Flor (maio de 2014)

Nunca assisti o final daquele filme. Passadas uma hora e meia de sessão, disse ao colega Marcelo que ia ao banheiro e não voltei mais ao assento. Lembro que havia no filme um espião russo e policiais que o perseguiam por toda a cidade. Era um filme de ação americano do tipo que detém o expectador colado à tela até o final.

Toda a evolução da narrativa conduzia a um final trágico e inesperado: a mocinha do filme morria uma morte inglória, metralhada pelo vilão, o terrível espião russo. O mocinho, comandante da polícia, ainda toma a moça aos braços, mas isto é inútil pois a mocinha, já defunta, não balbucia mais nenhuma palavra.

Não vi o final do filme do espião russo. O que sei dele contou-me Marcelo no outro dia, ainda incomodado pelo fato de eu tê-lo abandonado no cinema no dia anterior. O final, dizia Marcelo, era facilmente deduzível para o expectador bom-observador: Bastava aferir, através de dedução, a morte da mocinha.

Foi impossível acompanhar meu colega de escola até o final da sessão de cinema porque tinha outros planos para aquela tarde e ele não fazia parte dos meus planos. Iria encontrar-me com a impudica Flor – uma belíssima mulher que causaria inveja ao meu colega ainda virgem, acaso ele descobrisse minha vida mundana com ela.

Estava sentado no cinema quando meu celular vibrou duas vezes e depois parou. Era o sinal acordado com Flor para que eu corresse ao seu charmoso apartamento. Frequentemente, quando me chamava, era sinal de que não tinha mais clientes a importuná-la e que podíamos desfrutar de nosso momento de amor.

Eu contava com dezessete anos de idade, e ela (negava-se com vigor a revelar a idade), provavelmente tinha em torno de vinte anos. Nossa diferença de idade nunca fora motivo de desentendimentos entre nós. A única imposição que me fazia era a de que deixasse os ciúmes de lado e lhe permitisse trabalhar em paz.

Flor era mulher vadia. Sua estória, contava ela, começou com a perda da virgindade muito precocemente, em troca de dinheiro, quando tinha quatorze anos. Vinha de uma família muito pobre que, quando já beirando a indigência, viu-se forçada a permitir que a filha vendesse o corpo pelo dinheiro para comprar comida para a irmã.

Tinha uma irmãzinha recém-nascida de quem os pais não davam conta. Sua mãe, costureira, amargava a impotência de trabalhar com os novelos de lã, pois adquirira uma doença crônica nos ossos que a impedia de trabalhar com as mãos. Seu pai, alcoólatra, fora expulso de tantos empregos quanto podia contar nos dedos.

Flor se prostituía para enviar dinheiro para a família, que vivia no interior – foi o que me disse ela. Compravam leite para a neném, sua irmã, e medicamentos para as dores reumáticas da mãe. Com a exceção do pai, que mergulhava cada vez mais no vício, a família via com naturalidade a filha que trabalhava longe e enviava dinheiro.

Ainda antes de sair de casa, o pai lhe dissera certa noite, em que presenciou de surpresa sua chegada, altas horas da madrugada, que “filha minha não fica até tarde na rua não pus prostituta no mundo.” Foi neste dia que saiu de casa. Sua mãe chorava muito, mas não insistiu para que ficasse. Estava certo assim, para Deus e para todos.

Tentei contar a estória de Flor para Marcelo, mas percebi logo o quanto era curto o seu entendimento. Era ainda um adolescente desses de calças curtas; enquanto eu, embora ainda jovem como ele, era barbado e masculino. Alguém me dissera naqueles dias que eu parecia contar com uns vinte e cinco anos, e isso me alegrou muito.

Bom, era dado o sinal no telefone celular, para lembrar-me de que era hora de tomar a condução para me levar ao ninho de amor. Amante pobre, não convinha pegar um táxi. Também, não poderia pegar o carro de mamãe, porque não tinha permissão para dirigir. Sustinha minha vida secreta ao custo de viagens curtas de ônibus pela cidade.

Flor atendeu logo ao primeiro toque do interfone. Não disse nada, só abriu o portão em silêncio. Tomei o elevador e saltei no andar certo, caminhando através do corredor para sua porta vagarosamente; tão vagarosamente quanto possível para permitir pentear com cuidado o cabelo todo desarrumado.

