O desfecho.

As folhas da grande árvore na frente da casa farfalham na presença do vento. Uma ou outra folha, marrom e cansada, se joga do galho e cai na calçada de cimento tornando-se parte do tapete vegetal que a reveste. Algo nos chama atenção para esta casa em particular. Temos a sensação de que há algo para acontecer e nossa curiosidade atrevida transpõe as grades de ferro e vai em direção à porta. Está trancada. Entretanto isso não é empecilho para nós. Pelas frestas laterais, por cima e por baixo da porta nos esgueiramos.

Um homem de uns quarenta e tantos anos está sentado, sonolento, no sofá de três lugares vendo televisão. A quarenta e duas polegadas presa na parede exibe o programa do Faustão. O celular vibra e ele apressadamente o retira do bolso. Vê que recebeu uma nova mensagem, então arregala os olhos para ver se há alguém por perto e depois de estar certo de que não será interrompido abre a mensagem e começa a ler o texto que diz: Estou molhadinha de tesão aqui por você meu garanhão. Quando vem me ver? Espero que já tenha falado com ela sobre a separação. Beijo na cabeça do caralho que sei que deve estar latejante.

Imediatamente ele leva a mão esquerda e dá uma ajeitada no volume que se formou ali por baixo da bermuda. O polegar direito corre ligeiro pela tela do aparelho e digita a resposta: Pode apostar que meu caralho está chorando porra de saudades de você. Ainda não resolvi o lance da separação, mas desta semana não passa, pode deixar. Beijo nestes teus grandes lábios, de língua, do jeito que gosta.

Clicou em enviar e levantou-se rápido. O seguimos e entramos junto com ele no banheiro. Deu duas voltas na chave trancando-se naquele cubículo e enquanto reparamos na alvura dos azulejos ele se despe da cintura para baixo, senta-se sobre a tampa da privada que estava baixada e começa a se masturbar. Chega, acreditamos que não é para isso que entramos nesta casa.

Dali seguimos pelo corredor e viramos em uma área muito clara iluminada pelo sol que entra pela janela aberta. A cozinha está impecável, limpa e organizada. Sentimos o cheiro de flores do campo que provavelmente foi o desinfetante utilizado para limpeza, mas há um outro cheiro chamando nossa atenção. Do forno, que está ligado, vem o cheiro forte e deliciosamente doce de bolo. Olhamos pelo vidro temperado e notamos que está quase pronto. Já cresceu bastante e está começando a dourar superficialmente. Um bolo aparentemente simples mas que nos dá água na boca.

Voltamos e seguimos pelo corredor até o final onde encontramos duas portas. Direita ou esquerda; esquerda ou direita? Quando não somos apenas um a decisão se torna um pouco mais difícil de tomar. Tentamos a esquerda primeiro.

O quarto também está claro, mas não tanto quanto a cozinha. Sobre a cama de solteiro coberta com uma colcha de corações rosa, lilás e vermelho, está semi deitada uma garota magra de cabelos longos e pretos, feito noite escura. Sobre os ouvidos ela mantém os fones de ouvido. Guitarras, bateria e um vocal feminino é o que podemos ouvir, mesmo não podendo distinguir qual banda ou artista é, gostamos do ritmo. Ela está conectada com o laptop ao seu lado vendo fotos de meninas que podem ser suas amigas. Sorri ao receber uma mensagem que pisca no canto da tela. Curiosos como somos olhamos para saber quem é o gatinho e nos deparamos com a frase: queria estar aí entre suas pernas, como remetente encontramos o nome de Suelem, uma loirinha de olhos claros, muito bonita pelo que aparece na foto em seu perfil no programa que estão usando.

A garota tem dedos ágeis que digitam rápido a resposta: bem que gostaria de ter você aqui, mas ainda não tenho coragem de te trazer aqui enquanto meus pais estão em casa.

Apesar de parecer interessante o romance escondido desta garota, não é por isso que invadimos esta casa, nossos sentidos nos dizem que devemos nos aventurar por outros cômodos e talvez esperar um pouco mais.

Ao sair do quarto vemos um gato rajado saindo da cozinha e indo para a sala, tem passada lenta e o rabo erguido, todo senhor de si. Contudo, é só um gato andando pela casa, um morador de quem não podemos esperar muita ação. Então olhamos a porta da direita com convicção de que o que nos trouxe cá para dentro se encontra ali. Queremos acreditar que seja pois essa brincadeira de esconder e procurar está ficando cansativa.

