283-O VEREDICTO-Jurados Hipnotizados

Que era um advogado cheio de recursos, isso ninguém podia negar. No foro de São Roque da Serra, a atuação do Doutor Carvalhinho era das mais surpreendentes. Para cada caso, usava uma técnica, uma treta diferente. E topava as demandas mais estranhas, as causas mais atrapalhadas. Em quase todas obtinha êxito, isto é, liberdade para criminosos ou ganhos para velhacos, que resultava em polpudos aumentos na sua conta bancária ou acréscimos importantes no seu patrimônio.

O desafio maior de sua carreira forense ocorreu quando foi determinado, pelo Juiz de Direito, a atuar na defesa de Bento Camargo, na assistência jurídica gratuita a que tem direito todo réu sem recursos.

— Esse caso é indefensável. — Comentou o Dr. Demóstenes. — Carvalhinho não ganha essa nem que a vaca tussa.

— Carvalhinho não tem como livrar o bandido da pena máxima. — Os colegas davam o réu como culpado, mesmo antes de ser julgado

Bento Camargo estava condenado por antecipação. Não confessara o crime, mas era o único suspeito no bárbaro assassinato de Ludmilia e tudo indicava que seria condenado no júri popular. Na tarde do julgamento, o salão nobre do fórum estava apinhado de gente. Após as formalidades iniciais — identificação do réu, escolha dos jurados etc. — teve início a tomada de depoimentos das testemunhas.

Talvez por excesso de confiança, ou porque soubesse de algum detalhe desconhecido de todos, o doutor Carvalhinho agiu da forma mais estranha. Não deu muita importância às declarações das testemunhas, desprezando interrogar até mesmo as pessoas que poderiam, de um modo ou de outro, amenizar a acusação que pesava sobre o réu.

Seu comportamento, durante a sessão, foi o pior possível. Pra começar, ele, que não fumava, sacou de um comprido charuto (devia medir pelo menos uns trinta centímetros) assim que os trabalhos do tribunal começaram. Manteve apertado entre os lábios o charuto aceso, saboreando com vagar o prazer de fumar.

Enquanto o advogado da acusação se esforçava (e nem precisava de tanto esforço) para lançar toda a suspeita de culpa sobre Bento Camargo, doutor Carvalhinho fumava, tranqüilamente, os olhos semicerrados, com cuidado em suas baforadas. O charuto queimava-se em alva cinza, que ia se acumulando na ponta, sem se desmanchar.

Com o correr da sessão, o advogado de acusação chamava testemunhas, interrogava-as e fazia seus comentários que mais e mais poderiam levar os jurados a uma condenação dura do réu. Doutor Carvalhinho desprezava as testemunhas, não interrogou ninguém. Só fumava e fumava. O charuto ia lentamente queimando, a ponta queimada mantendo a cinza na forma do charuto, cada vez mais longa. Nenhuma vez bateu o charuto no cinzeiro. Só tirava o charuto da boca, com cuidado, para dispensar testemunhas.

Sentava-se e continuava no ritual de fumar seu charuto. A cinza sem cair. O Juiz sentiu-se incomodado com aquela atitude de desinteresse por parte do advogado da defesa. Sentia-se mais incomodado com o tamanho da cinza do charuto, que não caía nunca. Quando a cinza atingiu mais da metade do charuto, o juiz já dava mais atenção ao charuto do que ao correr do julgamento. E assim também os jurados.

O charuto durou toda a sessão. A cinza aumentando de tamanho, sem cair. Era uma aflição observar o doutor Carvalhinho levando lentamente o charuto à boca, e ali mantê-lo, a cinza prestes a cair a qualquer momento, sobre os papéis, os documentos espalhados à sua frente. Juiz, jurados, meirinho, todos que estavam à sua frente, passaram a dar atenção total ao charuto.

Quando chegou a vez da última fala aos jurados, o doutor Carvalhinho levantou-se e, pela primeira vez, deixou o charuto no cinzeiro especial, que mais parecia uma bandeja. A cinza ainda intacta, um canudo de mais de vinte centímetros, que se manteve firme. Todos respiraram aliviados: o juiz, os jurados, os funcionários auxiliares e até o promotor, que também ficara de olho no charuto.

O advogado da defesa foi curto em seu panegírico ao réu. Falou da sua vida, da sua infância, essas coisas inocentes, comuns a qualquer cidadão, a qualquer pessoa ali presente.Não falou uma só vez no crime, não pediu clemência aos jurados. Apenas exigiu benevolência e compaixão dos ilustres jurados. Os quais entraram na sala aos fundos do salão, para deliberação.

Em poucos minutos estavam de volta com o veredicto: inocente.

O Juiz estranhou, todos os presentes se surpreenderam e até mesmo o réu ficou basbaque. Os jurados simplesmente não consideraram nenhum esforço do advogado da acusação – o promotor – no seu afã de condenar o réu. Não se lembraram dos depoimentos das testemunhas nem notaram os esforços do promotor. Haviam passado todo o tempo como que hipnotizados com a atenção presa ao charuto do Dr. Carvalhinho, cujas cinzas estavam sempre à beira do colapso, mas não caíram nunca.

Saíram todos do recinto atarantados. Os jurados não tinham explicação para o veredicto. Nem depois de cessados os efeitos da hipnose souberam explicar como puderam liberar o facínora. Todos ficaram bestificados, menos o doutor Carvalhinho. Ele sabia bem o que estava fazendo quando, na véspera, havia preparado o charuto, introduzindo no centro um grosso fio de metal, que manteve íntegra a cinza, sem cair, por mais longa que fosse a sessão do júri.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 4 DE MAIO DE 2004

CONTO # 283-DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/07/2014
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