Abriu a porta e, de costas para o cômodo todo escuro, surgiu Flor junto a uma baforada nojenta de cigarros caros (ou charuto). Foi algo que rapidamente impregnou metade do corredor. “Olá, bebê!” Murmurou meio sonolenta e meio embriagada a impudica Flor. Incomodava a mim ter de vê-la torpe, depois de requisitados préstimos.

Abracei-a e demos um giro no espaço, caindo sobre o sofá da sala escura. Flor divertia-se, pois gargalhava e me beijava. Seu hálito era uma mistura de balas de hortelã com chocolate. Seus amantes, como de hábito, lhe presenteavam docinhos e caixas de bombons caros.

Flor comia tudo sem modéstia, o que lhe custava a silhueta de uma mulher mais velha do que era na verdade. Suas ancas pareciam sofrer, apertadas por uma lingerie ousada que espremia o corpo todo, em conjunto com uma cinta azul bordada que lhe delineava os seios de menina. Mas já se via que tinha mais de vinte anos.

Prometera-me que não usaria mais drogas, mas fraquejara. Seu corpo estava todo mole, não queria parar em pé. Fiquei com raiva de Flor, por que não era sempre que podíamos nos encontrar e, no entanto, veja que valor ela dera ao nosso encontro romântico: Estava dopada!

Fiz cara feia e menção de censurá-la, mas percebendo minha intenção pôs os dedos em cruz sobre a minha boca. Deitei-a no sofá e acendi a luz da sala. Havia as poltronas um pouco fora de lugar e cinzeiros cheios de guimbas de cigarros. No meio da sala, encontrei uma garrafa de uísque vazia. Bebera muito e fizera uso de drogas.

Lembro-me de arrastá-la contra a vontade até o banheiro, e fazer com que ela tomasse um banho gelado. Depois, a envolvi em uma toalha branca felpuda e a deixei na cama. Flor daquele jeito e eu não tinha coragem de tocá-la. Tinha a certeza de que em sua embriaguez ela não me reconheceria; sendo assim, não ousei acaricia-la.

Neste dia, vi meus planos de uma noite de amor se desmancharem no ar: primeiro, certifiquei-me de que Flor dormia. Depois, tentei ajeitar um pouco a sala desarrumada por uma manada de elefantes. Joguei a garrafa vazia fora e busquei um jarro de água para deixar na mesinha de cabeceira da cama de Flor.

Não fiz barulho para não acordar a meretriz (mas sei que merecia uma bronca), e saí me esgueirando pelo corredor, pelo elevador, e depois rua afora. Lembrei-me do colega Marcelo e da sessão de cinema que não vira. Não podia esquecer de pedir-lhe desculpas. “Ficara indisposto e tive que correr para casa.” Não acreditaria, mas...

Chegando em casa telefonei para Marcelo e este pôs-se a tagarelar sobre o filme que eu havia perdido. Desviei do assunto o quanto podia, tentando esgotar o assunto para falar da escola e de nossos afazeres para a formatura de ensino médio. Este era o nosso último ano de escola. Assim que nos entendemos, desliguei e fui dormir.

O dia chegou com o despertador. Eram sete horas da manhã. Pensei na escola, e pensei em Flor. Era inevitável pensar em seu bem-estar. Como acordaria? Teria ou não meios para despertar? Muito provavelmente acordaria com uma ressaca brava. Eu gostaria de estar lá, para assim que abrisse os olhos.

Foi então que o telefone celular tocou. “Venha para cá. Não vá à escola hoje, por favor.” Era ela que me telefonava, com a voz rouca e fraca. Flor nunca me pediu para abandonar os estudos, assim como nunca pedi a ela que abandonasse sua profissão. Que será que necessitaria de mim? Vesti uma roupa e desci. Fiz sinal para um táxi.

Trinta minutos e lá estava eu, grudado no interfone do prédio de Flor. Subi rapidamente para encontra-la de pé, envolvida em um roupão branco, calçando sandálias. Nenhuma semelhança com a meretriz sofisticada que usava vestidos apertados na cintura, e mostrando sempre as espáduas seminuas.

“Preciso de você, Henrique.” Disse e continuou, “Não me sinto bem, creio que é qualquer coisa desses dias, em que tenho exagerado na bebida e no sexo.” “Mal consegui levantar-me da cama e, veja só, me arrastando até a porta encontrei com você.” “Obrigada por ter vindo.” E dito isso me abraçou.

Prosseguiu Flor, “Tenho no banco algumas economias que venho juntando há anos.” “O que não envio para minha mãe eu ponho em uma conta de poupança.” Mas, onde queria chegar? “Não entendo, Flor.” Ao que me respondeu, “Quero que tenha acesso a esta conta, para o caso de acontecer algo comigo.” Ela pegou a carteira e abriu.

