MEMÓRIAS FODIDAS, FODIDAS MEMÓRIAS

Estava sentado na janela olhando os carros passarem ao longe com a mente tão cheia quanto banheiro químico em carnaval e tão vazia quanto a de um ex-BBB (com algumas exceções raras) quando de súbito percebi que algumas nuvens me espiavam naquela madrugada fria e escrota de junho, lá de cima tudo deve parecer bonito ou ainda mais bizarro do que aqui embaixo. De companhia tinha apenas duas garrafas de uísque 12 anos e alguns cigarros, meus únicos amigos para aquela noite amarga, mais uma para atualizar meu curriculum vitae extenso delas, no toca discos herdado de vovô Leonard Cohen reclamava da vida, todos sempre reclamando da pobre coitada. O mundo anda tão sorumbático e nossa vida tão opaca que reclamar vira arte de alto nível, seja música, pintura, artes cênicas, livros e até uma punheta bem batida, já imagino o título da obra “Não estou resfriado, mas o papel higiênico está viscoso” e enquanto minha mente viajava, Cohen permanecia reclamando escondido dentro daquele vinil. Nunca gostei muito dos chips musicais, mp3s nem streaming da atualidade, então tenho uma bela coleção de vinis que juntei ao longo dos anos, "um belo disco de vinil com todas suas ranhuras e chiados é insubstituível" já dizia meu velho avô, e essa foi uma das poucas vezes em que concordei com ele. Enquanto vegetava, musicas nostálgicas impregnavam o ar com lembranças de um tempo bom que agora só recordo em histórias, uma vida simples, com simples problemas, felicidade genuína.

Uma lágrima rolou lenta e suave sobre o meu rosto meio velho e meio jovem quase imperceptível, se o vidro da janela não refletisse o cansaço em meus traços não me daria conta, passei as costas das mãos no rosto e retirei o liquido inoportuno com certa violência e peguei a garrafa que estava sobre minha escrivaninha no meio de um monte de papéis com infinitos cálculos de probabilidade e contas a pagar, tratei de encher o copo até transbordar um pouco e molhar minha mão, completamente indiferente aquilo levantei o copo, alinhei com a lua um pouco acima da minha cabeça e observei através do maldito a lua amarela e deformada, que vista linda, foi uma das coisas mais bonitas que eu já havia tido a sorte de ver, eu queria ir pra aquele lugar deserto amarelo, disforme e em constante metamorfose alucinada, lembrei de meu grande amigo, o copo, que estava entre mim, o uísque e a lua que estava longe de ser o que eu enxergava através do vidro e de seu conteúdo. Perdi mais alguns segundos observando e por um instante pareceu que o mundo era eu, o copo de uísque e a lua, mas meu momento foi interrompido por lembranças, impiedosas, impetuosas lembranças, sacolejei a cabeça tentando afasta-las em vão, então entornei o liquido amarelo goela abaixo, sem gelo e sem pudor, misturado as lagrimas que já passeavam pelo meu rosto juntamente com o maço de cigarros, meus melhores amigos e que segundo os médicos daqui alguns anos seriam a causa de minha morte, mas fodam-se, ao menos não ficaria só. Olhei bem para a advertência do ministério da saúde no verso e ri! Uma risada debochada como se o próprio ministro pudesse me ouvir lá nos planaltos de Brasília ou em algum casarão a beira mar na Bahia fodendo duas garotas de 13 anos com os amigos enquanto sua esposa cheira cocaína da piroca de um negão na riviera francesa. Peguei um cigarro, encarei-o durante alguns milésimos de segundo, acendi e traguei profundamente e engasguei com a quantidade excessiva de fumaça venenosa, talvez eles tenham ouvido minha gargalhada e mandaram um sinal, levantei o dedo médio e mandei um sinal de volta para eles e naquela cadeira segui sentado sussurrando as letras das canções depressivas as quais ouvia, fumando meus cigarros, e bebendo minha garrafa de uísque. Após algumas horas no meu estado deplorável adormeci derrubando a bebida, o fumo apagou, esgotei meu limite pela noite e daquele jeito torto, jogado sobre a cadeira sonhei e pior que ter lembranças de um passado bom é sonhar com ele de forma tão real que parecesse possível viajar no tempo.

Após algumas horas de vagabundo adormecido os raios ultravioletas encontraram o seu caminho até minha janela, porra, como queria ser capaz de desafiá-los sem ter que desviar meus olhos humanamente sensíveis às luzes cortantes que cegam, sempre buscando uma brecha qualquer na camada de ozônio para queimar tudo, Sol velho covarde que estapeou a minha cara como se eu fosse um boneco de treino de MMA em auge de carreira, mas ainda assim eu permaneci dormindo até o cheiro de álcool emanado de minha camisa e de meu próprio corpo penetrar minhas narinas e conseguir me acordar, no que resultou em uma bela golfada em minha velha calça de moletom, mais uma mancha pro meu álbum, “essa tem formato de urso, preciso me lembrar de anotar”, pensei. Lá estava eu novamente, Akila Tommas, mais um perdido em algum “apertamento” isolado entre os prédios altos e mal tratados da cidade que outrora viveu intensa o brilho da simplicidade no interior do Rio de Janeiro sentindo pena de si mesmo e de todos que estão vivos presenciando a realidade putrificada que fabricamos, mais lindo que isso impossível.

Enquanto ainda tomava coragem para levantar do sofá macio (sem sucesso) vi pelas ruas os restos que a madrugada louca e selvagem deixou para trás, era cedo e lá embaixo entre o emaranhado de ruas, bêbados e senhoras, trabalhadores e vagabundos se misturavam, uns pensando no horário da missa, outros em pornografia dos tipos mais sórdidos e absurdos, uns pensando no próximo investimento para a casa própria, outros pensando em como arrecadar um tostão qualquer para o investimento em curto prazo no bar mais próximo e mais barato.

As prostitutas já haviam abandonado o serviço, mas só de olhar para as ruas sujas abaixo de minha janela, sabia que o aroma de seus perfumes baratos ainda empesteavam o bairro com o cheiro do pecado que para muitos é o aroma do conforto, um tipo irônico de “salvação” para ambos os lados. Todos querem se livrar de alguma coisa, aliviar-se de um dia estressante de trabalho ou apenas a necessidade carnal, do outro lado, apenas o dinheiro e um pouco de interpretação caprichada importa, evoluída de acordo com a experiência no ramo do entretenimento, aliais, nada me convence de que essas profissionais não dariam ÓTIMAS atrizes, se estudassem um pouco a arte da dramaturgia…