233-UM ESPIÃO POR DUAS COROAS-Humor

As festas se sucediam nas quentes noites cariocas. Os passeios aconteciam todas as tardes, pelos locais mais pitorescos e pelos pontos freqüentados obrigatoriamente por todos os turistas. O casal real recebia todas as homenagens com naturalidade, pois estava acostumado a tratamento de excelente qualidade, em consonância com a importância de seu país no mundo globalizado.

O rei e a rainha de Virtualândia, simpáticos e afáveis, aceitavam, efusivos, as homenagens que lhes eram prestadas. Os grandes empresários, departamentos do governo, o mundo diplomático, todos se agitavam e esmeravam-se em proporcionar ao casal os melhores dias e as noites mais alegres.

Não sem razão: Virtualândia era o país mais importante do mundo, pois detinha as maiores reservas de Energia Virtual, indispensável para a movimentação do mundo moderno, onde a indústria, o comércio, a produção e os negócios se tornaram quase que totalmente virtuais. Para a movimentação desse mundo, o tipo de energia ideal era também virtual. A virtualite era o mineral que se transformava rapidamente em energia virtual, como num passe de mágica, por processo inventado pelo cientista Ahl-Virtu-Hal. Por coincidência, um súdito de sua majestade Lautri V.

A visita do Rei Lautri V e da rainha Zera-Efêmera foi um sucesso desde o primeiro dia. Programada para quinze dias no Rio de Janeiro e outra quinzena percorrendo o “País do Futuro”, foi abruptamente interrompida por lamentável acontecimento.

A elegância dos reis virtualandenses era destacada sobremaneira pelo uso constante das coroas reais em todas as ocasiões de aparecimento público. Nos passeios, nas festas, nos espetáculos teatrais e até mesmo nas gafieiras e barracões de escolas de samba, sempre elegantérrimo, o casal não deixava de ostentar o símbolo de sua real grandeza. Lautri V usava a coroa de delicadas filigranas do mais puro ouro entrelaçando fabulosos diamantes e outras pedras preciosas. A rainha Zera-Efêmera mantinha sempre sobre os mais extravagantes penteados a delicada coroa de prata, igualmente ostentando, entre laços e enfeites que faiscavam à mais tênue luz, pedras preciosas de imensurável valor.

Estava o casal real em visita à Escola Bandeira Verde de Bananeira, apreciando as evoluções dos passistas e desfiles de fantasias riquíssimas, quando, num determinado momento, o rei sentiu que sua cabeça estava mais leve. Atribuiu a sensação às caipirinhas que havia tomado. Mas, ao olhar para a rainha, percebeu a falta.

— Cadê sua coroa?

Zera-Efêmera levou a mão à cabeça e constatou que estava sem a coroa. E viu que o rei também estava descoberto.

— Você também está sem a coroa! Vai ver, elas caíram sem que a gente percebesse.

Dado o alarme, estabeleceu-se a grande confusão. O desfile foi interrompido, os seguranças fecharam os grandes portões do imenso barracão e o povo ficou excitadíssimo. Muitos queriam achar a coroa. A maioria queria mesmo era sair dali, devido ao estranho fenômeno popular de contrariar uma determinação, no caso, de que ficasse todo mundo trancado até que as coroas fossem localizadas.

Inútil procura. Constatou-se que as coroas não tinham sido perdidas no recinto, e, sim, habilmente roubadas, retiradas com a mais exímia delicadeza, das cabeças reais. Foi o pandemônio. Os portões, trancados, foram derrubados pela multidão insana. A reação popular, considerada normal em estádios de futebol e em boates do país, constitui-se em mais um motivo de vexame para as autoridades encarregadas da segurança dos ilustres visitantes virtuais.

O prosseguimento da visita foi cancelado. Considerando-se humilhados e ofendidos, O Rei Lautri V e a rainha Zera-Efêmera voltaram à Virtualândia sem as coroas. Agora, mais do que nunca, eram reis virtuais.