“Vê? Este cartão é de minha conta, e a senha é a que está aqui, logo embaixo. “Não há como confundir-se.” “Se algo me acontecer (minha saúde é mais frágil do que você pode imaginar), quero que acesse esta conta e tome uma quantia para você.” “Quero que compre uma motocicleta.” Rimos os dois juntos. Fiquei me imaginando na moto.

“O restante do dinheiro, use para pagar o funeral e despesas.” “O que restar, por favor, envie para este endereço, aos cuidados de minha mãe.” “Ela chama-se Narcisa.” Eu então olhei para ela atônito, sem desejar saber o que desejava me dizer. A Flor, morta? Fiquei imerso em um mar de silêncio sem conseguir emitir um som.

É melhor ir encaminhando a narrativa para um fim. ‘Aventuras de um Adolescente’ – alguém haveria um dia de ler o livro de minha vida, fazendo ficção com a amante mais bonita de toda a redondeza. Uma mulher um pouco mais velha que fazia a diferença na narrativa do livro. Era a mocinha do herói, que por necessidade a muitos se vendia.

Recebi de Flor um cartão de banco, um papel com números (a senha), e um endereço em uma cidadezinha do interior. Queria saber se eu havia compreendido tudo, fitando-me os olhos inquisitivamente. Não queria ser cremada, mas enterrada em um cemitério com um gramado e jardins. Tinha um recorte de jornal com o número.

Tentei convencê-la de que não sabia o que estava falando, que ainda gozava de saúde e juventude, mas ela não me queria ouvir! Dizia, “quero apenas que me ouça, e que diga que compreendeu tudo que falei.” Ao qual assenti, os olhos marejados de lágrimas. “Sim, amor.” “Não quero compreender, mas eu entendo.” E suspirei fundo.

Passava do meio-dia quando deixei o apartamento de Flor. Fui direto para casa e, não encontrando ninguém no apartamento (meus pais trabalhavam), me tranquei no quarto. Por duas semanas agi o mais normalmente possível. Mas acho que não consegui dissimular certa tristeza no olhar. Nesse período, Flor não me procurou.

Quando completavam duas semanas, o celular tocou. Era ela. Murmurei, “hã-hã... sim.” e, sem saber, pela última vez na vida tomei um ônibus até o apartamento dela. Cheguei, abriu-me o portão, e logo estava dentro do nosso ninho de amor. Ai, que saudades daquele tempo. A cortesã me recebeu com um abraço apertado. Mundana!

Flor caminhava um pouco curvada, com as mãos sobre o ventre. Estava com o corpo alquebrado e talvez tivesse febre. A espessa maquiagem não conseguia esconder seu aspecto de doente. Estava muito abatida... Fez sinal para que eu me sentasse e eu concordei. Mas apanhei de surpresa sua mão e ela sentou-se também.

Frente a frente, pude vê-la de corpo inteiro, e notei que havia algo estranho em Flor. Estava pálida como um cadáver. E havia perdido muitos quilos desde a última vez. Estava esquálida. Tentei dizer alguma coisa, mas ela pôs a mão sobre meus lábios. E completou, “Você sabe o que fazer...” Eu não sabia nada mas concordei, confuso.

Então me explicou, deixando o corpo cair lentamente sobre o sofá, ao meu lado. Notei que seus olhos não brilhavam mais, “Eu sofri a perda de uma criança, talvez mais bela que minha pequena irmã.” “Não fui medicada, e decidi permitir que o meu corpo sirva de caixão para a criança morta.” “Não tenho muito mais força para falar, mas entenda.”

Flor desfalecia ali, ao alcance de minhas mãos, ao alcance de meus olhos. Eu amava aquela mulher, e a odiava também. Por que me deixar assim, deixando tão pouco de si para perfumar-me? Flor sempre gostou de perfumes... e ironicamente desejava que eu comprasse uma motocicleta. Uma fumacenta motocicleta, grande e barulhenta.

Assim esvaiu-se Flor, sem que eu nada pudesse fazer. Vendo seu corpo mole, caído em minha frente, tomei-a em meus braços pela última vez e deitei-a sobre a cama. Beijei-lhe a testa e deitei um cobertor sobre seu cadáver (para que não sentisse frio). Cumpri todos os seus desejos, apenas não comprei a motocicleta.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 24/06/2014
Reeditado em 27/06/2014
Código do texto: T4857098
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