Este quarto tem cortinas pretas que o deixam confortavelmente na penumbra enquanto flashes são disparados da televisão. Dois garotos estão sentados no chão, costas apoiadas na lateral da cama, controles de vídeo game nas mãos, olhando fixos para a luta mortal que seus personagens travam naquele mundo tão cheio de ação. Nas paredes há pôsteres com demônios envoltos em chamas, ninjas femininas e grupos de aventureiros prontos para a guerra contra o mal. Típico quarto de adolescente.

Olhamos todos os cantos do quarto e não há nada que indique que algo acontecerá aqui. Será que deixamos algo passar pela casa?

De repente um dos garotos dá duas fungadas grandes e olha para a porta, então diz para o outro que sente o cheiro de algo queimando. O segundo garoto, o loiro, se levanta, abre a porta e grita dali: mãe, tem algo queimando na cozinha. Ele espera uns instantes e não ouvindo som algum que indicasse que alguém ouviu o que ele disse, foi ele mesmo até a cozinha, desligou rápido o forno e tirou de dentro o bolo que tínhamos achado tão bonito. Uma pena mesmo. Antes tão apetitoso, agora fumega enegrecido sobre a pia.

O loiro então caminha até a sala e a encontra vazia. Bate na porta do banheiro dizendo mãe em forma interrogativa e de lá de dentro o pai responde que é ele quem está lá. Por final o garoto vai até a porta do outro lado do corredor, para onde não fomos.

Ele bate duas vezes e chama pela mãe. Não há resposta e então ele tenta a maçaneta. A porta não abre porque está trancada. Ele bate e chama com mais força. O pai então sai do banheiro arrumando apressadamente a bermuda de forma a esconder o volume ali presente, também tenta abrir a porta do quarto pensando que o filho não tem força o suficiente. A garota do outro lado do corredor finalmente sai e pergunta o que está havendo, se querem derrubar a casa com todos ali dentro. Só então ela entende o que está se passando ali e começa a chamar por sua mãe também.

Nós estamos curiosos por saber o que está acontecendo dentro deste quarto, e somos os únicos que podem entrar.

No entanto, no momento em que começamos a nos mexer para passar pelos vãos daquela porta ouvimos o que todos os outros também ouvem. O som de tiro em um quarto fechado. Pai, filho e filha estão de olhos arregalados. O outro garoto aparece na porta assustado. A garota começa a chorar e todos batem na porta com mais energia.

Transpassamos para dentro do quarto.

É o quarto do casal, como a maioria já pode ter deduzido. A cortina de renda está imóvel já que a janela se encontra fechada, mas deixa transpassar um pouco da luz daquela tarde, e é assim que vemos salpicos vermelhos ainda frescos perturbando sua alvura. Todo o resto ali dentro parece impecável mesmo que sobre a cama haja o corpo de uma mulher.

Ela está caída lateralmente e o indicador, curvo em forma de gancho, prende a arma que foi usada. Um pouco do sangue fez caminho sobre a colcha azul e escorre para o chão de forma lenta. Nos aproximando um pouco mais vemos que logo abaixo de sua cabeça há um papel também sujo de sangue. Quando lemos em um pedaço ainda discernível as palavras: cuidem-se todos. Vou sempre lhes amar. Entendemos que aquela é uma carta de suicídio, que não poderá ser lida já que está quase toda banhada em sangue.

Em um estouro a porta se abre batendo na parede. O pai cai para dentro com a mão sobre o ombro direito. Ele se ajoelha com intensão de ficar em pé, mas para de se mexer assim que vê o estado da mulher sobre a cama. O garoto é quem se aproxima mais do corpo da mulher, porém ele não a toca, apenas fica em pé onde está e a encara com um misto de incredulidade e horror. A morena fica na porta, mal vê o estado da mãe e abraça firme o outro garoto e começa a chorar descontroladamente. Para ela o mundo inteiro acabou de desabar. Então a cena toda fica mais perturbadora quando aquele gato, o rajado, entra no quarto em passos macios, passa do lado do pai, esfrega seu corpo na perna do garoto e por final corre até a pequena poça de sangue que vai se formando ao lado da cama e começa a lamber o líquido vermelho.

Nossa curiosidade está saciada por hora.

Deixamos a família em paz para cuidar do ocorrido. Flutuamos com o fluxo do vento para fora dali e passamos uma vez mais pela cozinha em direção ao dia ensolarado que nos chama para passear. É realmente uma pena o bolo ter queimado, estava com uma cara tão boa minutos atrás!