Lautri V não acreditou, nem por um momento, que as coroas seriam encontradas. E, se encontradas, tinha certeza, jamais seriam devolvidas. Lembrou-se do que havia acontecido com a Taça Mundial de Futebol, roubada debaixo da maior segurança e jamais encontrada. Boatos correram de que fora fundida para aproveitamento do ouro. Suas coroas provavelmente seriam desmanchadas, retiradas as valiosas pedras preciosas e fundidas, desaparecendo para sempre os delicados desenhos, as filigranas suaves trabalhadas no ouro e na prata, tão representativas de sua realeza.

— Quero que uma equipe de nosso serviço secreto entre em ação e localize as coroas. — Determinou ao chefe do Serviço de Inteligência de Virtualândia – o SEVIER, que havia colaborado com os americanos na tentativa de localizar armas de destruição em massa no Iraque.

— Você mesmo, Al-Kibe Assad, chefiará essa missão. E dou-lhe um prazo. Se dentro de uma semana, você não me trouxer as coroas, será enforcado com todas as honras de praxe.

Sem perder um momento, pois o prazo era curto demais, partiu Al-Kibe Assad, liderando três outros espiões, na missão ultra-secreta.

A polícia da Cidade Exmaravilhosa já tinha algumas pistas, todas elas indicando que as coroas estariam em poder de Euescapo do Buquê, famoso traficante de drogas, que se elegera deputado estadual e era atualmente Secretário de Drogas & Medicamentos da cidade. Em conversa com um competente detetive — Jaime Bonde, cuja senha era “o que não toma o bonde errado” — obteve algumas sugestões.

— Olha, Kibe, o caso é o seguinte: as coroas já foram pro beleléu. Se estiverem em poder do Euescapo, devem estar em algum cofre forte na Suíça. Se foram pro “desmanche”, nem existem mais. Minha idéia é você agradar o seu rei, com outras duas coroas.

— Jaimas Bondas explicar melhor sua plana. Al-Kibe non entenderr suas aconselhas.

— Negócio seguinte. Temos aqui na cidade coroas às pampas, de todos os tipos. Coroas enxutas, para agradar a qualquer homem. Seja agradar um milionário, um presidente, um ditador, até mesmo um rei ultra-mega-poderoso como Lautri V.

— Onde estar essas korroas? E kuanto kustam?

— Não são coroas para serem compradas. São lindas mulheres, já entradas em idade, com seus quarenta, cinqüenta anos declarados. Aqui nós as chamamos de coroas. São maduras mas bem aproveitáveis.

— Você dizer eu levarr duas mulherres velhas parra o rei?

— Não é bem assim, Al-Kibe. Elas são idosas mas bem valiosas. Famosas. Trabalham na televisão, aparecem todos os dias para o povo. E são conservadas, bonitonas, elegantes.

— Komo komprar essas korroas? São muito karras?

— Olha, Assad, comprar, comprar mesmo, é difícil. Elas têm contratos com as emissoras de TV, com a TV-Mundo, a TV-Vitória, ou a TV-Banda. Não há como comprá-las. Sugiro que você as seduza com promessas mirabolantes e leve-as para o rei.

— Prrromessas. Komo, prrromessas?

— Geralmente, essas coroas são burras, se deixam enganar por qualquer um. Mas são umas loiras espetaculares!

A conversa entrou pela madrugada. Os conselhos de Jaime Bonde se transformaram em planos detalhados. Quando o dia amanhecia, Al-Kibe Assad já tinha estabelecido seu plano de ação.

Antes de terminar o prazo, Al-Kibe Assad desembarcou no aeroporto de Konfins, na magnífica capital de Virtualândia. Como os leitores sabem, a cidade de Konfins foi construída especialmente para ser capital do Reino Virtual e localiza-se num local distante de tudo e inacessível por via terrestre. O palácio imperial Al-Vorad está no meio de um lago artificial, que por sua vez está no meio do deserto. É claro que a construção de Konfins foi dispendiosa ao extremo e sua manutenção custa rios de dinheiro, que fluem diariamente do tesouro real, pois a riqueza virtual do reino é inesgotável.

Quando a porta do avião especial se abriu, surgiu uma mulher espetacular: de porte elegante, a tez muito clara, os cabelos loiros escorrendo em cascatas douradas por sobre os ombros. O sorriso aberto, acenando para a multidão abaixo e para a família imperial, sentada em um camarote especialmente construído para a ocasião. Desceu com aprumo e agilidade (apesar de sua idade) a escada forrada com tapete vermelho. Os altos-falantes do aeroporto transmitiram informações sobre a figura exuberante:

— Eis que chega à capital real de Konfins a sensacional senhorita FEBE. Grande coroa convidada especial para uma temporada em nossa capital.

