomar um banho. A desculpa foi a menstruação, que descera sem aviso.

Ela se sentia tão suja! Precisava se lavar, precisava se livrar do fluido ácido das palavras do pai, das confissões íntimas e obscenas, que lhe entraram pelos ouvidos e agora a corroíam.

Todos os orifícios são violáveis. Todos são um caminho para o objetivo final do estuprador: marcar no cérebro a sua posse.

Cansada de tanto se esfregar, ela arriou no chão do banheiro, vencida: o pai impotente havia escolhido o caminho mais cruel de assédio, aquele que não deixa marcas visíveis e que nada consegue limpar.

Ela quis ser surda. Ela quis ser virgem.

Ana Rodrigues

Ana Rodrigues
Enviado por Ana Rodrigues em 07/09/2005
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