Tragédia no mar

Só pra constar: estou morto. Sim, morto – e não é uma metáfora pr’aqueles que perderam a fé na vida. Eu morri há muito tempo, quando meu navio naufragou devido uma batalha no mar. Mas isso não é o enfoque. Explicar-lhes-ei o porquê de entre todas as coisas a que eu mais detesto seja a tal “chance de sua vida”. Mas antes de falar de mim, tenho que falar dela.

Há muito tempo atrás, havia em uma dessas cidades portuárias uma jovem mulher de nome Amanda. Amanda era uma morena de falantes olhos castanhos. Tinha uma cintura fina, talvez fina demais e lindos cabelos negros, negros e intensos como o fundo do mar. Amanda acreditava em um Deus do qual eu nunca ouvi falar – eu acreditava no mar e na justiça das ondas que batem contra o casco do navio e respingam no convés, dando prazer e trabalho aos marujos. Ela usava pulseiras e, diferentemente das demais portuárias, esperava pelo homem da sua vida.

Amanda tinha, ainda, lábios carnudos e continha em cada gesto um pouco daquilo que matava e curava, como uma mentira que não teve chance de virar verdade. Por querer assim uma tempestade maldita, vim atracar na cidade nela. Eu e meu bando de companheiros de infortúnio - um destino que jamais iria ser nosso amigo, mas que ia ser mais do que pra vida toda.

Ela usava uma saia longa demais e nos braços trazia um cesto cheio de coisas poucas. E então a negritude de seus olhos se perdeu no breu dos meus.

Meu pai havia morrido três dias antes e seus passos continuavam a ecoar no convés. Seus velhos parceiros me fizeram senhor daquele Reino que vencia a geografia e aportava nos 4 cantos do mundo. O que as mulheres carregavam no meio das pernas era conhecido por todos nós, o que elas traziam dentro do coração, não. Amor podia ser facilmente substituído por Rum, Cachaça ou algum similar e geralmente amávamos mais as garrafas do que as companhias que, ao verem o nosso velho barco, se agitavam e riam em suas saias baratas e decotes generosos.

Respeitando o luto do meu velho pai, dormi cedo na sala que tanto meu pai fez de casa e de inferno, talvez os dois ao mesmo tempo. Acordei cedo e decidi andar pelo cais. Foi então que eu a vi, como contei antes.

Não lembro de ter sorrido, meus dentes sujos de mar não tinham costume de manchar a memória daqueles que tinham o desprazer de vê-los, exceto quando o álcool fazia as vestes da minha sanidade. A única coisa que me distinguia de um outro pirata qualquer era um “Kep” branco, resto de algum capitão que cuspira sangue quando a espada de meu pai foi conhecer o fígado do infeliz.

Desci logo a seu encontro, enquanto ela apertava o passo. Minha mão pegou o braço da jovem, que sem olhar para meu rosto, disse a frase que eu jamais esquecerei (por mais que eu tente): “Moço, afaste-se de mim porquê a o meu coração a maré que nasce dos seus olhos já conquistou”. Nunca antes uma mulher havia negado algo que eu pedisse. Nunca antes uma mulher havia sido sincera comigo. Soltei o braço da jovem sem nada dizer, que correu de encontro a um destino que não tardaria a me amaldiçoar.

Voltei ao navio ao despontar do meio-dia. O mal-estar de todos ali impedia de içar velas e outros marujos no velho navio me soava traição com os velhos que, como eu, abraçaram a tradição de piratear a vida. Ao cair do sol, olhei em direção à praia e a vi novamente, em uma duna, a olhar para mim como quem sabe o que não deve ser dito ou contado, apenas feito.

Dos seus doces lábios experimentei a magia e o veneno, quando os mesmos confessaram que na noite de seus 21 anos seria casada com um dos nobres por ali, que jamais vira e que não despertaria nunca nela o que a sujeira dos meus hábitos a causou. Restavam 3 dias antes do casamento de Amanda.

Naquela noite, experimentei o gosto de um tal de amor, muito diferente do sexo comum com todas as outras que haviam me beijado. Esse tal amor, hábito renegado a homens do mar, que tem por objetivo traí-los e matá-los, enquanto sua carne vaga oca pelos oceanos. Seu beijo era doce, diferente dos outros e seu olhar era sincero, talvez o único assim que eu conheci. Ao amanhecer, pediu ela uma recordação do amor que se consumara e nascera com todos os adjetivos que vivem entre o improvável e o impossível. Nada tinha eu, vestido apenas de meu “kep” e a roupa do corpo, senão a adaga que roubara de uma loja destinada a selar o arrependimento como meu eterno companheiro.

Dei a adaga a ela, pedi que a usasse caso em perigo e ela olhou nos meus olhos, dizendo que jamais me esqueceria. Perguntou meu nome, disse o primeiro que me veio à mente. Por 3 dias e 3 noites naveguei sem dormir e sem ouvir as palavras dos meus marujos. No 7º dia, ao acordar, vi que a noite caíra e todos dormiam. Peguei uma garrafa de cachaça e olhei para trás: nada havia senão o escuro da água do mar. Quando tomei o último gole da garrafa, acordei os demais marujos que, relutantes mas obedientes, levantaram a âncora.

O vento me levava pra longe dos lamentos da amada que eu deixara a chamar um nome que não me possuía. Nada me restava senão imaginá-la olhando o mar e me chamando, enquanto suas lágrimas bordavam o lençol de areia que nos servira de cama. Embriagado, não senti a água que avançava pelo navio – um recife de pedras havia surgido no caminho de um capitão que dormia. Bêbado demais para morrer, pedi ao mar uma última visão da mulher que fora a única a me amar.

Talvez seu eu soubesse que a dor de deixá-la pra trás seria suficiente, teria fechado meus olhos pra deixar apenas a cena do meu navio indo pro fundo do mar a tatuar o fundo de minha memória. Mas havia a vida dos homens que, mesmo após a morte, seguiram a navegar comigo. E eu tive a visão que pedi. Eu a vi lamentar meu nome verdadeiro pela única e também última vez e o presente maldito que a dei entrar várias vezes nela, como que por fim no coração, para tentar tirar-me de lá.

Ela será eternamente minha rainha, minha morena da praia, minha amada, a única que fez meu coração bater mais forte. Mas eu nasci para não ter lugar em terra, como a onda que vem mas sempre tem que voltar. Eternamente navegarei com os homens que morreram comigo, eternamente amaldiçoado e sempre longe daquele cais onde ela tanto chamou meu nome.

Sigo navegando eternamente, cada um tem uma missão dada pelo Deus que ela conhecia e eu tão somente respeito. Canecas vazias me lembram o choro dela e por isso nunca mais quero ver meu copo esvaziar. Um dia reencontrarei aquela amada. Mas a Terra, hahaha... Isso eu nunca irei lhes contar.

//Mateus Muller