Foi seguida por outra loira, esta de cabelos curtos, enormes óculos escuros e igual desembaraço. Sendo mais miúda que a anterior, apresenta mais vivacidade e desceu a escada aos pulinhos, exibindo notável vitalidade.

— Agora, súditos de Lautri V, eis a magnífica KAXUXA, a segunda coroa da temporada.

O rei, embora presente à recepção das duas coroas loiras, ficou abismado com a explicação dada por Al-Kibe Assad para a presença das duas coroas no palácio de Al-Vorad.

— Acho que não entendi bem. Você, Al-Kibe, está me trazendo essas duas mulheres em substituição às coroas que me foram roubadas na Cidade Exmaravilhosa?

— Sim, excelência. Elas são as coroas mais bonitas, mais dinâmicas, mais queridas daquele país.

— Vou fingir que não sei dessa trama toda.

— Mas, amado rei, elas vieram espontaneamente. Vão ficar com o senhor. Em troca, pedem apenas algumas horas na TVV: a Televisão Virtual de Virtualândia.

— É um absurdo. Isso está me parecendo gozação. Mas não vou perdoá-lo do castigo que lhe prometi: a forca será seu destino, pela sua incompetência e desplante em me trazer essas duas coroas pelas coroas valiosas que me foram roubadas.

A rainha Zera-Efêmera, contudo, foi solidária com as coroas estrangeiras. Sentiu que todas elas estavam na mesma situação: ela própria, já estando próxima de comemorar sessenta anos, era um coroa real. Por que as duas loiras também não poderiam ser?

Convenceu o marido a deixá-las permanecer em Virtualândia, e em duas horas conseguiu para ambas horários nobres na TVV. Adquirindo familiaridade com as duas coroas tropicais, acabou por adquirir certo traquejo, e em breve não eram só as coroas loiras que brilhavam na TVV. Uma bela morena, de olhos amendoados e lindo sorriso de alvíssimos dentes, antes escondidos pela burka, agora aparecia em toda sua exuberância de coroa oriental, exibindo toda sua sensualidade em espetáculos de dança-do-ventre, tão em moda no mundo todo.

O Rei não teve como renegar as presenças das coroas douradas e a transformação da rainha em coroa morena. Se não ostentava mais a coroa metálica sobre a cabeça, não tinha por que reclamar das performances das duas coroas, que passaram a ser sua propriedade. De dia e de noite.

E Al-Kibe? Confinado em um calabouço da Fortaleza de New-Karand-Iru baluarte da defesa da capital real, aguardava o dia de sua execução. A sorte, contudo, estava ao seu lado. Sua astúcia em resolver, de forma tão original o mistério do roubo das duas coroas (graças à idéia de Jaime Bonde, seja registrado) teve sua recompensa. As três coroas — Febe, Kaxuxa e Zera — a saberem da desdita do ex-chefe do serviço secreto, penalizaram-se de sua sorte.

As três trabalharam, cada qual à sua maneira, para o alívio da pena de morte que pairava sobre a cabeça de Al-Kibe. Febe, maliciosa, muito sexy, franca e sincera, com incrível dose de bom senso, pediu a liberdade do espião. Kaxuxa, espevitada, acostumada a resolver os problemas com o poder de uma sedução juvenil, quase infantil, pediu ao rei que esquecesse a sua mágoa para com Assad. E Zera, a morena que, entrada em anos, continuava sensual e sedutora, conseguiu, com enleios e carícias, que o rei colocasse um final feliz à trama toda:

— Tá bom. Esqueçam o que falei. Vamos fingir que não perdemos as coroas. Troco as duas coroas roubadas pelas coroas presenteadas.

Perdoado, Al-Kibe não quis continuar no Serviço Secreto. Foi ser o Diretor de Jornalismo da TV-Virtual, onde, com a ajuda das três coroas, alcançou prestígio internacional.

ANTONIO ROQUE GOBBO =

BELO HORIZONTE, 15 DE JULHO DE 2003

CONTO # 233 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/06/2014
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